• Nenhum resultado encontrado

Mapa 7- Índice de probabilidade de escravidão

2 TRABALHO ESCRAVO: PERSPECTIVAS DE ESTUDO

2.4 Caracterização

2.4.1 Trabalho forçado

A OIT, em suas publicações, utiliza a expressão trabalho forçado, também denominado de trabalho obrigatório, para classificar “o ato no qual alguém desrespeita os direitos do trabalhador, atingindo sua integridade física e moral, sua

dignidade e o seu direito à liberdade e auto-gestão”. Pode-se, ainda, encontrar a denominação trabalho compulsório como sinônimo dessa forma de superexploração do trabalho. Entretanto, para se evitar o uso irrestrito das expressões e até mesmo uma confusão entre as diversas formas, será utilizada a expressão que está prescrita no texto da legislação brasileira: trabalho forçado.

Sobre o trabalho forçado, Belisario (2005, p. 102) explica que:

Desse modo, trabalho forçado é aquele realizado sob ameaça, justificando porque o legislador incluiu a vigilância ostensiva e o apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho, como condutas incriminadoras do plágio, bem como o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, para retê-lo no local de trabalho. Com efeito, as condutas elencadas nos incisos I e II do § 1º do art. 149 do CP são figuras típicas assemelhadas ao trabalho forçado.

Em 1957 a OIT elaborou convenção especial sobre a abolição do trabalho forçado e obrigatório. Analisando o dispositivo da convenção nº 105 ficou evidenciado que já havia, na época, por parte da entidade, preocupação com a abolição imediata da escravidão, visto que quase todos os países do mundo haviam abolido esta forma indigna de trabalho desde o final do século XIX. Porém, passada mais da metade do século sucessor, constatava-se ainda a ocorrência de mão-de- obra escrava. A convenção proibia a exploração por parte dos Estados membros, bem como determinava a adoção de medidas que inibissem e punissem a utilização por particulares. Menciona o art. 1º que:

Todo o Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção compromete-se a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório e a não o utilizar sob qualquer forma:

a) quer por medida de coerção ou de educação política, quer como sanção a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas ou manifestem a sua oposição ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida;

b) quer como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra com fins de desenvolvimento econômico;

c) quer como medida de disciplina do trabalho; d) quer como punição, por ter participado em greves;

e) quer como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.

A marca característica do conceito de trabalho forçado apresentado pela OIT é a liberdade. Assim, pela análise detida do referido conceito, observa-se que a vontade do trabalhador resta comprometida, uma vez que não lhe é permitida de

forma espontânea aceitar ou não o trabalho, ou ainda a qualquer tempo decidir sua permanência.

No que tange ao cerceamento da liberdade no trabalho forçado, Melo (2007, p. 67) explica:

Frizamos que o trabalho forçado também se caracteriza pela restrição de locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Essa, sem dúvida, uma das práticas mais comuns da escravidão contemporânea. A vítima, aliciada mediante promessas enganosas, é recrutada para trabalhar em regiões distantes do seu domicílio ou residência, trazendo consigo a dívida contraída com o “gato”2, seja pelo transporte ou pelo adiantamento de salário concedido ao trabalhador para deixar guarnecida sua família.

Ocorre que no local onde os trabalhadores vão prestar os serviços, os mesmos são coagidos a pagar todas as despesas contraídas como: os equipamentos de proteção individual (quando fornecidos), ferramentas que serão utilizadas na execução do trabalho, alimentação, vestuário e outros gêneros que necessitem. Sobre o assunto, Neves (2012, p. 49) explica que “o trabalhador é obrigado a permanecer na fazenda contra sua vontade, trabalhando para quitar a dívida com o patrão, sob condições precárias de trabalho, higiene, alimentação e saúde”.

Ressalta-se que todos os produtos adquiridos por eles, além de serem vendidos exclusivamente pelo empregador ou seu preposto, por preços muito superiores aos praticados no mercado, conhecidos como truck system, “política de barracão”, guardando também grande semelhança com o “sistema de aviamento” utilizado no século XIX na Amazônia durante o ciclo da borracha como forma de explorar o trabalhador.

Configura-se, então, um regime de medo, onde os demais componentes do grupo sentem-se intimidados pelas agressões aplicadas pelos exploradores. Há vezes em que as denúncias são acompanhadas por notícias de desaparecimentos, o que consideramos uma realidade absurda em um país onde a Carta Magna considera como princípios fundamentais a vida, a dignidade da pessoa humana, o

2

Brito Filho explica que “gato é a denominação utilizada para o responsável pela arregimentação dos trabalhadores. Ele, embora se apresente e, às vezes, seja considerado como espécie de empreiteiro, nada mais é que um simples preposto do verdadeiro tomador dos serviços, via de regra o proprietário do imóvel rural onde serão realizados os serviços” (Trabalho decente: Análise jurídica da exploração do trabalho – trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. ( LTr, 2004, p. 76).

valor social do trabalho (art. 1º, III e IV da CF) e a inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput).

