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MME CNPE

COMPOSIÇÃO DAS TARIFAS DOS SERVIÇOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA Parcela A

III. As novas faces da intervenção estatal

3.1 O SETOR ELÉTRICO E O GOVERNO FHC

Em 1995, Fe rna nd o He nriq ue C a rd o so , q ue ha via sid o ministro d a Fa ze nd a no g o ve rno Ita ma r Fra nc o , imp ulsio na d o p e lo s b o ns re sulta d o s d o Pla no Re a l100 e e le ito p e lo Pa rtid o d a So c ia l De mo c ra c ia Bra sile ira - PSDB,

to mo u p o sse c o mo Pre sid e nte d a Re p úb lic a p a ra um ma nd a to d e q ua tro a no s, re no va d o e m 1999, c o m o instituto d a re e le iç ã o101. No d isc urso p o lític o d a vitó ria , ta nto no p rime iro q ua nto no se g und o p e río d o d e

g o ve rno , fulg ura va a p ro me ssa d e q ue :

[...] a e sta b ilid a d e mo ne tá ria – c o mo re sulta d o d o c o mb a te à infla ç ã o , d e finid o c o mo o b je tivo p rio ritá rio d o p a ís – a b riria a s p o rta s d o Bra sil p a ra a re to ma d a d o d e se nvo lvime nto e c o nô mic o inte rro mp id o uma d é c a d a a nte s, p a ra a c he g a d a d e inve stime nto s e stra ng e iro s p o rta d o re s d a mo d e rnid a d e te c no ló g ic a , p a ra a g e ra ç ã o d e e mp re g o s, p a ra uma p o lític a d e re d istrib uiç ã o d e re nd a – te rmina nd o c o m a infla ç ã o , d e finid a c o mo ‘ um imp o sto c o ntra o s p o b re s’ – e , fina lme nte , p a ra o a c e sso d o p a ís a o p rime iro mund o ” (SADER, 2003, p .151).

Emb o ra a s me d id a s g o ve rna me nta is te nha m surtid o o s e fe ito s e sp e ra d o s na o b te nç ã o d a a lme ja d a e sta b ilid a d e mo ne tá ria , nã o c o nse g uira m p ro d uzir o e sp e ra d o d e se nvo lvime nto e c o nô mic o e a me lho ria d o s ind ic a d o re s so c ia is d o p a ís:

Tudo parece travado pela forte concentração de energia na estabilidade monetária e numa fileira de reformas e ajustes extraídos do receituário de agências financeiras internacionais, portanto revestidos de uma pretensa validade universal. Com isso, não se registraram modificações consistentes na posição relativa da área social, que continua inferiorizada diante da área econômica, desprovida de uma melhor institucionalidade e incapacitada para se impor em termos de estratégica governamental (NOGUEIRA, 1998, p.173).

Ainda no governo Collor, a desarticulação institucional e econômica do SEB já

produzia efeitos preocupantes para a sociedade, como a perda da capacidade de realizar a

expansão e melhoria dos serviços, dando a sustentação necessária para o início do

planejamento da privatização do setor, aos poucos, com o apoio de técnicos do Fundo

Monetário Internacional – FMI, Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e Banco

Mundial, devido às resistências do Congresso e da sociedade.

Entretanto, seria no governo FHC que a privatização do SEB viria a se efetivar no

âmbito da Lei 9.074/1995, momento em que os ideais do chamado Consenso de

100

Programa de estabilização de preços implementado no Brasil em meados de 1994 e que teve por fundamentos a ancoragem cambial e a implementação de políticas econômicas de fundo liberal.

101

A Constituição Federal previa um mandato presidencial de 5 anos com vedação à reeleição. Fazendo valer a maioria governista no Congresso Federal o governo FHC conseguiu aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição alterando o mandato para 4 anos com direito à candidatura para reeleição sem afastamento do cargo durante o processo eleitoral.

