3.7 Sequˆ encias em Q
3.7.2 Sequˆ encias de Cauchy em Q
Nesta subse¸c˜ao, nossa meta ´e definir sequˆencias de Cauchy em Q e apresentar algumas propri- edades satisfeitas por estas mesmas aplica¸c˜oes em ordem a construir o conjunto dos n´umeros reais no pr´oximo cap´ıtulo.
Defini¸c˜ao 3.17. Uma sequˆencia (xn) de elementos em Q ´e chamada sequˆencia de Cauchy, se dado
ε ∈ Q∗+, existe n0 ∈ N tal que, ∀m, n ∈ N∗, com m, n ≥ n0, tem-se |xn− xm| < ε.
A proposi¸c˜ao abaixo nos diz que toda sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais ´e limitada. Proposi¸c˜ao 3.22. Seja (xn) uma sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais. Ent˜ao, (xn) ´e
Demonstra¸c˜ao. Para ε = 1 > 0, existe n0 ∈ N∗ tal que,
∀m, n ∈ N∗, com m, n ≥ n0 ⇒ |xn− xm| < 1.
Em particular, |xm− xn0| < 1 para todo m ≥ n0. Mas, para todo m ≥ n0, temos
|xm| = |xm− xn0 + xn0| ≤ |xm− xn0| + |xn0| < 1 + |xn0|.
Sendo c = max{|x1|, |x2|, ..., |xn0−1|, 1 + |xn0|} ∈ Q, ent˜ao, para todo n ∈ N
∗, temos que |x n| ≤ c.
Portanto, (xn) ´e limitada.
A proposi¸c˜ao a seguir nos mostra como provar que a soma de duas sequˆencias de Cauchy em Q ´
e, novamente, uma sequˆencia do mesmo tipo.
Teorema 3.23. Sejam (xn), (yn) sequˆencias de Cauchy de n´umeros racionais, ent˜ao (xn)±(yn) :=
(xn± yn) tamb´em o ´e.
Demonstra¸c˜ao. Como (xn), (yn) s˜ao sequˆencias de Cauchy de n´umeros racionais, ent˜ao dado ε ∈
Q∗+, existem n1, n2 ∈ N∗ tais que, ∀m, n ∈ N∗, tem-se
m, n ≥ n1⇒ |xn− xm| <
ε
2 e m, n ≥ n2 ⇒ |ym− yn| < ε 2. Seja n0 = max{n1, n2}, ent˜ao, para todo m, n ∈ N∗, com m, n ≥ n0, obt´em-se
|(xm+ ym) − (xn+ yn)| = |(xm− xn) ± (ym− yn)| ≤ |(xm− xn)| + |(ym− yn)| <
ε 2+
ε 2 = ε. Portanto, (xn) ± (yn) ´e sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais.
N˜ao s´o a adi¸c˜ao, mas a multiplica¸c˜ao, definida de maneira usual, de sequˆencias de Cauchy em Q gera uma sequˆencia do mesma categoria.
Teorema 3.24. Sejam (xn), (yn) sequˆencias de Cauchy de n´umeros racionais, ent˜ao (xn) · (yn) :=
(xnyn) tamb´em o ´e.
Demonstra¸c˜ao. ´E f´acil checar que
|xnyn− xmym| = |xnyn− xmyn+ xmyn− xmym|
Como (xn), (yn) s˜ao sequˆencias de Cauchy de n´umeros racionais, ent˜ao, pela Proposi¸c˜ao 3.22,
temos que (xn), (yn) s˜ao limitadas e, assim, existem c, d ∈ Q∗+ tais que |xn| ≤ c, |yn| ≤ d para todo
n ∈ N∗. Tomando k = max{c, d} ∈ Q∗+, obtemos que
|xn| ≤ k e |yn| ≤ k, ∀n ∈ N∗.
E da´ı,
|xnyn− xmym| ≤ |yn||xn− ym| + |xm||yn− ym| ≤ k|xn− xm| + k|yn− ym|, ∀n ∈ N.
Ainda pelo fato de (xn), (yn) serem sequˆencias de Cauchy de n´umeros racionais, dado ε ∈ Q∗+,
temos que existem n1, n2∈ N∗, de modo que, para todo m, n ∈ N∗, encontramos
m, n ≥ n1⇒ |xn− xm| <
ε
2k e m, n ≥ n2 ⇒ |yn− ym| < ε 2k. Seja n0 = max{n1, n2}, ent˜ao, para todo m, n ∈ N∗, com m, n ≥ n0, temos que
|xmym− xnyn| < k ·
ε 2k + k ·
ε 2k = ε. Portanto (xn) · (yn) ´e sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais.
