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O Sistema de Governo Semipresidencialista 226 e os Poderes do Presidente da República 227 à luz da Constituição da República Portuguesa

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

3. O REGIME POLÍTICO PORTUGUÊS, AS FUNÇÕES DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA E A PRODUÇÃO DOCUMENTAL

3.2. O Sistema de Governo Semipresidencialista 226 e os Poderes do Presidente da República 227 à luz da Constituição da República Portuguesa

(…) poder dos governantes sobre os governados, o poder político, é exercido no interesse comum de todos.

In Norberto BOBBIO- A teoria das formas de

governo. Brasília, 1980, p.50.

Adopte-se ou não o qualitativo de semipresidencial, é indiscutível que o nosso sistema de governo assume uma feição híbrida e que tal hibridez se projecta de modo particularmente intenso no que respeita à posição institucional e aos poderes do Presidente da República.228 “Na verdade, quase todos os juspublicistas portugueses qualificam o sistema de governo como semipresidencial (…). De igual modo, os politólogos e cientistas sociais que se debruçam sobre o nosso sistema de governo não deixam de qualificá-lo como semipresidencial (…). Trata-se, aliás, de uma designação que é acolhida pela generalidade dos observadores estrangeiros da realidade político-constitucional portuguesa (…). E deve

225 Idem, p.399.

226 “Sistema de Governo em que, da conjugação do mesmo grau de legitimidade do Chefe do Estado e do Parlamento, porque ambos eleitos por sufrágio universal, neles se consubstancia a faculdade de exercitarem os poderes jurídicos que a Constituição lhes atribui, no sentido de, em maior ou menor grau, controlarem a acção do Governo, de molde a qualquer um deles, mesmo que indirectamente, possa fazer cessar as funções daquele”. Cit. por LEITE, Ricardo; CORREIA, José de Matos ; SEARA, Fernando Roboredo – op.cit., p.277. Sobre o sistema de governo semipresidencial cfr. CANAS, Vitalino – “A forma de governo semi-presidencial e suas características”. In Revista Jurídica. 1, 1982, pp.98 e ss; ARAÚJO, António de – “El Presidente de la Republica en la evolución del sistema politico em Portugal”. In BARRETO, António; GOMEZ, Braulio e MAGALHÃES, Pedro (ed.) – Portugal : Democracia y Sistema Político. Madrid, 2003, pp.101 e ss.; “The semi-presidential system”. In Zeitschrift fur auslandisches offentliches recht und volkerrecht. 64, nº 1 (2004), pp. 95 e ss.

227 Para um estudo mais detalhado sobre os poderes considerados essenciais do Chefe do Estado ver DUVERGER, Maurice – Xeque Mate, Lisboa, 1979.

78 ainda adiantar-se que, curiosamente, todos os Presidentes da República democraticamente eleitos após o 25 de Abril de 1974 parecem também ter submergido à vaga avassaladora do semipresidencialismo ”229.

O sistema de governo semipresidencialista apareceu em 1919, na Finlândia, e na Alemanha de Weimar230. “Entre nós, constitucionalistas tão ilustres como Gomes Canotilho ou Vital Moreira231 põem reservas à adopção do termo semipresidencial, quer em termos gerais, quer para caracterizar o caso português. Assim, e no que ao caso português tange, preferem estes autores utilizar a designação regime misto parlamentar-presidencial, de dominante parlamentar, cuja formatação corresponderá à sua natureza mista, ainda que com predominância da sua vertente parlamentar”232. Porque, em Portugal, o Presidente da República, ao contrário do que sucede em França, não partilha do poder executivo, razão pela qual, para esses autores, não faria sentido falar de um sistema semipresidencial entre nós. Segundo aqueles professores, só com extremas cautelas se pode construir uma teoria geral do semipresidencialismo, que contemple todas as suas manifestações concretas, pois não existirá uma homogeneidade suficiente entre eles, justificando a sua inclusão num único modelo.