Washington102 encontraram terreno fértil corroborando o entendimento de que a partir das

crises econômicas internacionais a maioria dos países latino-americanos foi obrigada a partir

para políticas de ajuste macroeconômico focadas em pagar a dívida e abrir a economia,

exigências que demandariam uma adequada política cambial e o enxugamento do Estado,

receituário aviado pelos organismos financeiros internacionais (CANO, 1993)103.

Com relação ao SEB, portanto, o governo FHC, seguindo essa mesma trilha, ficou

caracterizado por um amplo processo de reestruturação, em busca de uma conformação da

intervenção estatal em um viés indireto, marcado por palavras de ordem como privatização,

desregulamentação e abertura para o mercado, refletindo nesse segmento específico da vida

do país todo um conjunto de políticas de ajustamento econômico, que orientaram a ação dos

governantes brasileiros, a partir da década de 1990, na gestão da economia.

Assim como ocorreu no plano econômico, o resultado evidenciado dessas ações foi uma

distância entre o discurso do governo e os efeitos práticos, que se mostraram distantes das

respostas esperadas pela sociedade. Eventos adversos, como a retração dos investimentos, o

aumento das tarifas de energia e, principalmente, a redução compulsória do fornecimento de

energia elétrica aos consumidores finais, decretada pelo Poder Concedente no biênio 2001-

2002 (racionamento), se tornaram indicadores da insuficiência, ou inadequação, das soluções

implementadas pelo Estado para o setor elétrico brasileiro.

Ao c he g a r a me a d o s d o s a no s 1990, o SEB c o nse rva va uma o rg a niza ç ã o na q ua l o Esta d o se d e sta c a va c o mo o g ra nd e re sp o nsá ve l p e lo p la ne ja me nto , c o nstruç ã o , o p e ra ç ã o e e xp a nsã o d o s se rviç o s d e e le tric id a d e d o p a ís, re sq uíc io d e uma a rq uite tura c o nc e b id a a p a rtir d o g o ve rno Va rg a s, e q ue a lc a nç o u se u á p ic e d ura nte o s g o ve rno s milita re s. A p o lític a e ne rg é tic a e ra fo rmula d a p e lo MME q ue , p o r sua ve z, a p o ia va -se e m uma e strutura fo rma d a p o r d ua s e ntid a d e s p rinc ip a is, o DNAEE e a ELETRO BRÁS. O DNAEE e ra o ó rg ã o re g ula d o r d a s a tivid a d e s se to ria is e re sp o nd ia p e la sup e rvisã o e fisc a liza ç ã o d o s se rviç o s d e e ne rg ia e lé tric a ,

ho mo lo g a ç ã o d o s níve is ta rifá rio s e o uto rg a d e c o nc e ssã o o u p e rmissã o p a ra e xp lo ra ç ã o d e p o te nc ia is

102

Em 1989 o economista John Williamson compilou uma lista das medidas de política econômica mais recomendadas por analistas para fazer a América Latina retomar o crescimento e a estabilidade e que incluíam: disciplina fiscal, reforma tributária, desregulamentação da economia, liberalização das taxas de juros, taxas de câmbio competitivas, revisão das prioridades dos gastos públicos, maior abertura ao investimento estrangeiro direto e fortalecimento do direito à propriedade.

103 Cano(1993) se refere no texto ao FMI e ao Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento –

BIRD, pertencente ao grupo do Banco Mundial. Abreu (1999), de forma detalhada, analisa a reestruturação do setor elétrico brasileiro sob o enfoque da implementação das opções do Banco Mundial.

hid re lé tric o s. A ELETRO BRÁS e ra o b ra ç o e mp re sa ria l d o Esta d o , a g e nte d e fina nc ia me nto se to ria l q ue , a lé m d e e xe rc e r a s d e c isõ e s d e inve stime nto e sta ta l, c ump ria a s funç õ e s d e c o o rd e na ç ã o , p la ne ja me nto e o p e ra ç ã o d e to d o o siste ma e lé tric o na c io na l, inc luind o a s e mp re sa s e sta d ua is e a s p e q ue na s c o nc e ssio ná ria s d e c a p ita l p riva d o .

