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Singularidade e técnica no livro Vidas Secas

CAPÍTULO 2 VIDAS SECAS: “UMA OBRA MUDA, UM FILME NU”

2.2 Singularidade e técnica no livro Vidas Secas

Redigido sem um projeto antecipado, o romance Vidas Secas, originalmente O mundo

coberto de penas66, foi iniciado e concluído por Graciliano Ramos no ano de 1937, pouco tempo depois de sua saída da prisão. Por esta época, o escritor passava por sérias dificuldades financeiras e, em face destas necessidades – já que estava vivendo apenas de seu trabalho

As referidas datas de edições foram retiradas de consultas aos próprios livros, de pesquisas no acervo virtual da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, bem como dos livros: RAMOS, G. São Bernardo. 8 ed. São Paulo: Martins, 1964 e RAMOS, G. Viagem. 5 ed. São Paulo, Martins, [197-?].

66 Segundo Clara Ramos, na biografia de seu pai, “[...] o título definitivo d’O Mundo coberto de penas surge quando Augusto Frederico Schmidt ouve alguns capítulos, comenta:

como escritor – vendeu vários contos a jornais67. “Alguns capítulos ele fez de maneira a poder rachar no meio. Foi colocando aquilo a varejo em nosso pobre mercado literário. Depois vendeu tudo por atacado, como o nome do romance” (RAMOS, C., 1979, p. 126).

Da forma maleável com que redigiu este livro – resultado da reunião de treze contos68 que, sem alterar o sentido da obra, possibilitam a sua reordenação de diversas maneiras – Graciliano Ramos não só se mantinha financeiramente, mas inaugurava uma nova técnica de romance no Brasil, o “romance desmontável”, definição dada por Rubem Braga e, ainda hoje, aceita pela crítica literária. Acerca desse trabalho, o literato ainda acrescenta:

“Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olympio me pedisse um livro para o começo do ano passado [1938], arranjei outras narrações que tanto podem ser contos como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia” (RAMOS, 1939 apud SILVA, 2000, p. 22).

Último livro de ficção do escritor, Vidas Secas conta a saga de uma família de retirantes nordestinos num período entre duas grandes secas que assolaram o sertão do Nordeste. Nessa obra, o literato insiste, mais uma vez, na não repetição de sua técnica e, para tanto, a singulariza ao suprimir o diálogo e escrevê-la na terceira pessoa, sendo este o único livro de Ramos inteiramente voltado para o drama social e geográfico de sua região.

A trajetória narrada da família de Fabiano é marcada por uma ação que não é impulsionada ou condicionada pelo agir dos personagens, mas pelo clima e pela paisagem que os oprime, brutaliza e condiciona seus pensamentos. Como que marcados por um eterno retorno, caráter cíclico da obra, é a condição climática que conduz os rumos de suas vidas. Característica que, segundo Célia Ferreira, indica a representação de uma sociedade estagnada no espaço e no tempo e delineia, com bastante propriedade, a relação entre o homem simples do campo, o poder demasiado do latifundiário e das outras autoridades locais. Pois, “[...] fora desse universo fechado estão os ‘outros’, o patrão, o fiscal da prefeitura, o próprio soldado amarelo, interlocutores que manejam a linguagem com certa eficiência, enquanto para os integrantes da família de Fabiano seu domínio se mantém inacessível” (BARROS, 1997, p. 157, destaque do autor). Somado a isso, está o fato de que, diferentemente da cadela Baleia, que na obra é psicologicamente mais humana do que a família – já embrutecida pela terra –, o

67 Ainda de acordo com Clara Ramos, “[...] pela primeira vez Mestre Graça escreve profissionalmente, por encomenda de Buenos Aires: seus sertanejos saem em La Prensa; depois nos jornais brasileiros; são finalmente vendidos a José Olympio, acondicionados num volume” (RAMOS, C. 1979, p. 125) e publicados já em 1938.

vaqueiro e seus familiares se distinguem do reino animal e vegetal pelo fato de possuírem consciência de que não são gentes, embora o pretendam ser.

E foi através da pobreza da linguagem – elemento perceptível na quantidade de monólogos interiores – que o escritor alagoano recriou o degradante universo vivenciado pela família sertaneja, deu-lhe equilibrados tons de aspereza e de rusticidade.

Conhecedor do lugar de onde fala e dominador de seu meio de expressão, Graciliano ainda enriqueceu seu trabalho ao utilizar o recurso lingüístico proporcionado pela presença de um narrador onipotente que, “‘[...] metendo-se na cabeça de todos os personagens, até de uma cachorrinha, estabelece níveis deslizantes... nos quais freqüentemente, nos desequilibramos, pois não sabemos muitas vezes quem fala’” (ARÊAS, 1988, p. 78 apud BARROS, 1997, p. 158). Recorre-se, pela primeira vez na obra graciliânica, a utilização de um narrador- observador, o qual conhece muito bem o meio social que apresenta, como também os anseios mais profundos dos personagens.

Partilhando de premissas de sua geração, no que tange ao desejo de construir um futuro melhor, “[...] em Vidas Secas ele [Graciliano] se mostra mais humano, sentimental e compreensivo, acompanhando o pobre vaqueiro Fabiano e sua família com uma simpatia e uma compaixão indisfarçáveis” (LINS, 1953, p. 152). Esperança que ainda persiste mesmo diante de toda a malfadada sorte dos personagens.

Embora seja verdade que a leitura crítica de uma obra não se sustenta se compreendida como um simples reflexo das experiências pessoais de seu criador, não se pode deixar de notar que reminiscências da vida particular de Graciliano Ramos forneceram material para a redação dos contos referentes à história das secas vidas, de Fabiano e de sua família.