Maurice Duverger, responsável pela formulação e teorização deste sistema, reconhecendo as diferenças entre os diversos países veio a criar a dicotomia “sistemas de governo semipresidenciais” versus “sistemas de governo aparentemente semipresidenciais”. “Os sistemas de governo semipresidenciais serão aqueles em que o Chefe de Estado terá tão poucos poderes, que estará situado na fronteira com o Chefe de Estado do sistema de governo parlamentar”233. Seriam sistemas de governo verdadeiramente

229Cfr. por ARAÚJO, António de e TSIMARAS, Constantino – op.cit,, pp. 399ss. “Ramalho Eanes não qualifica expressamente o nosso sistema como semipresidencialista, mas parece inclinar-se claramente nesse sentido, aos sustentar que o mesmo não se configura como parlamentar nem como presidencial e que os poderes atribuídos ao Presidente não são meramente nominais.”

230 “Efectivamente, foi devido à incapacidade do sistema parlamentar que historicamente se projectou o sistema semipresidencial, do qual foi percursor a Constituição Alemã de Weimar (1919). Na verdade, aquele texto constitucional consagra os traços do que mais tarde a doutrina viria a chamar de sistema semipresidencial ou semipresidencialismo.” Cit. por LEITE, Ricardo; CORREIA, José de Matos ; SEARA, Fernando Roboredo – op.cit., p.273.

231 Cfr. CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital – Os poderes do Presidente da República. Coimbra, Coimbra Editora, p.20. cit. por CARVALHO, Manuel Proença de – Manual de ciência política e sistemas políticos e constitucionais. 2ª ed. actualizada e ampliada. Lisboa : Quid Júris, 2008, p.87.

232Cfr. CARVALHO, Manuel Proença de – op.cit., p.87.

233 Cfr. DUVERGER, Maurice – “Le concept de regime semi-présidentiel”. In DUVERGER, Maurice (org.) - Les regimes semi-présidentiels. Paris, 1986, pp.7 e seg.

79 semipresidencialistas a Finlândia (desde 1919)234, a Alemanha de Weimar (entre 1919 e 1933), a França (desde 1958) e Portugal (desde 1976)235.

No período pós descolonização portuguesa, e por influência de Portugal, adoptaram este modelo constitucional, nos anos noventa do séc. XX, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde (este aparentemente semipresidencial)236 e, em 2002, Timor- Leste. Para além dos países nomeados e do Sri Lanka, optaram também por este desenho constitucional, após a queda do muro de Berlim, países como a Croácia, Polónia, Roménia, Bulgária, Lituânia, Eslovénia e Eslováquia. A Mongólia, Namíbia, Senegal, Guiana, Perú e a Coreia do Sul são outros exemplos237.

Podemos referenciar algumas características comuns aos vários sistemas de governo semipresidencialistas ou aparentemente semipresidencialistas:

- A existência de três órgãos políticos com poderes reais: Chefe de Estado, Governo e Parlamento, ainda que nos casos dos sistemas de governo aparentemente semipresidenciais, os poderes do Presidente da República se situem já próximos dos poderes dos Chefes de Estado dos sistemas de governo parlamentares;

- A eleição do Chefe de Estado por sufrágio universal e directo, à semelhança do Parlamento238, ainda que nos casos da Irlanda e da Islândia, sempre que haja apenas um candidato à eleição presidencial, a eleição é dispensada;

- Efectivo poder de dissolução parlamentar conferido ao Chefe de Estado, isto é, por decisão própria, à margem de qualquer proposta de Governo em funções e mesmo contra a vontade deste último órgão;

234 A Finlândia manteve um sistema semi-presidencial até 2000.

235 Vide MORAIS, Isaltino A. ; ALMEIDA, José Mário Ferreira de ; PINTO, Ricardo Leite – O sistema de governo semipresidencialista : o caso português. Lisboa : Notícias, 1984.

236 Cfr. MIRANDA, Jorge – Constituições de Moçambique, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde. 1990; CANAS, Vitalino – O sistema de governo moçambicano na Constituição de 1990. Lisboa, 1997; CORREIA, José Matos – “Eleições e sistemas eleitorais: os casos de S. Tomé e Príncipe Cabo Verde”. In Revista Internacional, I, 4, Lisboa, 1991.

237 Deve referir-se que a lista de Constituições com sistemas de governo semipresidenciais varia de autor para autor, em face do critério que cada um utiliza para identificar aquele sistema. “A generalidade destas Constituições atribuem importantes podres ao Chefe de Estado, embora a extensão destes poderes se veja frequentemente confrontada com as particularidades do sistema partidário e da vida política do respectivo país.” Cit. por LEITE, Ricardo ; CORREIA, José de Matos e SEARA, Fernando Roboredo – op.cit., p.274. 238 Cfr. PEREIRA, André Gonçalves – O semipresidencialismo em Portugal. Ática, 1984, p.34 e s.

