MME CNPE
COMPOSIÇÃO DAS TARIFAS DOS SERVIÇOS DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA Parcela A
III. As novas faces da intervenção estatal
3.2 O SETOR ELÉTRICO E O GOVERNO LULA
Em 2003, o Brasil passou a ser governado por Luiz Inácio Lula da Silva, ex-operário,
com um passado de lutas pela causa trabalhista, eleito presidente a partir de uma campanha
eleitoral marcada pela defesa da necessidade de implantação no país de políticas de governo,
que permitissem um crescimento econômico sustentado e com justiça social.
Apesar de embalar o sonho de toda uma geração de brasileiros, que esperava ver com a
esquerda no poder uma mudança nos rumos do país, o cenário percebido pela sociedade, logo
após a sua posse, foi de continuidade das políticas do governo anterior, com as promessas de
campanha substituídas pela busca de credibilidade do governo petista junto aos agentes
financeiros internacionais:
Não deve haver dúvidas que a política econômica do Governo Lula é uma continuidade daquela posta em prática na era FHC. O seu perfil combina políticas macroeconômicas ortodoxas, e reformas liberais. Na sua essência a política visa obter a estabilidade e um ambiente institucional favorável à operação da economia de mercado. A estabilidade, macroeconômica e institucional, abarcaria as condições necessárias e suficientes para que o processo de desenvolvimento seja levado a bom termo pelo mercado (BELLUZZO; CARNEIRO, 2003, p. 6).
Em 2002, ainda durante a campanha para a presidência, o Partido dos Trabalhadores
divulgou o documento Diretrizes e Linhas de Ação para o Setor Elétrico Brasileiro
(PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002) indicador das propostas do governo petista
para o setor elétrico e preparado por profissionais que acabariam, em alguns casos, por
integrar a nova equipe do MME. Em seu primeiro capítulo o documento estampava as
premissas básicas pelas quais deveriam ser norteadas as ações do governo Lula, no SEB, em
caso vitória nas eleições:
A política energética deve ser consistente com a orientação econômica e social que marca o perfil de um governo. É imperativo que ela se volte, portanto, no plano interno, ao crescimento econômico, ao atendimento das necessidades da sociedade, à geração de empregos, à melhor distribuição de renda e à inclusão social (PT, 2002, p.8).
A clareza desse parágrafo não pode ser entendida como mera retórica e lança luz ao
mote tratado no âmbito deste trabalho, ao afirmar existir uma clara correlação entre o setor
elétrico e a implementação de políticas públicas, com as potencialidades dessa associação, nas
promessas de campanha do Partido dos Trabalhadores, restando bem identificadas e
apresentadas aos eleitores, sendo correto esperar que delas se valesse o governo Lula durante
a sua gestão.
Com relação ao modelo do setor elétrico, implementado ao longo do governo FHC, o
programa de governo do Partido dos Trabalhadores se empenhou em apontar suas falhas e em
colocar o racionamento como a síntese negativa de alternativas que privilegiaram as soluções
de mercado em detrimento da ação planejadora do Estado:
Trata-se, portanto, de repensar e refazer de alto a baixo o modelo imposto ao setor, dando-se como demonstrado que a crise de 2001 — ainda latente nos desdobramentos de 2002 — evidenciou todos os seus equívocos, sua inadequação à realidade brasileira e, finalmente, o seu colapso. O modelo atual precisa ser abandonado porque seria inócuo tentar introduzir-lhe aperfeiçoamentos fora dos marcos da teoria neoliberal. Teoria que se tem revelado incompatível com a política econômica de um governo que esteja comprometido com o desenvolvimento do país e com as metas de justiça social e distribuição da renda que movem a esmagadora maioria dos brasileiros (PT, 2002, p.44).
Gestadas, ao longo do ano de 2003, as propostas do governo para um novo modelo do
setor elétrico se materializaram com a publicação da Lei 10.848/2004, regulamentada por
intermédio do Decreto 5.163/2004, reestruturando o setor com o objetivo de superar os
problemas verificados no desenvolvimento do SEB sob o modelo implementado no governo
FHC. Na mensagem divulgada pelo MME124, comunicando a regulamentação, foram
apresentados os seguintes objetivos norteadores da concepção do novo modelo: promover a
modicidade tarifária para os usuários dos serviços, garantir a segurança do suprimento e criar
um marco regulatório estável.
