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Sinergias de um colapso hidrológico anunciado: interferências da urbanização e

5. SOLUÇÕES BASEADAS NA PAISAGEM COMO ESTRATÉGIA PARA O

5.2 Sinergias de um colapso hidrológico anunciado: interferências da urbanização e

Todos esses problemas, que em grande medida são internos ao SIM, afetam e são afetados por outras infraestruturas, atividades produtivas e a urbanização em si. Conforme descrito no capítulo três, estas também estão repletas de problemas e fragilidades porque foram, quase sempre, igualmente concebidas em conflito com a base natural em que estão inseridas e de onde, em alguns casos, retiram recursos naturais para seu próprio funcionamento.

Desta forma, a substituição da cobertura florestal por solos impermeabilizados ou espécies de interesse econômico diminuem a capacidade que a paisagem tem de infiltrar e percolar a água da chuva e assim recarregar os aquíferos subterrâneos, o que aumenta ainda mais a diferença de vazões entre os períodos seco e chuvoso, fazendo que um mesmo reservatório fique praticamente seco em um ano e prestes a transbordar no seguinte. Em especial, a retirada das matas ciliares causa processos erosivos que contribuem para o assoreamento de corpos d’água, inclusive os reservatórios do sistema de abastecimento, que tem a sua capacidade de armazenamento diminuída progressivamente, bem como a qualidade de suas águas.

presente no lodo acumulado nas ETEs e também com a instalação de pequenas usinas hidrelétricas que aproveitam o fluxo d´água das tubulações da rede). Ver < https://cetesb.sp.gov.br/biogas/2016/08/23/atraves-do-biogas-sabesp-transformara-lodo-em-energia/> e < https://www.tratamentodeagua.com.br/sabesp-mini-hidreletricas-canos-de-agua/>. Acessos em 18/02/2019.

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Falhas nas infraestruturas de energia podem causar interrupções no fornecimento de água; sobrecarregamento da drenagem das bacias do rio Pinheiros impossibilitam o pleno aproveitamento da Billings96; a falta de universalização da

coleta e tratamento de esgoto degradam mananciais, aumentando a complexidade e custo de tratamento; incapacidade das municipalidades em dar soluções habitacionais geram ocupações ilegais97 que quase sempre são altamente

predatórias para a conservação dos recursos hídricos; a ampliação do sistema viário e dos sistemas de transporte coletivo facilitam tais ocupações, as práticas inadequadas de agricultura, pecuária e indústria nas zonas rurais e periurbanas lançam poluentes nos cursos d’água e contaminam o solo e os aquíferos sob eles; ilhas de calor e emissão de CO2 por automóveis e indústria alteram padrões de

precipitação, inclusive sobre área de mananciais.

Em suma, trata-se de um quadro complexo em que uma série enorme de mudanças antrópicas na paisagem alteraram sobremaneira as dinâmicas naturais, quase sempre desprezando ou contrariando as leis da natureza e os atributos de sua base biofísica.

No que tange às águas da RMSP, o balanço hídrico foi severamente modificado com o aumento vertiginoso do escoamento superficial e a redução significativa da evapotranspiração e da infiltração; padrões de precipitação foram alterados pelo material particulado presente na poluição atmosférica e também pelo fenômeno da ilha de calor; rios e córregos foram canalizados e alguns deles tamponados ou tiveram seu curso invertido, seus meandros retificados e as planícies de inundação, lagos e brejos lindeiros drenados. A recarga natural dos aquíferos foi severamente comprometida, sendo que nas regiões centrais os vazamentos da rede de abastecimento (e em menor escala, de esgotamento) já respondem pela maior parte da água subterrânea urbana.

96 Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), a Billing poderia abastecer até 4,5 milhões, ou seja, o

triplo do uso atual (ISA, 2002).

97 Observa-se em São Paulo a ação do crime organizado em invasões de terrenos protegidos em

área de manancial. Reportagem do Estado de S. Paulo de junho de 2019 contabilizou 24 áreas invadidas, a maioria na zona sul da cidade. Lotes são vendidos por até cem mil reais. Alguns loteamentos possuem perímetro cercado por muros de concreto pré-moldado e sistemas viário e de vigilância próprios. Ver: < https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,crime-organizado- coordena-invasoes-em-areas-de-mananciais-de-sao-paulo,70002884543>. Acesso em 28/07/2019.