80 - Diarquia do Executivo, com distinção de funções entre o Chefe de Estado e o Chefe de Governo;

- Atribuição ao Chefe de Estado de certas faculdades constitucionais, que lhe conferem certos poderes de intervenção no sistema de governo, isto é, funções de fiscalização, supervisão e regulação do sistema de governo, variando estas consideravelmente de país, para país, o que lhe permite, nomeadamente, controlar a actividade do governo;

- Coexistência de actos do Chefe de Estado que carecem de referenda ministerial, com outros que a dispensam;

- Formação do governo em função dos resultados eleitorais, dependendo a sua constituição e sobrevivência da confiança parlamentar.

O Governo é sempre responsável politicamente perante a Câmara representativa, existindo ainda em alguns desses países, face às normas constitucionais ou apenas consequência da prática constitucional, a responsabilidade política do Governo perante o Chefe de Estado. Nesse sentido, podemos considerar existir uma dupla responsabilidade política ou, tão-só, a dupla responsabilidade do Governo perante o Presidente da República e o Parlamento. O Presidente da República não pode demitir o Governo por um mero juízo de discordância política, mas apenas, se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. Vigorando uma responsabilidade imprópria ou difusa do Governo perante o Chefe de Estado. “O tipo de poderes de que dispõe o Presidente português pouco tem a ver, de facto, com o exercício de funções executivas. (…) na verdade, eles aproximam-se muito mais da ideia de um “poder neutro” ou de um “poder moderador”, tal como foi concebida por Benjamin Constant e, entre nós, por Silvestre Pinheiro-Ferreira. (…) além disso, pode fazer um uso político particularmente intenso dos atributos simbólicos do seu cargo. Cerimónias, discursos, comunicações ao país, “presidências abertas”, deslocações ao estrangeiro, entrevistas, distribuições de condecorações, audiências ou contactos com as populações, são recursos políticos de extraordinário alcance ao dispor do Presidente”239. É possível vislumbrar estas funções presidenciais, através da análise da documentação

81 arquivística produzida ao longo de mandatos de diversos Chefes de Estado, bem como através da análise da documentação biblioteconómica adquirida para apoio dessas actividades, estando directamente relacionada com o contexto histórico/ político da época. O sistema de governo português está mais próximo da matriz austríaca, sem se reconduzir a ela, ou seja, o Chefe de Estado português não é dominante no sistema de governo nem tem poderes executivos como o seu homólogo francês, mas também não é propriamente um Presidente como alguns apelidam de meramente representativo como na Áustria240. No caso português, é ao Governo que compete a condução da política do país, na pessoa do Primeiro-Ministro, constituindo o Governo o centro estratégico da condução política do país e um órgão com autonomia política face ao Chefe de Estado.

“Na realidade, o Presidente português desempenha funções políticas de grande relevância, sendo os seus poderes reais, revestindo a forma de decretos os muitos actos políticos do PR (…)”241. O poder de dissolução da Assembleia da República, é um poder autónomo e não condicionado, não estando dependente de proposta ou de concordância do Governo, nem sujeito a referenda ministerial. O Presidente da República é perfeitamente livre em dissolver a Assembleia e convocar eleições para uma nova Assembleia da República242. Quanto ao poder de demissão do Governo, o Governo é responsável perante o Presidente da República, embora seja uma responsabilidade imperfeita e difusa. Visto que o Chefe de Estado não pode invocar razões políticas para demitir o Governo, mas apenas o pode fazer quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado243. Como foi referido anteriormente, “Vigora, pois, a dupla responsabilidade do Governo perante a Assembleia da República e o Presidente da República, sendo esta uma característica chave do sistema de governo português”244.

240 Cfr. Sobre a classificação do semipresidencialismo em três matrizes (francesa, portuguesa e austríaca), vide, NOVAIS, Jorge Reis – Semipresidencialismo. Vol.I, Coimbra, Almedina, 2007.