Ap e sa r d e d e sc a rta r a lg uma s a b o rd a g e ns e xp lo ra d a s na c a mp a nha e le ito ra l, no se ntid o d e um c o mp le to a b a nd o no d o mo d e lo a nte rio r, a p ro p o sta a p re se nta va mud a nç a s re le va nte s no ma rc o instituc io na l- re g ula tó rio d o s se rviç o s d e e le tric id a d e no p a ís, p rinc ip a lme nte c o m re la ç ã o à :
a ) re sta ura ç ã o d o p a p e l d o Esta d o no se to r e lé tric o ;
124 MME. Nota à imprensa, de 30 de julho de 2004. Disponível em:<http:// www.mme.gov.br>. Acesso em: 5
b ) va lo riza ç ã o d o p la ne ja me nto d e lo ng o p ra zo ;
c ) intro d uç ã o d e le ilõ e s d irig id o s p e lo g o ve rno p a ra a c o ntra ta ç ã o d a e ne rg ia ne c e ssá ria a o a te nd ime nto d o s c o nsumid o re s c o m b a se no c rité rio d e me no r ta rifa (p o o l d e c o ntra ta ç ã o re g ula d a d e e ne rg ia );
d ) lib e rd a d e p a ra q ue a s e mp re sa s e sta ta is vo lta sse m a inve stir na e xp a nsã o d o se to r e
e ) c ria ç ã o d e me c a nismo s d e inc e ntivo à c o ntra ta ç ã o d e e ne rg ia p e la s d istrib uid o ra s (se g ura nç a d o sup rime nto ).
Pelo Novo Modelo, o MME teria como atribuições principais a formulação e
implementação de políticas para o setor energético, de acordo com diretrizes do CNPE, a
retomada do exercício da função de planejamento setorial, o exercício do Poder Concedente, o
monitoramento da segurança do suprimento e a definição de ações preventivas para a
restauração do suprimento. Na reorganização das funções de planejamento da expansão e de
acompanhamento dos serviços prestados, foi destaque a criação da EPE e do CMSE.
O principal fator, em prol da modicidade tarifária, seria a realização de leilões, pelo
critério de menor tarifa, na contratação conjunta de energia pelas distribuidoras para
atendimento a seus consumidores. Além dos leilões de energia existente (centrais geradoras já
em operação) e leilões para ajuste de contratação, o modelo previa a realização de leilões
específicos para a contratação de novos empreendimentos de geração (com licença ambiental
prévia, contratos de longo prazo e garantia de repasse de custos de aquisição para as tarifas).
Operacionalmente o modelo considerava a criação de dois ambientes distintos de
contratação de energia: um Ambiente de Contratação Regulada – ACR, no qual as
distribuidoras poderiam contratar a energia necessária, por intermédio de processos
licitatórios regulados (leilões) e um Ambiente de Contratação Livre – ACL, em que a energia
poderia ser comercializada entre concessionárias de geração, autoprodutores, consumidores
livres, comercializadores, em essência, nos padrões do que era feito no modelo anterior125.
O novo modelo também decretou:
125
a) que as concessionárias de distribuição de energia teriam de garantir, por intermédio
de contratos firmados, o atendimento a 100% de seus mercados de energia, sendo que, a
energia alocada em contratos firmados pelos produtores, por sua vez, deveria ter lastro
físico de geração;
b) o fim da contratação direta de energia, entre empresas pertencentes ao mesmo grupo
econômico, e separação das atividades de distribuição de energia das de geração e
transmissão (desverticalização e limitações para a atuação empresarial no setor elétrico,
evitando operações comerciais, sem licitação, entre empresas do mesmo grupo ou
envolvendo diferentes serviços concedidos);
c) o repasse de até 103% da energia contratada pelas distribuidoras para as tarifas dos
consumidores finais;
d) a necessidade de declaração anual pelos agentes de consumo ao MME de suas
previsões de carga para os cinco anos subseqüentes;
e) a utilização de filtros no repasse dos custos com compra de energia para as tarifas dos
consumidores, garantindo um mecanismo de indução de eficiência na contratação feita
pelas distribuidoras e
f) a criação da CCEE, sucedendo o MAE e submetida à regulamentação da ANEEL.