No mo me nto e m q ue a s fa lha s e xiste nte s no func io na me nto d o SEB, fo ra m se e xa c e rb a nd o c o m o c o ntínuo p ro c e sso d e d e te rio ra ç ã o d o e q uilíb rio e c o nô mic o -fina nc e iro d e sua s e mp re sa s, inic ia d o a ind a na d é c a d a d e 1970, fic o u e vid e nte a fa d ig a d o a ntig o mo d e lo c a lc a d o no p a p e l ind uto r d o Esta d o e a

ne c e ssid a d e d e uma no va fo rma ta ç ã o instituc io na l-re g ula tó ria p a ra o se to r, q ue p e rmitisse o a va nç o p a ra um no vo e stá g io d e d e se nvo lvime nto , g a ra ntid o r d e uma o fe rta d e e ne rg ia a p ta p a ra a te nd e r a um c re sc ime nto d o c o nsumo d e e ne rg ia e m p a ta ma re s, p o r ve ze s, sup e rio r a o p ró p rio c re sc ime nto e c o nô mic o re g istra d o104,

d e sa fio q ue se mp re se a p re se nto u a o p a ís e m fa c e d a sua e xte nsã o te rrito ria l e p o te nc ia l hid rá ulic o a se r e xp lo ra d o :

[...] a c rise fina nc e ira d o Esta d o [...] c o lo c o u e m q ue stio na me nto sua c a p a c id a d e d e c o ntinua r c o nd uzind o p ro g ra ma s d e inte re sse d o d e se nvo lvime nto na c io na l. Essa c rise fe z e me rg ir um d e b a te e m to rno d a re d uç ã o d a p a rtic ip a ç ã o d o Esta d o na a tivid a d e e c o nô mic a , a b rind o e sp a ç o s à inic ia tiva p riva d a . No se to r e ne rg ia , o d e b a te

e sta tiza ç ã o x p riva tiza ç ã o c o lo c o u e m p a uta q ue stõ e s imp o rta nte s, c o mo o p a p e l d a inic ia tiva p riva d a na ind ústria d e e ne rg ia e lé tric a (RO MEU; FRANC O , 1989, p . 180).

De ssa fo rma , c o m o e sg o ta me nto d o Esta d o se junta nd o a s o utra s va riá ve is e le nc a d a s a o lo ng o d e ste e stud o , o c o rre u a c o mp o siç ã o d e um c e ná rio q ue sina liza va na d ire ç ã o d e um no vo mo d e lo instituc io na l- re g ula tó rio p a ra o se to r e lé tric o . Esse mo d e lo , e ntre ta nto , a o se r imp le me nta d o , nã o le vo u e m c o nta o c a minho a b e rto p e lo s re sulta d o s p o sitivo s d o REVISE e o b se rvo u a me sma o rie nta ç ã o p o lític o -e c o nô mic a d o mina nte no mo me nto histó ric o d o p a ís, a b rind o e sp a ç o p a ra a p riva tiza ç ã o d a s e mp re sa s e sta ta is, a insta ura ç ã o d e um me rc a d o c o mp e titivo d e e ne rg ia e lé tric a , a p rio riza ç ã o d a p a rtic ip a ç ã o d o se to r p riva d o no s inve stime nto s p a ra e xp a nsã o d o s se rviç o s e a re visã o d o p a p e l d o Esta d o no SEB. Alg uma s d a s me d id a s a tine nte s a o no vo mo d e lo fo ra m to ma d a s ind e p e nd e nte me nte d o fa to d o SEB a p re se nta r e sp e c ific id a d e s e stra té g ic a s q ue nã o p o d e ria m se r re le va d a s.

