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Fabricação Própria, foi inspirada em um dos vídeos (IMG. 46). E o mesmo aconte- ce no ano seguinte, 2008, através da sessão Retrato Falado, que além dos seis cur- tas-metragens que falavam, em sua maioria, da experiência de mudança de sexo, também apresentou quatro longas-metragens. Destes, cinco curtas e um longa eram brasileiros, documentários e dramas que procuravam mostrar as dificuldades de quem precisa adequar-se ao próprio corpo ou adequá-lo às suas próprias realida- des locais. Conforme o texto de apresentação do programa Retrato Falado no catá- logo da 16ª edição (2008):

É fato mais do que consumado que a sociedade global ainda não está preparada para lidar naturalmente com transexuais e para respeitá-los/las. Nos últimos anos, vários foram os documentários de diferentes origens que exploraram pequenas variações da mesma série de grandes obstáculos enfrentados: para se assumir, para entender seu corpo, para ser aceito por familiares e amigos, para definir um lugar na sociedade, para existir como cidadão útil e atuante. A sessão Retrato Falado dá voz a eles/as, e a voz geralmente sai em forma de desa- bafo. É curioso notar, entre as obras nacionais selecionadas, o fato de elas virem de cantos do país, demonstrando que essa discussão, de modo geral, inquieta o brasileiro. Há também duas cineastas que fizeram de seus processos de mudança de sexo matéria-prima para obras confessionais e desafiadoras: Carolina Valência, em A Mulher-Vudu (CAN, 2008), e Gwen Haworth, em Ela é um garoto que conheci (CAN, 2007). Haworth, aliás, é a exceção que confirma a regra: seu filme é alto astral e bem humorado, destrinchando de forma pitoresca sua adaptação à nova realidade feminina. Mas não são todos que contam com esse suporte artístico e psicológico para se sentir bem na própria pela. Esse retrato precisa deixar de ser falado para ser aceito e assumido. (MIX BRASIL, 2008: 66)

No pequeno texto de catálogo, o festival esboça suas principais características e nos aponta a produção de uma transnacionalidade que une as experiências trans- gêneros não só através dos seus corpos, mas também num contexto de “sociedade global” em que as diferentes experiências são “pequenas variações da mesma série de grandes obstáculos”, frente à necessidade de “definir um lugar na sociedade”. Cada uma das expressões em destaque talvez possa ser desafiada pelas próprias experiências que esses filmes trazem, de sujeitos que encontram seu “lugar social” não necessariamente como “cidadãos úteis e atuantes”, mas também como sujeitos que pela própria marginalidade das posições que ocuparam e de onde fizeram a diferença.

Os filmes brasileiros que fizeram parte da mostra Retrato Falado, de 2008, tra- ziam a vida de personagens famosos da cultura brasileira, como no média- metragem Tomba Homem (dir.: Gibi Cardoso, BRA, 2008), biografia da travesti de 73 anos e que foi “contemporânea de Madame Satã, Cintura Fina e Hilda Furacão” (MIX BRASIL, 2008: 70), mas também as dificuldades que atravessam travestis em suas cidades do interior e no contato com suas famílias (Geni, dir.: Marco Gomes de Alencar, BRA, 2008), ou as transexuais na expectativa de realização da “cirurgia de adequação sexual” (Ser mulher, dir.: Luciano Coelho, BRA, 2007). A mostra também trouxe um tema que também começou a se tornar mais frequente, a tran- sexualidade “female to male” que aparecia com dois curtas: O corpo conforme (dir. Letícia Marques, BRA, 2008) e Eu sou homem (dir. Márcia Cabral, BRA, 2008)

enfocavam a experiência de sujeitos que “perambulam pelo mundo como homem tendo corpo e nome de mulher” (idem).

Mas a história de Janaína Dutra, advogada de Canindé no Ceará, “primeira tra- vesti a portar uma carteira profissional da Ordem dos Advogados do Brasil”, parece destoar e desafiar as narrativas quase tradicionais deste campo. Falecida em 2004, Janaína presidiu a Associação de Travestis do Ceará e a Articulação Nacional dos Transgêneros. O vídeo Mrs. Janaína: “Eu sou aquilo que seus olhos veem” (dir.: Flávio Lopes e Davi Cavalcanti, BRA, 2006) documenta uma de suas últimas decla- rações públicas, apresentado em forma de manifesto político. Não tive oportunida- de de assisti-lo, nem tive acesso a este vídeo em espaços como a internet, mas con- segui uma transcrição de um trecho deste texto de Janaína que é utilizado por gru- pos como a Associação de Travestis de Salvador (Atras) em seus manifestos:

É mais fácil você contratar um advogado que fale grosso, que coce o saco, do que essa me- tamorfose ambulante, esse objeto não identificado que, quando você olha diz: é um homem é uma mulher é uma sereia, é um tubarão, é um macho, é uma fêmea? E o que me faz sentir bem com a minha travestilidade é essa androginia que passo para as pessoas, de não ter um contexto, uma definição. Eu sou aquilo que os seus olhos veem. (Janaína Dutra) 101. O festival assim torna-se tanto espaço dos discursos conciliadores e o clamor por aceitação, conforme o texto do catálogo de 2008 citado acima, como também é espaço de discursos desafiadores às lógicas da aceitação e mais voltados à “vertigem da performance” e o “reconhecimento da contingência radical da relação entre sexo e gênero”, conforme já nos referimos citando Butler ([1990] 2003:196-7; grifos da autora), e da qual o texto de Janaína Dutra é exemplar. Experiências de descentra- mento como a dela e a reivindicação de falar de um lugar que não precisa “ter um contexto, uma definição” e que se serve das próprias ambiguidades que os olhos dos outros constroem, nos remetem à centralidade do corpo nas “culturas da mar- gem”, conforme Maluf (2002) em sua análise do filme Tudo sobre minha mãe (dir. Pedro Almodóvar, ESP, 1999). Segundo a autora, o filme de Almodóvar faz parte de uma linhagem de filmes na qual ela inclui Priscilla, a Rainha do deserto (dir. Stephan Elliot, AUS/GBR, 1994) e Num ano de treze luas (dir.: Rainer Fassbinder, ALE, 1978):

Uma linhagem de filmes sobre as transgressões das fronteiras de gênero marcadas não pelo desejo de aparência (parecer ser o oposto do que não se quer ser), mas pelo desejo de “apa- recência” (desejo de aparecer), desejo de evidência de uma corporalidade construída. (MA- LUF, 2002: 146)

São filmes que se opõem a produções que “têm como tema a tensão entre ocul- tamento e descoberta”, caso de Meninos não choram (dir.: Kimberly Pierce, EUA, 1999) e de outros do “mainstream hollywoodiano” dos últimos anos. É também o