Recém saído do cárcere e passando por dificuldades financeiras, o literato alagoano inspirou-se, segundo Clara Ramos, no sacrifício da cachorrinha Piaba – que presenciou, quando menino, na fazenda de seu avô – para escrever o primeiro conto da obra69 e nono capítulo do livro: Baleia. De uma infância cercada por empregados de seu pai, mulheres e homens sertanejos, Ramos, ainda na informação da biógrafa, extraiu inspiração para outros

69 Acerca da redação deste conto, Clara Ramos ainda acrescenta: “Está o autor tão convencido da inconsistência desse material apressado que, ao ler a morte de Baleia num suplemento literário dominical, considera, desgostoso, os longes de pieguismo a que pode chegar um homem de bolsos vazios. Envergonhado, evita comparecer na segunda-feira à Livraria José Olympio, onde fartamente encontrará os amigos. Não podendo afastar-se definitivamente da rua Ouvidor, um dia há de voltar e enfrentar o abraço exuberante de José Lins, empolgado com a cachorrinha sonhadora. O autor das “pieguices” atrapalha-se, pensa tratar-se de gozação, responde aos elogios com a palavra inconveniente que a amizade de José Lins autoriza. Dá-se, porém, que outras pessoas, menos íntimas e menos exuberantes que o amigo, também se acercam para cumprimentá-lo. [...] Graciliano Ramos descobre que sua história – ‘ridícula’ por devotar-lhe o sentimento que ele esforça por ocultar embaixo de uma reserva de concreto armado – talvez não seja de todo inaproveitável” (RAMOS, C., 1979, p. 123-124, destaque do autor).

personagens, como, por exemplo, o vaqueiro Fabiano, cuja matéria-prima utilizada na sua elaboração proveio de traços de dois homens admirados pelo escritor: 1 – seu avô materno Pedro Ferro, que forneceu características físicas e sua resistência – perceptível na fala do escritor: “Em dias de matança trepava-me na porteira do curral, via meu avô derrubar a machado, sangrar e esfolar uma novilha, aprumar-se no chão vermelho, as mãos vermelhas” (RAMOS, G., 1974, p. 147); 2 – o vaqueiro Amaro – “[...] caboclo triste, encourado num gibão roto [...]” (RAMOS, G., 1974, p. 25) – o qual fornece, principalmente, o modo de vida. Como exemplifica o extrato de Angústia:

Amaro vaqueiro era uma espécie de sol trepado num mourão. O laço que girava em redor dele era a terra. De repente essa terra esquisita caia sobre a novilha careta e prendia-lhe os chifres. Quando havia poucas reses o exercício era brincadeira. Mas em tempo de pega o curral se enchia, os cornos se chocavam, e mal se distinguia a cabeça do animal visado. O laço rondava no ar uma eternidade, descia, passava perto do alvo, tornava subir. Amaro aboiava, e os animais agitavam-se, batendo as pontas. Sentado no último pau da porteira, eu tinha o coração aos baques e torcia desesperadamente. As minhas mãos umedeciam-se de suor. Por que Amaro não acabava logo aquilo? Subitamente o aboio estancava, o laço caía, o zunido da corda continuava um instante no ouvido da gente. O animal estava preso (RAMOS, G., 2003, p. 144 – 145).

Além da inspiração para personagens, as lembranças do escritor também inspiraram alguns contos, como, por exemplo, O menino mais velho, no qual há uma grande proximidade e quase transposição das falas e sentimentos expressos pelo menino Graciliano, aos seis anos de idade questionando sua mãe, e pelo Menino Mais Velho ao indagar sinhá Vitória a respeito do inferno. Em Infância, Graciliano Ramos descreve o acontecido da seguinte maneira:

O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam as outras, em discussões. E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe condenou as exigências e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Porque não me contavam o negócio direitinho? Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras [...] quando minha mãe falou do breu derretido, examinei a cicatriz do dedo e balancei a cabeça, em dúvida [...] _ A senhora esteve lá? [...] _ Os padres estiveram lá? [...] _ Os padres estiveram lá? Tornei a perguntar. Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam nos seminários, nos livros. Senti forte decepção [...] e pratiquei um ato de rebeldia: [...] _ Não há nada disso. Minha mãe curvou-se, descalçou-se o chinelo e aplicou-me várias chineladas. Não me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me as esquisitices alheias (RAMOS, G., 1974, p. 92 – 95).

Em Vidas Secas, episódio semelhante, ao vivenciado pelo escritor, se passa com o Menino Mais Velho:

Deu-se tudo aquilo por que sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar de inferno e estava estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.

O menino foi a sala interrogar o pai [...]. Não obteve resposta, voltou a cozinha foi pendurar-se a saia da mãe:

_ Como é?

Sinhá Vitória falou em espetos quentes e fogueiras. _ A senhora viu?

Aí sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. O menino saiu indignado com a injustiça, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia (RAMOS, G., 1981, p. 54).

Dentro das possibilidades de ação e reação de Graciliano criança e do Menino Mais Velho há uma grande proximidade entre os acontecimentos vivenciados e a história criada.

Obra denunciante da pobreza sertaneja e, em parte, inspirada em reminiscências pessoais de Graciliano Ramos, Vidas Secas70, que, a princípio, fora composto na forma de folhetim – e, portanto, se direcionava a um público letrado, já cativo da forma escrita e do próprio jornal –, ultrapassou a categoria de um livro circunscrito a um movimento literário e, através da habilidade demonstrada por seu criador, se tornou uma obra universal, cuja atualidade e identificação ideológica, por parte do cineasta Nelson Pereira dos Santos, possibilitaram a sua transposição para o grande ecrã.