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O significado do ritual e da festa

CAPÍTULO 1 – OS PARESI KOZARINI

1.10. O processo ritual da festa das Yámakas

1.10.3. O significado do ritual e da festa

O ritual da Yámaka é considerado o mais importante porque envolve a organização de uma grande festa que mobiliza a comunidade para preparar os oferecimentos aos espíritos protetores, representados pelas flautas sagradas, através do preparo de alimentos como carnes de caças moqueadas20 (geralmente de emas, catetos, veados, seriemas, anta, entre outros) e o preparo de muita chicha e biju. Os preparativos envolvem a comunidade que está oferecendo a festa, que fica também encarregada pelos preparativos da alimentação de seus convidados.

Um grande ritual envolve: recuperação e proteção da saúde; superação das desavenças internas; ponto de união dos grupos familiares; zelo pelas atividades produtivas, pois induz à contínua prática do plantio de alimentos; fortalecimento e manutenção dos laços, alimentando a crença por meio dos batizados, do rito da menina-moça; manutenção do status quo das

20 Significa que a caça ficou assando aos poucos, por vários dias, até desidratar, é uma espécie de alimento defumado, e serve ainda para conservar o alimento por vários dias.

aldeias e lideranças, pois aquele que oferece uma grande festa, ao mesmo tempo em que está fortalecendo os laços sagrados, está também expondo a realidade da aldeia; bem como, podemos acrescentar o controle social das pessoas.

O termo festa não é entendido como diversão, mas um momento de devoção. As festas duram de três dias a uma semana. Não existem melodias festivas, mas produzidas pelos sons das flautas, e das narrativas.

Como registrei anteriormente, as flautas são confeccionadas com taquaras especiais, existentes em lugares tidos como “encantados”, onde somente algumas pessoas têm acesso. A localização do taquaral, de acordo com a concepção halití, muda sempre que atividades exógenas (não-indígenas, a exemplo das fazendas, estradas, usinas hidrelétricas) oferecem risco real, e somente as pessoas que dominam os conhecimentos metafísicos, de transcendentalidade e de espiritualidade podem fazer agrados aos espíritos, realizar as oratórias e retirá-las.

Entre os kozarini existe a afirmação de que enquanto existir o Yámaka existirá os

Halití, pois é um ritual dirigido a Enorê, a força cósmica universal que rege a vida dos Halití.

Com a colaboração do professor indígena Rony Azoynaice, o ritual é composto por vários elementos, e cada um tem uma simbologia. Elaborei o percurso dos principais elementos, simbologias e práticas (ver a tabela 4). Deve-se destacar que esses elementos compõem a grande festa, mas existem cerimônias menores, como é o caso dos oferecimentos, que não envolvam todos os atos, mas são igualmente significativos. As festas grandes são decididas em grupo, já os oferecimentos podem ser individuais entre famílias, como ocorre em caso de doenças.

1 Zerate: são os cantos. Existe uma diversidade de cantos: para afastar espíritos ruins; conjunto de

cantos que podem compor as grandes cerimônias: por exemplo, a dos batizados e a da menina- moça; e as cerimônias de menor porte, como os oferecimentos, agradecimentos. Sempre que acontecer um evento, realiza-se o zerate.

2 Zeralye: são as narrativas alongadas. São narrados eventos relacionados à existência dos halit í,

desde a sua origem. Somente os sábios/cantadores/curadores participam. Serve para pedir paz de espírito e curar susto das crianças. Não envolve a presença física das flautas. As mulheres participam.

3 Zêro: flauta de cinco tubos. Não restringe a presença feminina, mas somente podem ser tocadas por

homens. Durante a dança, mulheres podem participar, mas não participam da entoação do cântico. É também um objeto protetor. Fica exposta no esteio central - kotasa - da hatí e é passada de geração a geração. Tanto homens como mulheres podem guardá-la.

4 Zolane: dança que faz parte do conjunto dos cânticos que ocorre dentro da hatí. O significado dessa

dança seria uma espécie de crítica aos desvios/comportamentos antissociais (ciúmes, invejas, fofocas, atos de egoísmos), dentro do grupo, ou da aldeia. Todos podem participar (inclusive imutí, quem estiver presente), mas somente os homens cantam. Repetem-se várias vezes, até esgotarem os repertórios.

5 Txihali: flauta nasal que envolve uma dança específica. Somente homens participam. É um

protetor, passado através das sucessivas gerações, e podem ser vistas pelas mulheres.

6 Whalák o: espuma usada na festa da menina moça ou batizada halití, ou ainda para pedir cura às

pessoas doentes. Essa espuma é considerada boa para retirar os efeitos maléficos que agem sobre as pessoas, é passada nas pessoas para proteger. Todos participam dessa parte do ritual.

7 Yámak a: condensação de toda a energia espiritual. É o momento ápice do ritual. Simboliza a força

espiritual manifestada através das flautas sagradas. Simbolizam ainda, proteção, coisas boas. Somente os homens que sabem tocar as flautas participam. As mulheres ficam recolhidas nas hatí e são proibidas de sair sob pena de sofrer agressões. Houve um tempo em que as mulheres eram as guardiãs das flautas, mas um dia as entregaram para os demônios. As flautas foram recuperadas e entregues para os homens, com a condição de que as mulheres jamais pudessem vê-las.

As flautas são heranças familiares e não há interdito às mulheres, ou seja, tanto os homens quanto as mulheres podem tê-las, contando que estas não as vejam. Quando a flauta é herança da mulher, é o marido, os filhos, ou os genros que devem cuidá-las. Existe uma diversidade de flautas, e as famílias podem ser guardiãs de várias flautas. As Yámakas saem no pátio no segundo momento dos grandes rituais, geralmente no final do período vespertino, adentrando o noturno.

8 Zok ozok otse: dança da formiga. É a dança do final da festa, quando os espíritos estão retornando

para as suas moradas. Nesse momento, pede-se que preparem matulas (comidas e chicha) e presentes (objetos, lembranças). Os homens vão pegando os objetos e as mulheres vão guardando. Os objetos escolhidos não podem ser negados.

Tabela 4 - Principais elementos, sua simbologia e prática descritas com a colaboração do pelo Prof. Rony Azoynaice

Quanto aos oferecimentos, observei que cada item desempenha uma função: as carnes, de preferência, devem ser desidratadas, socadas ou moqueadas. Preferencialmente, carnes de emas e veados campeiros porque foram animais escolhidos pelos seres mitológicos. Não gostam de oferecer as emas caçadas nas lavouras porque a carne pode estar contaminada por defensivos agrícolas. Além de fazer mal aos velhos, a carne torna-se amarga e os espíritos não gostam. É necessário o olonití (bebida conhecida de forma genérica como chicha, cariri), e outros tipos, doce, fermentada, todas à base de mandioca. Vamos ampliar a forma como cada tipo de chicha é preparada.