Al´em da adi¸c˜ao e da multiplica¸c˜ao, se considerarmos o m´odulo em cada termo de uma sequˆencia de Cauchy em Q, ent˜ao encontramos outra sequˆencia do mesmo tipo.
Proposi¸c˜ao 3.23. Seja (xn) uma sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais. Ent˜ao, (|xn|) ´e uma
sequˆencia de Cauchy.
Demonstra¸c˜ao. Dado ε ∈ Q∗+, existe n0 ∈ N∗ tal que, para todo m, n ∈ N∗, tem-se
m, n ≥ n0 ⇒ |xn− xm| < ε.
Por outro lado, para todo m, n ≥ n0, obt´em-se
||xn| − |xm|| ≤ |xn− xm| < ε.
Portanto, (|xn|) ´e uma sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais.
A proposi¸c˜ao abaixo nos garante que se tivermos uma sequˆencia, constitu´ıda de termos n˜ao nulos, que n˜ao converge para zero, ent˜ao ´e poss´ıvel definir uma outra sequˆencia com os inversos dos
termos da sequˆencia original. O resultado obtido ser´a novamente uma sequˆencia de Cauchy. Proposi¸c˜ao 3.24. Seja (xn) uma sequˆencia de Cauchy de n´umeros racionais tal que lim
n→∞xn6= 0
e xn6= 0, para todo n ∈ N∗. Ent˜ao,
1 xn
´e uma sequˆencia de Cauchy.
Demonstra¸c˜ao. Primeiramente observe que 1 xm − 1 xn = xn− xm xnxm = |xn− xm| |xn||xm| , ∀n ∈ N ∗.
Por outro lado, como xn9 0, ent˜ao ∃ε0 ∈ Q∗+ tal que ∀y ∈ N∗ podemos encontrar ny ∈ N∗ de
forma que ny ≥ y e |xny| ≥ ε0.
Como (xn) ´e uma sequˆencia de Cauchy, ent˜ao, pela Proposi¸c˜ao 3.23, (|xn|) tamb´em o ´e. Por-
tanto, ∃m1 ∈ N∗ tal que para todo m, n ≥ m1, tem-se que ||xm| − |xn|| < ε20. Deste modo, infere-se
||xm| − |xnm1|| < ε0
2, para todo m ≥ m1. Ent˜ao,
−ε0 2 < |xm| − |xm1| ≤ |xm| − ε0, ∀m ≥ m1, ou equivalentemente, 1 |xm| < 2 ε0 =: k, ∀m ≥ m1.
Novamente, usando o fato que (xn) ´e uma sequˆencia de Cauchy, temos que existe n2 ∈ N∗ de
modo que
∀m, n ∈ N∗, com m, n ≥ n2⇒ |xn− xm| <
ε k2.
Tomando n0 = max{m1, n2} ∈ N∗ temos, para todo n, m ∈ N∗, com n, m ≥ n0, que
1 xm − 1 xn = |xn− xm| |xn||xm| < ε k2 · k 2 = ε.
Isto completa a prova da proposi¸c˜ao em quest˜ao.
A seguir, provaremos que toda sequˆencia convergente de n´umeros racionais ´e uma sequˆencia de Cauchy.
Teorema 3.25. Seja (xn) uma sequˆencia convergente de n´umeros racionais. Ent˜ao, (xn) ´e tamb´em
Demonstra¸c˜ao. Suponha que xn→ a ∈ Q. Ent˜ao, dado ε ∈ Q∗+, existe n0 ∈ N∗ tal que
∀n ∈ N∗, n ≥ n0 ⇒ |xn− a| <
ε 2. Desse modo, para todo m, n ∈ N∗, com m, n ≥ n0, tem-se que
|xn− xm| = |xn− a + a − xm| ≤ |xn− a| + |xm− a| < ε 2 +
ε 2 = ε. Consequentemente, (xn) ´e uma sequˆencia de Cauchy em Q.
Toda sequˆencia convergente de n´umeros racionais s˜ao sequˆencias de Cauchy em Q, ent˜ao ser sequˆencia de Cauchy ´e uma condi¸c˜ao necess´aria de convergˆencia; por´em, n˜ao ´e condi¸c˜ao suficiente. Na verdade, existem sequˆencias de Cauchy em Q que n˜ao converge em Q, como mostra o exemplo a seguir.