Destarte, Melo afirma que o elemento que dá eficácia a essa espécie de redução à condição análoga à de escravo é a coação, que em sua concepção pode ser moral, psicológica ou física. Para o autor, “a coação é moral quando se induz o trabalhador a acreditar ser um dever a permanência no trabalho; é psicológica quando a coação deriva de ameaças; e física quando for procedente de violência física” (MELO apud BRITO FILHO, 2004, p. 75).

Nesses aspectos, Brito Filho (2004, p. 75) aponta que:

Não se deve dar, dessa forma, ao “e” que une as duas hipóteses, a condição de conjunção aditiva. É que o trabalho forçado caracterizar-se-á tanto quando o trabalho é exigido contra vontade do trabalhador, durante sua execução, como quando ele é imposto desde o seu início. O trabalho inicialmente consentido, mas que depois se revela forçado, é comum nessa forma de superexploração do trabalho no Brasil e não pode deixar de ser considerado senão como forçado.

É importante atentar ao fato de que no trabalho forçado, não se pode afirmar que somente o princípio da liberdade é ferido. Da mesma forma há violação ao princípio da legalidade, visto que a manutenção forçada do trabalho age em sentido contrário ao que é previsto expressamente em lei. O da igualdade também é desrespeitado, porque se dá ao “trabalhador escravo” um tratamento distinto daquele que é dispensado a outras pessoas. Por último, tem-se a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana que é de onde derivam todos os outros princípios, pois, quando se retira do trabalhador o direito de escolha e, muitas das vezes, dá-se tratamento semelhante a outros seres e objetos, ofende-se sua dignidade.

Retomando a análise sobre o momento em que a liberdade no trabalho deixa de existir, pois, como exposto, nem sempre desde a celebração do contrato, o trabalho se configura forçado. Há muitos casos, e eles predominam no caso do Brasil, onde não há coerção quando o trabalhador é arregimentado, exceto aqueles decorrentes de sua própria condição de vida, de sua própria miséria.

No que tange à liberdade no exercício e manutenção do trabalho, pode-se dizer que geralmente o trabalhador aceita o trabalho, por força de algumas circunstâncias. No entanto, a existência desse ato voluntário não afasta a

possibilidade de que, no curso da relação de trabalho, o mesmo possa ser tipificado como trabalho forçado, desde que haja o cerceamento da liberdade do trabalhador.

Retornando à classificação apresentada por Melo, pode acontecer de o trabalhador permanecer no trabalho porque se sente obrigado a pagar a dívida, produzida fraudulentamente ou não; isso representará o trabalho forçado pela coação moral.

Pode ocorrer de o trabalhador, devedor ou não, não poder deixar o local de trabalho por estar sendo ameaçado de violência ou de outras retaliações; aí estará configurado o trabalho forçado pela coação de ordem psicológica. Essa hipótese representa o caso do § 1º, inciso II, do artigo 149 do CP, que trata do trabalho forçado por equiparação, quando há vigilância ostensiva no local de trabalho ou retenção de documentos e objetos pessoais do trabalhador, com o intuito de mantê- lo no local de trabalho, representando, assim, formas de intimidação.

Por último, há a possibilidade de ocorrer a violência física propriamente dita, quando o trabalhador tenta abandonar o local de trabalho, mas é impedido fisicamente, restringindo-se a sua liberdade de locomoção ou, até mesmo, atentando contra sua própria vida. Essa coação física está prevista no inciso I do § 1º do art. 149 do CPB, pois existe o cerceamento da utilização de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com a finalidade de retê-lo no local de trabalho, restringindo sua liberdade de locomoção.

Ressalta-se que existem várias formas de trabalho forçado. Importante se faz explicar que a OIT identifica essas formas em dois grupos. O primeiro representa o trabalho forçado para fins de produção ou serviço, como quando o Estado exige o trabalho obrigatório em algumas ocasiões. O segundo refere-se ao trabalho forçado como castigo, que tem como exemplo clássico o trabalho forçado nas prisões, utilizado como um componente do cumprimento da pena imposta. A hipótese mais encontrada no Brasil está enquadrada no primeiro grupo, ou seja, o trabalho forçado para fins de produção. A principal diferença dessa hipótese encontrada no Brasil para boa parte dos outros países, reside no fato de que em nosso país os tomadores de serviço são privados, praticando ato não admitido pelo nosso ordenamento jurídico, enquanto que em outros países geralmente quem o exige é o Estado.