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Sensibilidades, História e Memórias

No documento A CIDADE DE CATALÃO EM UM (páginas 152-155)

4.4 Sensibilidades e Imaginário afetivo

4.4.1 Sensibilidades, História e Memórias

A história como processo da existência e trajetória dos homens no tempo e no espaço, constrói-se a partir da interação dos seres humanos entre si e de sua relação com o meio ambiente, natural, social e cultural, sendo fruto de suas ações; e que o conhecimento histórico, a História, busca reconstruir, recorrendo, inclusive, à memória individual e coletiva nessa reconstrução dos acontecimentos passados, por meio dos registros e vestígios deixados e que sobrevivem na lembrança e recordação das pessoas e dos grupos sociais.

Considerando que dimensões da sensibilidade do homem e sua família dizem respeito ao passado e estão retidas nas lembranças do tempo de outrora, inserem-se no campo da

memória, recorrermos a Le Goff (1992, p.476, grifo do autor), que afirma que “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”. Neste sentido, é possível compreender que a memória é parte das vivências do sujeito, seja ela construção individual ou coletiva, e “representa um instrumento de poder” (LE GOFF, 1992, p. 476), pois a partir dela se pode conhecer a formação histórica de um determinado lugar e de um grupo social ou de um povo, sendo constituída de experiências e lembranças, que podem contribuir na (re)composição do fato histórico.

Dessa forma, podemos adentrar esse campo das sensibilidades mencionando os desafios encontrados pela família de migrantes perante sua jornada, os quais levam seus membros a remeter a seu passado. Hora ou outra, tanto o homem como a mulher, buscavam na memória passagens do que ocorrera e que marcara, de certa forma, partes ou períodos de suas vidas no nordeste de Goiás, à beira do Tocantins, apresentando-nos lembranças de sua terra natal, muitas delas associadas às falas dos mais velhos, como o padrinho. São memórias de como se trabalhava a terra como lavrador por lá, os ofícios que aprendeu e sabia desempenhar, as lidas de carapina e com o gado. Figuram, assim, uma série de “sabenças [que] não contavam” mais nas terras do sul do Estado, lugar em que vieram parar (COELHO, 1997, p. 15). Logo, o homem e a mulher sempre recorrem à memória e somente assim mantém vivo um passado que marcou, de certo modo, suas vidas.

Em sua busca diária pelo tão sonhado emprego, o homem percorre as máquinas de beneficiar arroz. Ao chegar em uma dessas indústrias de beneficiamento, sua presença é questionada pelo proprietário do estabelecimento, que acossado por fiscais de renda do Estado, e querendo um certo desforro pelo desgosto daqueles ali, lhe pergunta com agressão: “- E pra que você serve?” Nesse contexto opressivo, “A resposta veio fraca, saída muito baixo, quase sussurro, e para disfarce, tossiu, levou a mão à boca, o que complicou ainda mais o seu embaraço”. Diante do abrandamento no tratamento por parte do proprietário da máquina, veio-lhe à memória as palavras e o jeito brincalhão de seu padrinho, lá do nordeste do estado: “Por que não desembuchava logo? Mania besta esta de dizer tudo pelas metades. Ora! se pode – pode; se não pode – se sacode. E cada um segue o seu pagode. Orá!” (COELHO, 1997, p. 19-20). Depois de muita conversa, o dono da máquina de arroz, ordenou que comparecesse no outro dia para trabalhar. O homem, extremamente necessitado do trabalho, ouviu “a frase soando como uma sentença”, e não acreditando, “ficou meio abobalhado”, tamanha era sua alegria.

dia inteiro sem nada comer”, sentia que “trazia dentro do peito uma esperança renovada, uma novidade muito grande”, e diante de um ensopado de pouca sustança para comer de janta, entrou a pensar em dias melhores.

Sua lembrança preguiçosa puxou recordações de dias melhores, comidas mais dignas de um chefe de família. A vida é uma roda de carro: os homens, os cravos que firmam o aro de ferro no madeirame – fora o pensamento, se lembrando do padrinho que, às vezes, deixava o tom de brincadeira e falava todo sentencioso (COELHO, 1997, p. 25-6).

A esposa, por sua vez, na lida árdua e difícil de lavadeira no córrego para ganhar algum dinheiro e ajudar no sustento da família, via as águas que corriam, “levando sujice e sabão das roupas”, mas que também traziam “pensamentos, vozes e visões de outras eras”, como a voz do velho padrinho a perguntar se iam “embora mesmo?” e se estavam “na descida?” (COELHO, 1997, p. 65).

Recorrendo a Gomes, que considera que “Se o passado se congela, se torna um ramo seco, sem possibilidade de germinação, está destinado ao esquecimento [...]” (GOMES, 2008, p. 47), podemos dizer que as memórias do homem e da mulher estão vivas, dando sentido e significado ao seu presente e servindo de referência para o futuro. Nesse contexto, “o pensamento do homem em suas próprias canseiras e derrotas”, depois de “muitas semanas correndo a cidade sem encontrar um servicinho de nada para fazer, sem levar tostão que seja para casa”, após considerar que agora tinha um emprego, “coisa certa para todos os dias” (COELHO, 1997, p. 30)

[...] Lembrou-se dos tempos de capina nos eitos de roça de arroz, quando batia chuva pequena: molhou o rego, acabou o nego. Sorria enxugando a cabeça malemale com um pano encardido [...] (COELHO, 1997, p. 30).

Gomes (2008, p. 48) afirma que “Reviver o passado é semelhante a reencontrar o futuro”, pois “os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos. Cristalizam-se numa forma fixa”. E o futuro almejado pelo homem e sua família era bem distinto daquele passado que estava vivo em suas lembranças.

[...] novamente pensou no dizer dos mais antigos – era homem que não estava fazendo nem pro fumo; e num canto mais escondido da lembrança, surgia a risadinha maliciosa do padrinho despicando-o (COELHO, 1997, p. 30).

era uma espécie de sábio, e por isso sempre ouviam seus conselhos, “era como um profeta. A mulher e o marido ouviam” (COELHO, 1997, p. 66). Porém, a necessidade e a vontade de buscar outros lugares, objetivando saírem da condição de miséria que se encontravam, foram mais fortes que a fala do padrinho, que não foi suficiente para impedi-los de buscar outro destino para suas vidas.

Eles ouviram a voz do velho, guardaram-na na lembrança. Dias depois partiam. Uma peregrinação medonha, sofrimento que não acabava mais. As terras boas, dinheiro correndo feito água de ribeirão somente nas mãos dos ricos – os pobres como eles mesmos em suas terras, gente mais miseráveis até (COELHO, 1997, p. 68).

Destarte, o imaginário afetivo, constituído e movido pelas sensibilidades do homem e sua família, remete às emoções revividas e rememoradas, que dão sentido e significado ao que foi experenciado, servindo de baliza para se buscar um futuro melhor, distinto ao que padeceram.

No documento A CIDADE DE CATALÃO EM UM (páginas 152-155)