Podemos afirmar que, no âmago das medidas implementadas pelo Novo Modelo do
Setor Elétrico, estava a questão da necessidade de se privilegiar o planejamento centralizado
da expansão do setor elétrico, introduzindo elementos regulatórios que estimulassem o real
dimensionamento das necessidades do mercado e a constituição de uma reserva de segurança
do sistema, evitando a ocorrência de novos episódios de racionamento, sem, contudo, deixar
de lado a busca de tarifas mais módicas e a atração de investimentos para o desenvolvimento
Esse equilíbrio de objetivos tornou-se o maior desafio para o sucesso da nova proposta
institucional e foi buscado por intermédio da proposta de reestruturação do planejamento
setorial (de médio e longo prazo), com o monitoramento das condições de oferta de energia
do sistema e o direcionamento das contratações de energia para o longo prazo, mitigando os
riscos associados aos investimentos.
Embora os preços praticados nos leilões, já realizados até o ano de 2005, apontem para
uma situação de estabilidade para os custos com energia contratada pelos distribuidores126 e a
EPE, retomando o planejamento energético do setor, indique uma condição satisfatória para o
atendimento do mercado nos próximos anos127 é necessário ainda, a partir da realização dos
leilões de novos empreendimentos de geração, verificar a capacidade do novo modelo em
atrair os investimentos necessários para que a oferta de energia cresça de forma compatível
com a evolução do consumo, sem esquecer que, com as rédeas na mão mais uma vez, o
Estado pode determinar um posicionamento pró-ativo das empresas estatais e de seus fundos
de pensão frente a esse desafio.
O b se rva nd o o s a sp e c to s c e ntra is d a re fo rma d o SEB o u a s a ç õ e s to ma d a s p e lo g o ve rno Lula , e m se us p rime iro s a no s no p o d e r, é p o ssíve l id e ntific a r, d a me sma ma ne ira c o mo o c o rrid o no g o ve rno a nte rio r, a utiliza ç ã o d o se to r c o mo instrume nto d e imp le me nta ç ã o d e p o lític a s p úb lic a s p e lo Esta d o , o u se ja , p o d e mo s o b se rva r q ue a ç õ e s to ma d a s e m re la ç ã o a o SEB d e no ta ra m a ne c e ssid a d e d e re fo rç a r p o lític a s p úb lic a s d e c a rá te r só c io -e c o nô mic o imp le me nta d a s p e lo g o ve rno .
Ne sse se ntid o , p o d e mo s e le nc a r o s se g uinte s a sp e c to s re le va nte s p a ra a ná lise no p e río d o re la tivo a o g o ve rno Lula , le mb ra nd o q ue , se fo ra m sa na d o s o s p ro b le ma s d e riva d o s d o ra c io na me nto , o utro s re fle xo s sig nific a tivo s se fa rã o se ntid o s p e la so c ie d a d e :
a) contingenciamento dos recursos da ANEEL para fins de aumento do superávit
primário;
126
Principalmente se tomarmos por base a comparação dos valores médios dos Leilões de Energia Existente com os valores praticados nos Contratos Iniciais e bilaterais entre geradores e distribuidores.
127
O artigo 2º da Resolução 1/2004, do CNPE, define o critério de garantia de suprimento de energia elétrica: “[...] o risco de insuficiência da oferta de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional não poderá exceder a 5% (cinco por cento) em cada um dos subsistemas que o compõem.” No Plano Decenal de Expansão de Energia Elétrica 2006-2015 (EPE, 2006) o risco de déficit é inferior a 5% em todos os subsistemas e cenários de oferta e demanda projetados.
b) parcelamento do resultado das revisões tarifárias periódicas das distribuidoras e
criação do Xa (fator de ajuste da variação de custos de mão-de-obra formal na Parcela B
da receita das distribuidoras);
c) revisão do papel do Estado no SEB (gestão da demanda das distribuidoras,
contratação de reserva conjuntural de capacidade, presença nos Leilões de Energia e
reforço da regulamentação) e
d) criação do Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia
Elétrica - “LUZ PARA TODOS”.
3.2.1 Contingenciamento de recursos da ANEEL
Ao longo dos últimos anos a ANEEL tem assistido os recursos financeiros necessários
ao seu funcionamento (e arrecadados via tarifas de energia) sofrerem um contingenciamento
por parte do governo federal, dentro de uma estratégia da equipe econômica, de formação de
superávit primário, que não encontra respaldo legal nas próprias leis instituidoras das agências
reguladoras independentes128.