Exemplo 3.10. Consideremos (xn) a sequˆencia das ra´ızes aproximadas de 2, constru´ıda como se
segue:
Seja x1 o maior inteiro tal que x21 ≤ 2. Substituindo os poss´ıveis valores para x1 descobrimos
que x1 = 1.
Seja x2 o maior racional da forma 1 + 10b1, onde b1 pode ser 0, 1, 2, ... ou 9, determinado por
substitui¸c˜ao direta de modo que x22 ≤ 2. Fazendo os c´alculos obtemos b1= 4.
Assuma x3 o maior racional da forma 1 +10b1 +10b22, onde b2 pode ser 0, 1, 2, ... ou 9, determinado
por substitui¸c˜ao direta de modo que x23 ≤ 2. Fazendo os c´alculos obtemos b2 = 1. E assim
sucessivamente. Logo, o termo geral da sequˆencia (xn) para todo n ∈ N∗ ´e dado por
xn= 1 + 4 10 + 1 102 + ... + bn 10n, ∀ ∈ N ∗.
Mostraremos que (xn) n˜ao converge para nenhum n´umero racional. Com esta finalidade vamos
inicialmente provar que x2n −→ 2. Sabemos, atrav´es da constru¸c˜ao acima, que x2n ≤ 2 para todo n ∈ N e tamb´em que 1 + 4 10 + 1 102 + ... + bn+ 1 10n 2 > 2.
Logo, 1 + 4 10 + 1 102 + ... + bn 10n + 1 10n 2 > 2 ⇒ xn+ 1 10n 2 > 2 ⇒ x2n+2xn 10n + 1 102n > 2 ⇒ 2 − x2n< 2xn 10n + 1 102n. Mas, 1012n < 1 10n e xn< 2 implicam 2 − x2n< 4 10n + 1 10n = 5 10n. Como 2 − x2n≥ 0, ent˜ao |x2n− 2| = 2 − x2 < 5 10n.
Assim, dado ε ∈ Q∗+ existe n0∈ N∗ tal que n0> 9ε5 −19 (Q ´e Arquimediano). Assim sendo, temos
que
∀n ∈ N, n ≥ n0 ⇒ |x2n− 2| <
5 10n < ε,
basta usar a desigualdade de Bernoulli. Portanto, x2
n → 2. Agora vamos provar que (xn) ´e uma
sequˆencia de Cauchy.
Acabamos de provar que (x2n) ´e convergente. Assim sendo, em consequˆencia do Teorema 3.25, segue que (x2n) ´e uma sequˆencia de Cauchy. Ent˜ao, dado ε ∈ Q∗+ existe n0 ∈ N∗ tal que
∀n, m ∈ N, n, m ≥ n0 ⇒ |x2m− x2n| < 2ε.
Mas, por distributividade, podemos concluir que
|xm− xn||xm+ xn| = |x2m− x2n| < 2ε ⇒ |xm− xn| <
2ε |xm+ xn|
.
Como |xm+ xn| > 2 (ver constru¸c˜ao de (xn)), ent˜ao, para todo m, n ≥ n0, temos
|xm− xn| < 2ε |xm+ xn|
< 2ε 2 = ε. Isto nos mostra que (xn) ´e de Cauchy em Q.
Suponhamos, finalmente, que existe um n´umero racional ab tal que xn→ ab, ent˜ao, pelo Teorema
3.20, chegamos a x2n → a b
2
. Por´em, j´a provamos que x2n → 2. Como o limite de uma sequˆencia de n´umeros racionais ´e ´unico, de acordo com a Proposi¸c˜ao 3.21, ent˜ao a
b 2
Cap´ıtulo 4
Constru¸c˜ao do N´umeros Reais
Neste cap´ıtulo, estudaremos a constru¸c˜ao dos chamados n´umeros reais a partir dos n´umeros racionais atrav´es de dois m´etodos diferentes: Cortes de Dedekind e Sequˆencias de Cauchy (referimos a [5, 6, 7, 8, 10]).
4.1
Constru¸c˜ao por Cortes de Dedekind
Permita-nos come¸carmos a constru¸c˜ao dos n´umeros reais pelos famosos cortes de Dedekind. ´E importante ressaltar que a teoria desenvolvida no cap´ıtulo anterior ´e imprescind´ıvel para o enten- dimento desta se¸c˜ao.