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Capítulo 2. Educação Comparada, Políticas e Sistemas Educacionais

2.3 Sistemas de ensino e o método comparativo

A dificuldade em conceituar os sistemas de ensino não tem impedido os diferentes autores da área de Educação Comparada de estabelecer as

condições de comparabilidade dos sistemas. Trataremos aqui de uma concepção de comparação que procura estabelecer ao mesmo tempo as condições de comparabilidade preservando as características individuais dos sistemas e estabelecendo estratégias que afastem os riscos de homogeneização.

As bases para um processo comparativo, que respeite as particularidades de cada sistema, estariam na compreensão de que não se pode definir abstratamente um sistema de ensino, uma vez que ele é uma realidade viva e concreta, resultado de um desenvolvimento histórico e social próprio.

Ao tratar da comparabilidade dos sistemas de ensino, Bourdieu & Passeron (1979) chamam a atenção para o quanto a comparação pode ser equivocada se não se leva em conta o contexto de toda sociedade. Chamam a atenção para a afinidade que existe entre os valores do sistema de ensino e os valores da sociedade como um todo.

Um sistema de ensino deve de fato sua estrutura singular tanto à exigências que definem suas funções específicas quanto às tradições nacionais ou às situações históricas e sociais nas quais essas exigências são satisfeitas. (BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C., 1979, p.89).

Assim existe também a afinidade entre os valores dos sistemas de ensino com os valores das sociedades nas quais eles estão inseridos. Ainda que se possa concluir que é a sociedade globalizada que estabelece os princípios gerais de um sistema de ensino, são as condições reais e concretas, o campo político, social, cultural e econômico no qual ele é gestado que lhe dão face própria.

Assim como não é possível definir universalmente as funções da escola, pois esta se insere numa dada sociedade, portadora de uma cultura específica e inter-relacionada com os demais subsistemas que compõem o sistema social, também não é possível se eliminar as forças e lutas sociais e políticas que constituíram as instituições que determinam as relações do sistema educacional.

“É importante distinguir entre a função global de um sistema de ensino e suas funções diferenciais, a fim de perceber que a hierarquia das diferentes funções que um sistema educacional realiza concretamente em um dado momento jamais é o resultado de uma escolha ética, mas sim a expressão de um equilíbrio político entre forças diversamente interessadas em diversas funções; mas é igualmente importante, sob outro ponto de vista, distinguir entre as funções trans-históricas do sistema de ensino e as funções circunstanciais que ele preenche em uma sociedade histórica...” (BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C., 1979, p.95-96).

Assim, para se comparar sistemas de ensino deve-se levar em conta a diversidade de condições que podem determinar a sua constituição:

(...) vê-se que a questão da eficácia global de uma instituição escolar perde todo o sentido: considerando que os valores que presidem a seu funcionamento são múltiplos e irredutíveis, não se poderia agrupar coerentemente seus fins para construir um único parâmetro de eficácia. Seria absurdo comparar a eficácia global do sistema escolar de um estado autoritário ou de uma sociedade teocrática destacando a função de socialização e, mais precisamente, de integração moral e intelectual do corpo político e social, com o sistema escolar de uma sociedade industrial, fascinada pelos imperativos do desenvolvimento econômico, que privilegiaria a função de formação profissional em detrimento de todas as outras, a começar pela função de transmissão dos modelos tradicionais” (BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C., 1979, p.99).

Embora os sistemas educacionais estejam atuando em função do sistema econômico, é preciso cuidado ao nos referirmos ao sistema de ensino considerando apenas a medida tecnocrática do rendimento econômico porque o sistema escolar transmite muito mais coisas do que declara. No entanto, os autores consideram legítimo que se coloque para todo o sistema, a questão do seu rendimento mais específico, ou seja, seu êxito pedagógico.

Como observam Bourdieu & Passeron (1979), os sistemas educacionais são multifacetados, e dificilmente podem ser reduzidos a um modelo formalmente racional, baseando-se apenas na sua funcionalidade econômica, eficiência e eficácia. O cálculo da relação entre meios e um fim único e univocamente definido é artificial, pois o que se poderia considerar seu produto

se constitui em uma multiplicidade de aspectos que não são facilmente observáveis ou quantificáveis e não podem consequentemente ser avaliados e comparados, pois referem-se a valores incomensuráveis entre si. Nesta perspectiva, a análise comparativa dos sistemas deve fazer uso de proposições gerais apenas para que sejam acompanhadas de correções ao serem cotejadas com os casos particulares. A constante reinterpretação é necessária para integrar o resultado do estudo ao contexto. A ausência dessa cautela metodológica pode levar a ilusão de apreensão de uma significação unívoca da realidade sem valia para o pesquisador.

Levando-se então em consideração esses aspectos, o procedimento comparativo relativo a sistemas deve, portanto, recuperar o contexto singular, sem que isso prejudique o estabelecimento de relações gerais.

(...) a descrição metódica e completa das singularidades deve passar pela análise da totalidade das dimensões: as observações precedentes sugerem que a análise dos pesos relativos atribuídos em cada caso a diferentes funções possíveis permitiria caracterizar os diferentes sistemas de educação e estabelecer uma tipologia, ainda abstrata, mas fundamentada, a respeito da posição e das funções concretas do sistema escolar no sistema social. Encaminhar-se-ia assim para uma forma mais acabada de comparação, por meio da qual se visaria a explicar que traços ou sistemas de traços, característicos de uma instituição escolar, possam ter propriedades e, em particular, funções idênticas ou comparáveis, pelo fato de que eles ocupam posições homólogas em diferentes sistemas de ensino, ou ainda, que sistemas educacionais diversos possam apresentar características idênticas na medida em que estabelecem com outros sistemas relações de posição ou de oposição estruturalmente equivalentes.” (BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C., 1979, p.104).

A concepção de Bourdieu & Passeron (1979) aqui apresentada, e que se aproxima da concepção que Malet (2004) denominou de hermenêutica, a qual apresentamos no primeiro capitulo, é a abordagem que doravante seguiremos para a fundamentação teórica deste trabalho. Acreditamos que esta abordagem fornece uma perspectiva que permite que se evitem as armadilhas que se apresentam ao pesquisador deste campo. Sua principal intenção é garantir que se possam estabelecer relações sem que se eliminem as características próprias dos sistemas particulares. Este procedimento é

diametralmente oposto àquele que vem sendo adotado nos estudos que se baseiam nas metodologias produzidas pelas agências multilaterais, cujo principal aspecto é a homogeneização dos sistemas.

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