As Le is 8.987 e 9.074, a mb a s d e 1995, via b iliza ra m o iníc io d a p riva tiza ç ã o d o se to r e lé tric o à me d id a q ue re g ula me nta ra m a C o nstituiç ã o Fe d e ra l e a b rira m o c a minho p a ra a imp le me nta ç ã o d e um no vo mo d e lo p a ra o SEB, c o m me d id a s q ue :

a) exigiam que as concessões para fornecimento de serviços relacionados à energia

fossem outorgadas por meio de processos de leilão público;

b) permitiam gradualmente a contratação de energia livremente junto a outros

fornecedores por parte de alguns consumidores de porte mais significativo;

c) criaram a figura do produtor independente de energia que, por meio de uma

concessão, permissão ou autorização, poderia vender a energia que gerasse e

d ) g a ra ntia m o livre a c e sso d o s usuá rio s a o s siste ma s d e d istrib uiç ã o e tra nsmissã o d e e ne rg ia , me d ia nte p a g a me nto d o se rviç o , fa vo re c e nd o a o p e ra ç ã o d e c o nsumid o re s livre s e p ro d uto re s ind e p e nd e nte s.

Em 1996, p a ra d e se nvo lve r a s b a se s d a re e strutura ç ã o d o se to r e lé tric o , e m c o mp le me nto a o s sina is já e mitid o s c o m a p ub lic a ç ã o d a s c ita d a s Le is, fo i c o ntra ta d a p e lo g o ve rno b ra sile iro uma c o nsulto ria

inte rna c io na l (C o o p e rs & Lyb ra nd , d a Ing la te rra ), q ue se c o nso rc io u c o m e mp re sa s b ra sile ira s (Ulho a C a nto , Eng e vix e Ma in Eng e nha ria ), p o r uma p ro p o sta fina l d e c e rc a d e US$ 7 milhõ e s. O tra b a lho fic o u c o nhe c id o

104

“Historicamente, a expansão da produção e consumo de energia no Brasil – e nas economias modernas – ocorre em taxas muito superiores ao crescimento do produto e da renda. Em parte isso ocorre devido a mudanças graduais decorrentes de processos de urbanização e incorporação crescente da utilização de aparelhos movidos a energia elétrica” (TENDÊNCIAS, 2003, p. 92).

p e lo no me d e Pro je to RE-SEB105 e fo i o re sp o nsá ve l p e la c o nc e p ç ã o d e um mo d e lo p riva tiza d o e c o mp e titivo ,

b a se a d o , e m sínte se , na intro d uç ã o d e um a mb ie nte d e tra nsa ç õ e s fina nc e ira s e nvo lve nd o a e ne rg ia e lé tric a (me rc a d o a ta c a d ista ) e d e um o rg a nismo re sp o nsá ve l p e la imp a rc ia lid a d e na g e stã o té c nic a d o siste ma e lé tric o (O NS), fa to re s q ue , a o la d o d a intro d uç ã o d e me c a nismo s re g ula tó rio s re p re se nta tivo s d e uma inte rve nç ã o ind ire ta d o Esta d o , p re te nd ia m g a ra ntir o s a lic e rc e s d e uma no va o rd e m p a ra o se to r.

Esse modelo institucional-regulatório para o SEB, articulado durante o primeiro

governo FHC, implementou a concorrência nos segmentos em que isso era possível (geração

e comercialização), mantendo a exclusividade nas atividades monopolistas por natureza

(distribuição e transmissão) e observou o espectro da energia tratada como mercadoria, da

operação independente do sistema elétrico e da presença de mecanismos de regulação que

garantissem o correto funcionamento do sistema energético.

Colocou-se, por fim, uma solução que preconizava a falência do Estado em seu papel

de catalisador das ações do setor elétrico, a deterioração da qualidade dos serviços de

eletricidade que eram prestados por empresas estatais e a necessidade de se introduzir

competição em segmentos nos quais a atração de investimentos era essencial para a expansão

e melhoria da qualidade dos serviços.