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Para esta hidrologia continuar funcionando, em sintonia com as atividades urbanas e infraestruturas, depende de aportes massivos de energia, seja sob a forma de bombeamentos, seja sob a forma de dragagem e limpeza de seus canais de escoamento. Tamanha artificialização por vezes levou os gestores públicos a recorrer a questionáveis técnicas de indução de chuvas98.

Como vimos no capítulo três, em período inferior a dois séculos, foram mais de duas dezenas de anos99 sob “crise hídrica” – a maior parte de escassez, mas

também com a ocorrência de episódios de excesso.

Inadequado, portanto, denominar “crise” um fenômeno tão frequente e que ademais, tem seu intervalo de ocorrência se tornando cada vez mais curto. Por ser condizente com o comportamento de uma hidrologia que entrou em colapso após sofrer reiteradamente tantas alterações de grande escala, entendemos que o fenômeno seria mais bem descrito como colapso hídrico ou colapso hidrológico.

Registre-se que do ponto de vista semântico esta reflexão foi feita pioneiramente pelo jornalista, documentarista e ambientalista brasileiro Dener Giovanini, em artigo publicado pelo portal do jornal O Estado de S. Paulo, em 31 de janeiro de 2015100:

Crises são acontecimentos abruptos e momentâneos. Um momento difícil na existência, quando enfrentamos – na maioria das vezes – situações quase sempre alheias a nossa vontade. Podemos ter uma “crise renal” quando o nosso corpo sofre um ataque bacteriano ou quando as nossas funções nefrológicas falham subitamente. Podemos ter uma “crise no casamento” quando os cônjuges descobrem segredos ocultos ou quando se desentendem por alguma razão. (...) Outra característica de

98 Ver, por exemplo: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/05/28/sabesp-faz-

investimento-milionario-em-questionada-tecnica-para-fazer-chover.htm>. Acesso em 17/06/2019.

99 Conforme revisão histórica realizada no capítulo 3, é possível listar os seguintes anos sob “crise

hídrica”: 1828, 1841, 1846, 1862, 1902,1903,1905,1906,1907,1910,1924,1925, década de 1940, 1958,1963,1964,1969,1985,1994,2000,2003,2010,2014 e 2015.

100 Ver < https://sustentabilidade.estadao.com.br/blogs/dener-giovanini/crise-hidrica-que-crise-nao-

172 uma crise é a sua temporalidade. Crises sempre acabam. Para o mal ou para o bem, em algum momento cessam. Crise que não cessa não é crise. Crise contínua não é crise, é doença crônica (...) Se não é uma crise, o que são então aquelas imagens de represas e açudes vazios? Simples a resposta: um colapso. Um “Colapso Hídrico”! (op. cit)

No entanto, embora aponte algumas causas para o fenômeno (desmatamento, modelo econômico de desenvolvimento, “distribuição de lucros em detrimento dos investimentos em pesquisa e conservação ambiental”, poluição automotiva, políticas públicas equivocadas), por outro lado nega a imprevisibilidade da natureza (“Em se tratando de natureza, tudo é extremamente previsível”), e não estabelece conexões claras com a urbanização, na prática reduzindo a grave ameaça à RMSP a algo estritamente político (“O ‘Colapso Hídrico’ continuará porque o nosso sistema político está totalmente falido e não é mais capaz de planejar a médio e longo prazo”).

Com vimos, questões político-partidárias influenciaram negativamente a gestão do sistema de abastecimento de água metropolitano. No entanto, a precarização do sistema também ocorreu devido a fatores climáticos e, sobretudo, a um século e meio de urbanização e produção infraestrutural que antagoniza com sua base biofísica. Um modus operandi que gera novos problemas enquanto tenta solucionar questões pontuais e é praticamente incapaz de tomar partido da dimensão infraestrutural da paisagem, desperdiçando serviços ambientais fundamentais para o bom funcionamento da cidade e de suas infraestruturas, prejudicando o bem-estar da população. No caso de São Paulo, ameaça a própria viabilidade da cidade como polo cultural, industrial, comercial, educacional e econômico.

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5.3 Por um sistema de abastecimento metropolitano que tome partido da