241 Cfr. CARVALHO, Manuel Proença de, op.cit, p.353.

242 Ocorreram 3 dissoluções com o Presidente Ramalho Eanes: em 1979, após Mota Pinto (IV Governo Constitucional, Governo Presidencial de Independentes) ter apresentado a sua demissão do cargo de Primeiro-Ministro ao PR; em 1983 (VIII Governo Constitucional de Pinto Balsemão), quando Pinto Balsemão apresenta a sua demissão de Primeiro-Ministro, não obstante haver uma maioria PPD-CDS no Parlamento; em 1985, quando o PSD rompe com o Governo do “Bloco Central”, na sequência da ascensão de Cavaco Silva ao PSD (IX Governo Constitucional-Governo PS/PSD chefiado por Mário Soares), e Mário Soares apresenta a sua demissão.

243 Em 1978, o Primeiro-Ministro Mário Soares (II Governo Constitucional de coligação PS-CDS) foi exonerado pelo Presidente Ramalho Eanes, na sequência da ruptura do CDS com a coligação com o PS, mas nessa altura vigorava ainda a responsabilidade política do Governo perante o Presidente da República, o que só terminaria com a revisão de 1982. Ou seja, desde 1982 (data da redacção do normativo) nunca nenhum Presidente da República recorreu ao nº 2 do artigo 195º.

82 Ao nível da política externa e das relações internacionais, o Presidente detém aí poderes de intervenção mais significativos do que nos demais domínios governamentais, tendo em consideração o seu papel como representante da República e Comandante Supremo das Forças Armadas e os poderes de bloqueio que detém nestas245, o que implica uma maior concertação entre os dois órgãos de soberania e a impossibilidade de diplomacias paralelas.

“No caso português, são vários os poderes constitucionalmente atribuídos ao PR e que

avultam para a caracterização do sistema de governo português como semipresidencial, tendo alguns deles sido reduzidos em 1982. Em primeiro lugar, o direito de veto aos diplomas da AR e do Governo (…). Em segundo lugar, a faculdade de requerer a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas legais (…). Por último, os poderes de demitir o Governo e de dissolver a AR (…), ambos bastante circunscritos com a revisão de 1982”246.

Shugart e Carey247 consideram que, com a revisão constitucional de 1982, o sistema de governo português passou de president-parlamentary a premier-presidential. Estes dois autores introduzem uma maior precisão na classificação dos chamados regimes semipresidenciais. “(…) premier-presidential, há uma clara preponderância do primeiro- ministro sobre o gabinete: apesar de o Presidente intervir na nomeação do Governo (primeiro-ministro e, eventualmente, restantes ministros), os seus poderes para demitir o Governo são bastante limitados (ou nulos), isto é, a sobrevivência do Governo depende quase exclusivamente da Assembleia. Os países democráticos que se enquadram nesta classificação são a França (V República), a Finlândia, Portugal (após 1982), a Aústria, a Islândia e a Irlanda. (…) no premier-presidential há clara definição da entidade em relação à qual o gabinete é responsável (a Assembleia), e este factor torna menos prováveis os conflitos entre o PR e a Assembleia”248.

Para estes autores, a Revisão Constitucional de 1982 veio tornar o sistema de governo português como efectivamente semipresidencial ou premier-presidential e, ao contribuir para uma maior clareza da responsabilidade política do Governo, tornou o regime menos propenso a crises institucionais. “A eleição popular directa de um militar permitiu dotar de legitimidade eleitoral o primeiro PR português, conduzindo a uma maior capacidade de

245 Face aos embaixadores, chefias militares, ratificação de tratados internacionais e a declaração de guerra e feitura de paz.

246 Idem, p.196.

247 Cfr. SHUGART, M. e CAREY, J. – Presidents and assemblies: constitutional design and electoral dynamics. Cambridge, Cambridge University Press, 1992, pp. 63-65. cit por. PINTO, António Costa , op.cit., p.196.

83 este impor a sua subordinação dos militares à respectiva hierarquia e de integrá-los transitoriamente no processo político, tanto mais que o PR teve até 1982 a função de Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Com a extinção do CR e a transferência dos poderes legislativos em matéria de defesa para a AR, em 1982, bem como a eleição do primeiro civil para PR, em 1986, terminou esta fase transitória, consumando-se a plena subordinação dos militares ao poder civil. Assim, a eleição directa do PR e a criação do sistema de governo semipresidencialista contribuiu para a transição e a consolidação democráticas bem-sucedidas, apesar das suas origens bonapartistas”249.

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