A oficialização das medidas de reestruturação ocorreu com a promulgação da Lei

9.427/1996, criando a ANEEL e fixando o regime de serviço pelo preço e da Lei 9.648/1998,

estabelecendo a revisão da estrutura básica do setor elétrico conduzida pelo RE-SEB e

determinando, dentre outros pontos:

a) o estabelecimento do Mercado Atacadista de Energia Elétrica - MAE, para

contabilização e liquidação mercantil entre as empresas do setor elétrico das

contratações de energia realizadas, notadamente, das diferenças verificadas entre o

consumo total e a energia adquirida;

b) a criação de um órgão coordenador das atividades operacionais voltadas para a

geração e transmissão de energia no SIN: o ONS e

105 Para detalhes da funcionalidade do modelo ver (ROSA; TOLMASQUIM; PIRES; 1998) e (FERREIRA,

c) o estabelecimento de processos de licitação pública para concessão, construção e

operação de usinas de energia elétrica e instalações de transmissão.

Na prática, com a operacionalização do novo modelo, a compra de energia deveria ser

feita diretamente entre as empresas, por meio de contratos bilaterais, com as diferenças

contabilizadas, entre recursos contratados e requisitos verificados, sendo liquidadas no MAE,

ao preço de curto prazo (spot)106. A operação técnica do setor elétrico ficaria a cargo do ONS,

organismo criado para gerenciar o SIN, tanto em relação à exploração dos benefícios

proporcionados pela disposição dos recursos hidrológicos no país, quanto aos riscos de crise

de energia. Além disso, era esperado que a criação da ANEEL emitisse os sinais da

existência de critérios transparentes, participativos e consistentes no exercício da autoridade

estatal, essenciais para garantir as inversões oriundas do setor privado na prestação dos

serviços públicos de eletricidade.

Destacaram-se, nesse processo de reestruturação, características que evidenciavam a

quebra do paradigma quanto ao papel do Estado no setor elétrico, como a entrada de novos

agentes no mercado - produtores independentes e consumidores livres - e a liberalização das

atividades de geração e comercialização de energia, com a energia tratada como uma

commodity e, portanto, sujeita a mecanismos financeiros como mercado de futuros, swaps, opções, hedge e mercado spot107.

A criação da ANEEL, com funções como incentivar a competição, exercer a regulação

técnica e econômica do SEB e implementar as políticas do governo federal, se inseria em um

106

O preço spot, utilizado para valorar a compra e venda de energia no mercado de curto prazo, é calculado a partir do processamento pelo ONS de modelos de otimização do despacho do SIN e busca representar a estratégia de geração hidráulica e térmica que minimizaria o valor esperado do custo de operação para todo o período de planejamento.

107

Para maiores informações sobre novas perspectivas de negócios, envolvendo a comercialização de energia no reestruturado SEB, ver Guia do Cliente Livre. Duke Energy Brasil. Disponível em: <http://duke-energy.com.br>. Acesso em: 3 mai. 2006. Consultar também FIRMO, H. T. ; LEGEY, L. L. F. Mercados Futuros, Derivativos e

processo mais amplo pelo qual o papel reservado ao Estado era revisto e a sua substituição

pela iniciativa privada, na missão de catalisador de ações, demandaria a elaboração de um

marco regulatório consistente, isto sob a égide de um aparato institucional, pretensamente,

imune de ingerências estatais ou políticas que pudessem afetar o humor dos investidores108.

Esperava o governo que a introdução da regulação e da competição no setor, com a

privatização das empresas estatais, garantisse, pelo livre jogo das forças de mercado e o

aumento da eficiência das empresas, os investimentos necessários à expansão e melhoria dos

serviços prestados. Entretanto, o modelo implementado no governo FHC, baseado na

expectativa do avanço dos investimentos privados e na livre concorrência, não caminhou e

ruiu, em meio ao pior racionamento de energia da história do país:

[...] sobretudo em decorrência dessa fixação na produção de estatísticas macroeconômicas favoráveis, em especial de recursos no caixa do tesouro, gerados por privatizações aceleradas, para atender às expectativas de um sistema financeiro internacional atrelado à especulação de curto prazo. O longo prazo, o planejamento, a construção de agências de regulação e de um modelo energético ficaram em segundo plano, tal era a confiança na capacidade de a estabilização gerar ciclos virtuosos de investimento na infra-estrutura109.

