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Mapa 7- Índice de probabilidade de escravidão

2 TRABALHO ESCRAVO: PERSPECTIVAS DE ESTUDO

2.4 Caracterização

2.4.4 Servidão por dívida

A quarta hipótese caracterizadora do trabalho em condições análogas às de escravo é a servidão por dívida ou restrição da locomoção em função da dívida. A referida hipótese também traz o cerceamento da liberdade de ir e vir do trabalhador. Neves (2012, p. 53) assim elucida esta quarta hipótese: “[...] caracteriza-se pelo impedimento de encerrar o contrato de trabalho, sendo o trabalhador compelido a permanecer nas fazendas até saldar a falsa dívida contraída” (NEVES, 2012, p. 53).

É inegável reconhecer que quando ocorre a restrição da locomoção do trabalhador em função de suposta dívida contraída, tem-se a clara violação ao que dispõe o art. 5º, LXVII da CF/88, que prevê que “não haverá prisão civil por dívida,

salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Do mesmo modo, também é violado o disposto no art. 7º do Pacto de São José da Costa Rica. A ONU, por meio da Convenção

Suplementar sobre a Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, em seu art. 1º, assim conceitua a servidão por

dívida:

A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação de dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida.

Ainda sobre a conceituação de servidão por dívida, Sharma (2008, p. 40) define:

Ocorre quando uma pessoa empenha sua mão-de-obra em troca do pagamento de comida e de remédios, por motivos familiares etc. e, uma vez contraída a dívida, perde controle sobre suas condições de trabalho ou sobre a remuneração que deveria receber, caindo em uma armadilha, em condições de escravidão. A quitação da dívida é extremamente dificultada pelo artifício de acrescentar despesas adicionais com comida e aluguel, de forma que o trabalhador mal tem acesso ao salário a que teria direito.

No que tange à antecipação pecuniária que ocorre no recrutamento, Martins explica que a mesma é o estímulo para o estabelecimento da relação, destacando que é também “a fonte originária da escravidão por dívida”. De acordo com o mesmo autor, tal situação expõe “formas coercitivas de trabalho com base em engajamentos voluntários” (MARTINS apud BRITO FILHO, 2004, p. 76).

O pagamento dessa antecipação em dinheiro durante a arregimentação serve para o trabalhador deixar sua família em condições de sobreviver, mesmo que por um período curto de tempo, ou até mesmo para pagar suas dívidas contraídas nas pensões onde permanece hospedado à espera de trabalho.

Nesse ponto, a OIT (2001, p. 27), ao tratar da situação no Brasil, afirma que:

Apanhados num ciclo de servidão por dívida, perdem o contato com suas famílias e passam a viver em trânsito constante de uma situação de exploração do trabalho para outra. Tornam-se dependentes de hospedarias, em que se alojam entre um trabalho e outro e onde o consumo de álcool é muito comum. Essas hospedarias podem servir como ponto de recrutamento, funcionando em conluio com os gatos, que os levam para as propriedades agrícolas.

Brito Filho (2004, p. 76-78), em trabalho publicado na Revista do Ministério Público do Trabalho, narra as condições de trabalho no sul do Pará, in litteris:

Arregimentados os trabalhadores, são os mesmos conduzidos para o trabalho, normalmente em locais de difícil acesso, tanto que é necessário aguardar o final da época das chuvas para que as estradas fiquem transitáveis, ainda que em condições precárias.

Lá, iniciam o trabalho, que foi contratado anteriormente, já com dívidas para com o seu empregador.

É que ao arregimentar os trabalhadores, o gato já antecipa parte do valor ajustado pelo trabalho, que o obreiro já deixa, ao menos em parte, com sua família, se o tiver, o que o torna devedor antes de iniciado o trabalho. Além do mais, os equipamentos de trabalho – o que não guarda qualquer amparo legal – são cobrados, bem como normalmente são fornecidos equipamentos e bens indispensáveis para a sobrevivência do trabalhador, tais como redes de dormir, lona para as barracas, utensílios de cozinha, mantimentos, o que ocorrerá por todo o tempo que durar o trabalho, e o que torna o trabalhador um eterno devedor, até porque os preços cobrados são altos, quando não simplesmente abusivos.

Essa situação, que se traduz na insatisfação dos obreiros, ou de parte deles, depois de algum tempo, os leva a abandonar o trabalho, o que às vezes não é permitido, ao argumento do gato ou do proprietário de que não pode haver o distrato se ainda existem dívidas para serem saldadas – situação esdrúxula, onde aquele que oferece sua força de trabalho é quem possui dívidas para com a outra parte.

E aqui pode aparecer o mais grave dos problemas no trabalho subordinado na região, que é o trabalho forçado, comumente denominado de trabalho

escravo [...]

É certo que os trabalhadores no sul do Pará não iniciam o trabalho de maneira forçada, mas sim voluntariamente – embora sua vontade seja viciada pelas circunstâncias que os levam a aceitar a oferta do gato – ; é durante sua execução que isso pode ocorrer, impedindo-se o trabalhador de deixar o local de trabalho.

Na verdade, esse mecanismo de exploração, muitas das vezes, junta-se à ética dos trabalhadores, os quais, por falta de conhecimento básico sobre os seus direitos, sentem-se moralmente obrigados a quitar suas dívidas, tendo em vista que, no meio rural, a honestidade é considerada um valor fundamental, portanto acabam “concordando” com a obrigação, tendo que trabalhar para pagar as referidas dívidas.

Sobre a situação acima evidenciada, Neves (2012, p. 55) comenta:

De fato, tem-se nessa hipótese um vício de consentimento quando falamos em “concordância” com a dívida, que não é suficiente para afastar o crime, tendo em vista que estes trabalhadores não possuem consciência de seus direitos fundamentais, os quais são irrenunciáveis, inegociáveis e inalienáveis.

Estudadas as hipóteses caracterizadoras dos modos típicos de configuração do crime, passa-se a analisar os meios por equiparação, que têm por escopo principal a manutenção dos obreiros no local de trabalho.