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4. SISTEMA DE JUSTIÇA: COMPREENSÕES E PERSPECTIVAS

4.3 Sistema de Justiça Criminal: o caso dos crimes de trânsito

Ao discutir as questões que envolvem o Sistema de Justiça Criminal no Brasil, aponta- se para aspectos relevantes da nossa construção social. Seja pelo aspecto político que essa instância representa, seja pelo ambiente social em que os operadores do sistema estão inseridos ou mesmo as distorções produzidas pelos julgamentos.

Nesse sentido, não há um rito específico para o processamento dos crimes de trânsito, que seguem os ritos para os outros tipos criminais. Portanto, o funcionamento da Justiça segue um fluxo de atividades que detalham os caminhos de Justiça Criminal. Parte-se da formulação das leis, ou seja, do Código Penal ou de um conjunto legal que organiza e institucionaliza os procedimentos rituais que devem ser seguidos, mas sua aplicação ou funcionamento parte de elementos burocráticos da Justiça. Vargas (2000) aponta que, anteriormente os pesquisadores estudavam o fluxo a partir do inquérito policial, mas que somente com os estudos realizados pela Fundação João Pinheiro36 é que se pode reconsiderar os Boletins de Ocorrência como ponto de partida para as investigações. Aqui também iremos considerar esse documento, por entender, como a autora, que além de conter informações relevantes sobre o fato ocorrido, permite “avaliar e quantificar o próprio movimento de entrada no sistema (...) acesso às concepções dos queixosos ainda no ‘calor’ dos acontecimentos” (VARGAS, 2000; p. 30). Então o fluxo de justiça foi considerado desde o Boletim de Ocorrência do crime e analisado até a sentença final, como indicado num documento da Fundação João Pinheiro (1987).

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O estudo citado pela autora: Fundação João Pinheiro. Indicadores Sociais de criminalidade. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1987.

Também em outros núcleos de pesquisa, esse fluxo de justiça foi apontado de forma a compreender quais são os procedimentos da Justiça brasileira em relação aos trâmites legais que devem ser seguidos. Como o proposto pelo IBCCRIM (2007) – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – que descreve o fluxo de acordo com o Código Penal, desde Boletim de Ocorrência até a finalização do processo penal e seguimento do fluxo de execução criminal.

Num esboço do fluxo da justiça, a fase inicial é o inquérito (policial), realizado na Delegacia Especializada em Acidentes de Veículos – DEAV e, posteriormente, na fase judicial, as testemunhas são ouvidas nas oitivas testemunhais, ou seja, quando as pessoas que presenciaram o acidente ou conhecem o réu ou vítima se apresentam para contar o que viram e o que sabem. Por fim, em relação à sujeição criminal é o momento em que se percebe que tipo de agravante pode contribuir para que o réu seja julgado.

Organograma 1

Sistema de Justiça Criminal para Crimes de Trânsito

Acidente de trânsito Delegacia Especializada em Acidentes de Veículos - DEAV Inquérito Crime de trânsito Sim Não Ministério Público

Denúncia Não Arquivo

A descrição do Organograma 1 é bastante simplificada, mas demonstra como funciona o fluxo de justiça para os crimes de trânsito. Pode ser iniciado a partir de uma infração no trânsito como, por exemplo, dirigir sob efeito de álcool ou, ainda, com um acidente que gera uma morte. Essa morte ou infração será investigada na DEAV - Delegacia Especializada em Acidentes de Veículos. No caso específico do homicídio de trânsito, e de acordo com o Código de Trânsito, quem entra com a ação é o Estado, configurando uma ação penal pública, pelo entendimento de que a vítima precisa ser representada já que confirma um tipo especial de crime contra pessoa. Se for comprovada a negligência, imperícia ou imprudência do condutor o inquérito será encaminhado ao Fórum para ser analisado pelo promotor que denunciará ou não o condutor pelo homicídio, se houver evidências suficiente da participação culposa, no caso do homicídio ele será julgado numa das varas criminais senão o inquérito será arquivado. Dando prosseguimento aos trâmites, é oferecida a denúncia e o Juiz irá conduzir o caso a partir desse momento, intimando as testemunhas do acidente para serem ouvidas em fase de juízo. Normalmente o réu é acompanhado de um advogado pago. Se isso não for possível, é convidado a participar das oitivas testemunhais o defensor público. Quando todas as testemunhas são ouvidas, o advogado de defesa apresenta a peça de defesa ao juiz, que irá dar a sentença final em primeira instância, pois ainda se pode recorrer da decisão inicial.

De acordo com Navega (1997), pode-se compreender quais são os passos dados no entendimento de como, no Brasil, é julgado e penalizado o crime. Aqui esbarramos nos limites entre os entendimentos do crime e da ação da Justiça Criminal, pois dependendo do ângulo que se propõe olhar, podemos confundir um com o outro, mas sob a ótica de alguns autores essas perspectivas são distantes, não apenas no fazer como também na maneira de entender suas construções.