Neste trabalho, no âmbito do governo Fernando Henrique Cardoso, analisamos três

aspectos centrais colhidos no episódio da reestruturação ocorrida no SEB, que entendemos

serem relevantes para as questões em estudo110. Esses aspectos denotam uma utilização do

SEB pelo Estado no processo de elaboração de políticas públicas, enquanto instrumento de

reforço na implementação das estratégias estatais, sem que, contudo, fossem levadas em

conta, de forma satisfatória, suas especificidades técnico-institucionais e as próprias

dificuldades inerentes às etapas do ciclo político.

São esses os pontos de discussão:

108

“A nova regulação é, sem dúvida, um instrumento de implementação de uma política pública num determinado setor” (MARQUES NETO, 2005, p.71).

109

Energia sem governo. Folha de São Paulo. São Paulo, 10 maio 2001. Editorial.

110

Os aspectos citados, que no âmbito deste estudo estão sendo explorados em um contexto de utilização do setor elétrico como veículo de políticas públicas, foram identificados e analisados anteriormente por outros autores que se dedicaram a analisar a evolução do SEB em diferentes momentos e enfoques. Dentre eles destacamos: (LORENZO, 2002; SOUZA, 2002; CARVALHO, 2003; FERREIRA, 2000; ROSA, 2001), além de (ROSA; TOLMASQUIN; PIRES, 1998).

a) descompasso verificado entre a privatização do setor elétrico e a montagem de uma

estrutura de planejamento e regulação dos serviços de eletricidade, sob a ótica de um

modelo de intervenção indireta do Estado;

b) utilização dos recursos das estatais do setor elétrico na formação de superávits

primários a partir do impedimento para a realização de novas inversões, buscando

fortalecer as contas públicas e reorganizar as empresas em compasso de privatização,

em detrimento da expansão da capacidade instalada e

c) adoção de um conceito de mercado auto-regulado para o SEB sem uma consideração

aprofundada das especificidades do serviço público de energia elétrica.

A partir de um diagnóstico desses pontos é possível estabelecer uma associação entre as

estratégias adotadas pelo Estado e o racionamento de energia, ocorrido no biênio 2001-2002,

que, pela relevância dos seus efeitos para a sociedade brasileira, deve ser entendido como o

reflexo maior de uma utilização política do SEB ao longo do governo FHC. Cooptando o

SEB como instrumento de implementação de políticas públicas voltadas, em última instância,

para a priorização de seus objetivos e metas, o Estado acabou por imputar ao país os reflexos

de um racionamento de inéditas proporções.

3.1.1 Descompasso entre privatização e reestruturação

Em relação ao primeiro problema citado, temos que, embora as empresas estatais

tenham sido listadas no PND em 1992, o processo de privatização do SEB sempre foi objeto

de amplos questionamentos, polarizando opiniões e posições em torno de quesitos tão

variados e importantes, quanto à soberania nacional ou os impactos tarifários para os

consumidores de energia.

conjuntura política abalada pelos escândalos de corrupção e durante o governo Itamar Franco,

pela posição pessoal do governante quanto ao papel do Estado no setor (mesmo em desacordo

com as diretrizes emanadas do Ministério da Fazenda e do Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES111), a privatização das empresas estatais de

eletricidade se revestiu, durante o governo FHC, de uma estratégia diferenciada para dar seus

primeiros passos. A decisão governamental foi por iniciar a privatização a partir das

concessionárias federais de distribuição de energia (ESCELSA e Light), que estavam sob o

controle da ELETROBRÁS, aproveitando inclusive uma sinalização positiva por parte dos

governos estaduais. Dessa forma, a ESCELSA foi vendida, em julho de 1995, e a Light em

maio de 1996112.

Ainda no fim de 1996 consuma-se a venda da primeira distribuidora estadual, a

Companhia de Eletricidade do Estado do Rio de Janeiro - CERJ, abrindo, definitivamente, o