Pe la le itura d e Ara g ã o (2005), p o d e mo s e nte nd e r p o r “ c o nting e nc ia me nto ” uma sé rie d e instrume nto s utiliza d o s p e lo Po d e r Exe c utivo c e ntra l c o m a fina lid a d e d e d e svia r o s re c urso s d a s a g ê nc ia s re g ula d o ra s, d e stina nd o -o s p a ra o utro s fins, no c a so a na lisa d o , p a ra o c ump rime nto d e me ta s d e sup e rá vit p rimá rio . De ntre e sse s instrume nto s e stã o o re ma ne ja me nto d e ve rb a s o rç a me ntá ria s, me d ia nte d e c re to d e c ré d ito e sp e c ia l o u e xtra o rd iná rio , a p ub lic a ç ã o d e le is o rç a me ntá ria s, a re te nç ã o a d ministra tiva d e re c urso s e a me ra nã o lib e ra ç ã o d o s re c urso s p a ra a s a g ê nc ia s.
O sup e rá vit p rimá rio re p re se nta a d ife re nç a e ntre a s re c e ita s e d e sp e sa s d o g o ve rno . Po r nã o inc luir c o mo d e sp e sa s o p a g a me nto d o s juro s d a d ívid a p úb lic a inte rna e e xte rna é c ha ma d o “ p rimá rio ”, a o c o ntrá rio d o sup e rá vit to ta l q ue inc lui o se rviç o d a d ívid a . De sd e o g o ve rno FHC , c o mo re sulta d o d e me ta s imp o sta s p e lo FMI, o sup e rá vit p rimá rio p a sso u a se r utiliza d o c o mo fund a me nto d e uma p o lític a e c o nô mic a , vo lta d a p a ra a o b te nç ã o d e e c o no mia s a se re m re ve rtid a s no p a g a me nto d o s juro s d a d ívid a p úb lic a , sina liza nd o a ind a a a uste rid a d e d e um g o ve rno q ue a rre c a d a ma is d o q ue g a sta , fa to r inc luíd o na a ná lise d e risc o d e p o te nc ia is inve stid o re s e xte rno s129.
A ANEEL re g istro u, e m d o c ume nto so b re sua s re a liza ç õ e s no s p rime iro s se te a no s d e e xistê nc ia , a a ç ã o d o Po d e r Exe c utivo , d e re te nç ã o d a s ve rb a s d e stina d a s à a g ê nc ia e se us e fe ito s d e riva d o s:
128
Para maior detalhamento dessa questão e de suas implicações legais ver (ARAGÃO, 2005; ANEEL, 2004; MARQUES NETO, 2005).
129
Em 1997, o superávit primário era de R$ 1,7 bilhões ou 0,5% do PIB. Em 2005 chegou a 93,5 bilhões, ou 4,84% do PIB. Fonte: Banco Central do Brasil - BACEN. Na obtenção do superávit primário o governo lança mão de estratégias como a contenção de gastos com despesas correntes e investimentos e o aumento da carga tributária. Neste momento é que surgem as críticas, feitas por diversos setores da sociedade, contra políticas de austeridade fiscal que se baseiam no deslocamento de recursos que deveriam ser empregados em gastos sociais.
Ainda que esses recursos sejam de destinação exclusiva ao custeio das atividades da ANEEL, nos últimos anos o Governo Federal os tem contingenciado fortemente, em prejuízo da realização dessas atividades. [...] O mais grave, nessa questão, é que os recursos cobrados ao consumidor de energia elétrica, que ficam aplicados numa conta bancária à disposição da ANEEL, sem, contudo, poderem ser aplicados em benefício de quem os paga, já somam mais de R$ 300 milhões em 2004 (ANEEL, 2004, p.93).
Em carta, encaminhada para órgãos da administração direta e representantes de
comissões parlamentares, organismos setoriais pintaram com tintas mais vivas o
contingenciamento percentual de recursos destinados a ANEEL, informando a evolução da
estratégia que rompe e ganha força no governo Lula, chegando a significativos três quartos da
verba total arrecadada mediante cobrança junto aos consumidores em 2005130:
TA BELA 2