Dessa forma, a perspectiva de Navega (1997) sobre o conceito de crime “é todo fato típico, antijurídico e culpável” - distinguindo, então, quais são definições pertinentes a cada um desses pontos. Além disso, um dos objetivos do manual é demonstrar os elementos jurídicos do crime bem como sua própria definição, estabelecendo a sequência cronológica do processo penal37. Assim, um dos destaques das discussões de Navega (1997) diz respeito à forma como expressamos a questão de crime no Brasil, dizemos dar queixa, mas o certo seria dizer “notícia de crime”, queixa é “a peça inicial da pena privada e é endereçada ao juiz” - sendo o promotor quem inicia a ação penal. Já no momento de inquérito policial38 há várias fases a serem cumpridas: a primeira é o início do inquérito, que pode ser principiado de diversas formas (prisão em flagrante, portaria, notícia de crime, requerimento da vítima, entre outras), em seguida são ouvidas as testemunhas, a(s) vítima(s) e o indiciado e, por fim, é elaborado um relatório do delegado. Há também a distinção entre ação penal pública e privada. Na primeira “o Estado atua como acusação por meio do representante do Ministério Público” e na segunda “o interesse de agir é do ofendido”.

O trabalho de construção dos fatos a partir do evento do acidente está representado quando se analisa todo o processo, ou seja, quando o acidente de trânsito se transforma, mediante investigação e testemunho colhido em delegacia, em crime de trânsito. O trabalho dos delegados e investigadores da polícia aparece no “processo”, na forma de perícias realizadas e de testemunhos colhidos com aqueles que presenciaram os fatos. São eles – os investigadores e delegados, então, que muitas vezes constroem o caminho de como os acidentes de trânsito se transformam em homicídios culposos no trânsito.

Segundo Kant de Lima (1997: p.174), a construção de um inquérito no Brasil pressupõe que o que se quer buscar é a verdade dos fatos, reforçando que

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Aqui apresentada para efeitos de estudos: crime, investigação (IP) início da ação, sentença, recursos, execução.

o inquérito policial é um procedimento no qual quem detém a iniciativa é um Estado imaginário, todo poderoso, onipresente e onisciente, sempre na sua busca incansável da verdade, representado pela autoridade policial, que, embora sendo um funcionário do Executivo, tem uma delegação do Judiciário e a ele está subordinado quando da realização de investigações.

Outra discussão importante é a de Sapori (2000), em que analisa o processo de burocratização/racionalização de criação da complexa estrutura formal de Justiça no Brasil – que é formada por delegados, promotores, defensores, juiz, além das seguintes organizações Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal – que forma uma rede denominada Sistema de Segurança Pública.

Sapori (2000) chama atenção para a burocratização da justiça que significou a padronização dos procedimentos a serem adotados na Justiça Criminal, levando-a a uma formação de comunidade de interesses. Os promotores, defensores e juízes tomam parte de pelo menos dois tipos de atividades diárias – participação em audiências e despacho de processos. Por causa disso, procuram manter certo nível de produtividade na realização das audiências para que não haja um congestionamento na Justiça Criminal. Sapori chama esse procedimento de Linha de Montagem de

processamento seriado dos crimes e consequentemente pelo tratamento padronizado dos processos (...) esta racionalidade pode ser identificada nos procedimentos que promotores adotam para elaborar as denúncias, que os defensores usam pra elaborar defesas prévias, que defensores e promotores usam para elaborar alegações finais e que juízes adotam para elaborar as sentenças ( SAPORI, 1995: p.147 )

O que acontece é que cada caso não é mais um caso, mas se assemelha a outros casos, criando uma rotinização ou formalização da justiça. Isso quer dizer que atores legais raramente recorrem a doutrinas jurídicas ou mesmo a jurisprudência para fundamentar suas argumentações, criando categorias de punibilidade ou sintoma da racionalização. O resultado dessa atividade é a agilidade nos trabalhos realizados na Justiça Criminal – esse procedimento é explicado pelos prazos que devem ser cumpridos por esses atores, que agem de uma

maneira articulada, ou seja, o trabalho de um depende do trabalho do outro, a produtividade de um leva a do outro.

Há, nesse sentido, duas posições que são argumentadas – de um lado os ideais substantivos de justiça e de outro a necessidade de se manter certo nível de produtividade, que pode não observar as singularidades dos casos criminais e de aspectos pontuais que poderiam ser cruciais para a definição de culpa ou inocência do réu. O que fica claro é que as particularidades dos casos devem ser negligenciadas priorizando a conciliação das partes.

As discussões apontam que há, pelo menos, duas perspectivas sobre o funcionamento do sistema de Justiça Criminal brasileiro. De um lado, com Navega (1997), temos uma descrição das atividades previstas no manual de direito penal e do caminho que a Justiça deve percorrer para que possa efetivamente funcionar. De outro, e pela via da crítica a esses procedimentos, alguns problemas no funcionamento apontado por Sapori (1995; 2007), evidenciando um distanciamento entre ideal e prática do sistema de Justiça.