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SENÁRIOS NA CRÍTICA MODERNA

No capítulo sobre a comédia romana do Cambridge Companion to

Shakespearean Comedy, Miola (2001) apresenta a tripartida divisão dos tipos de versos

e seus modos de elocução da comédia romana. Ali cabe esta descrição aos senários iâmbicos: “o tipo verso que sobra consiste no senário iâmbico (um verso de seis pés iâmbicos) para representar a fala cotidiana” (2001, p. 14)177. Essa afirmação acaba por

levar o leitor a supor então que os outros tipos de versos (os versos longos recitativos e os versos cantados, que aparecem descritos na passagem também) não representam a fala cotidiana ou, no mínimo, representam de uma forma menos direta.

A discussão que será apresentada sobre os senarii iambici e sua relação com a fala cotidiana da época arcaica tem como pano de fundo o pressuposto de que, diferentemente de Terêncio (em que a fala cotidiana seria estilizada), as peças de Plauto reproduziriam de fato a Umgangsprache de Roma na passagem entre os séculos III e II a.C. – expressão aplicada a textos plautinos inicialmente por Hoffmann (1922). Apesar de hoje em dia contestada (cf. discussão em Cardoso 2006, pp. 62-65, que, contra essa posição, ressalta precisamente a grande elaboração poética dos versos plautinos), a ideia de que em Plauto teríamos um eco do latim falado nas ruas de Roma arcaica sobrevive, ao que parece, nas considerações sobre os versos senários.

Mesmo para Duckworth, autor do influente The Nature of Roman Comedy, o senário iâmbico era o verso do “ordinary speech” (1952, p. 361). Ele chega a indicar

177 “The remaining verse consists of the iambic senarius (a line of six iambic feet) to represent ordinary

(sem se referir a um ou outro tipo de verso): “acima de tudo, que as escansões tanto de Plauto quanto de Terêncio ecoam a pronúncia do latim do dia a dia”178 (p. 365).

No seminal Early Latin Verse, de Lindsay (1922), ainda hoje uma grande referência para os estudos do verso plautino, sem dúvida, encontram-se várias passagens que promulgam as mesmas ideias, por exemplo: “o verso dramático era mais capaz de ecoar a conversação cotidiana” (p. 14) e “na leitura dos diálogos de Plauto (...) parece que ouvimos a fala daquela época, em Roma, dois mil anos atrás”.

Tanto Duckworth quanto Lindsay reforçam a natureza prosaica dos versos plautinos. Mas a ideia de que os senários expressam mais que os outros metros a fala cotidiana circula também em alguns estudos, conforme aponto a seguir.

Outro estudioso importante do drama cômico romano, Philip Harsh sintetiza bem uma ideia que era mais ou menos consensual em 1939: “Normalmente se assume que a linguagem dos senários iâmbicos é mais semelhante à fala coloquial do que a linguagem dos outros versos”179 (1939, p. 84). Fica clara a distinção que a crítica fazia

da natureza e da “linguagem” do senário em relação a dos outros versos. Nesse caso, um grande problema por trás da reprodução desse entendimento é a interpretação de que essa assemelhação conduz a outra ideia: a de que, por isso, os senários expressam uma menor elaboração poética, uma vez que a fala coloquial não pressupõe alguma preocupação estética mais formal.

Na tentativa de demonstrar uma certa hierarquia entre os demais versos e o senário iâmbico, Heinz Haffter, em “Untersuchungen zur altlateinischen Dichtersprache” (1934), tentou demonstrar então que a linguagem dos senários iâmbicos realmente se diferenciava daquela encontrada nos versos longos, em especial. O motivo seria que o primeiro tipo de verso faria um uso menor e restrito de figuras etimológicas, perífrases, pleonasmos e substantivos abstratos como sujeitos de verbos transitivos. Com isso, Haffer situa os senários em um patamar estilisticamente menos elaborado.

Haffter é seguido de perto por Happ, que escreve, em 1967, “Die lateinische Umgangssprache und die Kunstsprache des Plautus”. Nesse texto, Happ tenta mostrar como o uso de formas como faxo/faxim e construções com o verbo habere nos senários

178 “Above all, that the scansions of both Pl. and Ter. echo the everyday pronunciation of Latin”.

179 “One naturally assumes that the language of the iambic senarii in Roman comedy is more similar

iâmbicos emulavam a linguagem do tempo de Plauto: “O motivo pelo qual Plauto – que foi provavelmente o primeiro a fazê-lo – se afasta, com a linguagem do seu senário, da convenção da linguagem dramática de então, isso podemos apenas imaginar: talvez ele realmente tenha querido, numa parte do seu discurso, ‘refletir’ a linguagem do seu tempo”180.

Resumidamente, sem desejar contradizer de todo a crítica moderna e propor que senários iâmbicos não refletissem, em certa medida, uma prosódia e uma linguagem mais ou menos cotidiana, penso que não se deva supor que necessariamente qualquer eco desse falar do tempo de Plauto significasse menor nível de elaboração poética e creio que investigar a articulação métrica dos senários iâmbicos seja proveitoso nesse sentido.

Não pretendo dizer que a associação dos senarii com a fala esteja necessariamente incorreta, como comentei anteriormente; contudo, é preciso ressaltar que ela pode levar a uma interpretação redutora e simplista, uma vez que essa visão não atenta para questões de composição dos senários iâmbicos que envolvem elementos geradores de efeitos no que diz respeito à correlação entre sua organização métrica e variações de ritmo e tom depreensíveis a partir do conteúdo dramático

E de fato, assim como alguns pressupostos filológicos dessa associação entre Plauto e a fala cotidiana foram revistos, também o foram os das associações modernas entre senário e prosa. Os trabalhos de Haffter e Happ, por exemplo, embora tenham recebido críticas positivas, invariavelmente são citados por causa de suas inerentes falhas metodológicas.181 Um exemplo é a revisão de Melo (2010, p. 99), que demonstra que o uso de suus no lugar de eius, considerado anteriormente um coloquialismo atinente à linguagem dos senários, não pode ser, de fato, descrito como tal. Outro aspecto não observado por Haffter e também por Happ diz respeito à consideração das características métricas. Harsh (1939, p. 85) adverte que o trabalho de Haffter se apoiaria em bases mais sólidas se “tivesse sido precedido por um completo estudo das mudanças de metros, um estudo do tipo de conteúdo característico dos vários

180 “Warum Plautus – wohl als erster – mit seiner Senar-Sprache aus jener Konvention der

Dramensprache heraustritt, können wir nur vermuten: Vielleicht wollte er in einem Teil seiner Sprech- verse tatsächlich die Umgangssprache seiner Zeit ‘abspiegeln’”.

metros e uma consideração dos efeitos que as dificuldades métricas têm sobre o estilo”182.

Muito recentemente, Morgan (2010, p. 115) salientou de forma muito clara o pouco prestigio de que gozam os versos iâmbicos de Plauto, quando esclarece o contraste com os iambos do séc. I a.C., lembrando que: “o bode expiatório é o drama republicano, cujo estilo métrico pode ser deplorado e rejeitado (muito injustamente, como acontece) como sendo tanto não refinado quanto provinciano.”183

Assumindo que a tentativa da crítica moderna de demonstrar a diferença de estilo entre os senários e os demais versos advém de uma leitura muitas vezes estrita da conceituação antiga dos senários e demais versos, será importante analisar como os versos iâmbicos foram tratadados por autores antigos.184