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Para alguns cientistas sociais, o Brasil ainda é uma sociedade em construção. Ao longo dos anos, desde os movimentos de independência às manifestações de junho 2013, diversas são as interpretações sobre os rumos, obstáculos e inquietações pelos quais o país passa em determinados períodos históricos, ou seja, várias e distintas são as interpretações sobre o sentido do desenvolvimento brasileiro. Tocam a este trabalho as visões que têm como pano de fundo o fato de o movimento de formação da nação11 ainda se encontrar em curso.

Longe de ser um fim em si mesmo (teleologia) ou mesmo uma fatalidade histórica inexorável12, a formação é um processo dinâmico que não passa de uma possibilidade e uma necessidade do sujeito histórico (o próprio povo) de transformações em curso na sociedade brasileira colocada pelas bases econômicas, sociais, culturais e geográficas oriundas da colônia e que se mantêm no presente (Ianni, 1992; Prado Jr., 2011).

Enquanto sociedade de cunho colonial, o Brasil manteve as relações econômicas de sua coletividade orientadas pelos interesses do capital comercial internacional através, basicamente, da cristalização da produção primário-exportadora assentada na concentração de terras e na força de trabalho escrava (Sampaio Jr., 2013). Os nexos produtivos e sociais eram ditados pelos interesses do comércio externo, monopolizados pela metrópole e pela tutela inglesa. Resulta deste tipo de interações econômicas e sociais a dupla articulação ditada pelo padrão de acumulação e dominação do capitalismo dependente (Fernandes, [1975] 2011), o qual tolhe o

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Nação é um conceito em definição, pois é um processo histórico que gera a possibilidade, e é orientada pela necessidade histórica, de uma identididade econômica, política, cultural, social, regional e racial dentro de um país por parte de seu povo. Conforme Ianni (1992: 8): "Acontece que a nação é real e imaginária. Localiza-se na história do pensamento. Está no imaginário de uns e outros: políticos e escritores, trabalhadores do campo e da cidade, brancos, negros, índios e imigrantes, cientistas sociais, filósofos e artistas. E seria muito outra, se não se recriasse de quando em quando, na interpretação, fantasia, imaginação". E prossegue: "Sob o aspecto social, racial, regional e cultural, entre outros, continua em aberto a questão nacional. Em perspectiva ampla, a história do Brasil pode ser vista como a de uma nação em processo, à procura da sua fisionomia. É como se estivesse espalhada no espaço, dispersa no tempo, buscando conformar-se ao nome, encontrar-se com a própria imagem, transformar-se em conceito" (Ibidem: 180).

12 Ao analisar o fim do período colonial, Prado Jr. (2011) deixa claro que a formação econômica e social nacional não é um fim

histórico fatal. Antes disso, é o desenrolar da história que mostra as "forças" que engendram o motor das transformações econômicas e sociais no presente, as quais não estão fadadas a tomar lugar.

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país com a segregação social (em termos de renda, riqueza, posse de terras, etnia, acesso a serviços e bens etc.) e a dependência externa (ao capital interacional).

Não obstante a dominação exercida pelos portugueses, sementes de uma sociedade nacional foram plantadas durante a existência da colônia, quais sejam a constituição de um mercado interno e aspirações de autonomização política (Prado Jr., [1966] 2004). Entretanto, o que predominou foi a total falta de nexo moral entre as diferentes etnias, culturas e sociabilidades que foram forçadas a coexistir num território de proporções continentais e acabaram por resultar numa sociedade de identidade formada de "cima para baixo" de forma compósita.

A indepedência ensejaria o espírito do moderno no Brasil13. Os anseios de inserção numa sociedade de classes, com instituições sofisticadas, com um Estado forte e nos moldes da revolução industrial inglesa eram compatíveis com uma sociedade tipicamente burguesa. Todavia, eles não seriam o suficiente para uma ruptura drástica com os moldes da coletividade existente, isto é, os fundamentos da sociedade colonial - que garantiam os privilégios de riqueza e poder às classes dominantes - permaneceriam. A saber: o acesso à terra e as condições de trabalho continuariam precários.

A transição de uma sociedade escravocrata para uma de força de trabalho assalariada não se deu de forma a fornecer os meios de subsistência e de produção para esta população recém abolida. Entretanto, o ponto crucial é o tipo de capitalismo que se forma no Brasil a partir de uma determinada organização da correlação de forças "capital-trabalho" e a partir do tipo de inserção do Brasil no sistema capitalista mundial. O capitalismo que resultou daí conformou o caráter da burguesia brasileira e a instabilidade das relações produtivas que bloqueiam a integração de todas as camadas constituintes da sociedade.

De fato, a maneira como se deram a Abolição e a instauração da lei de terras de 1850 viriam a cristalizar o caráter segregacionista da sociedade brasileira, ao impedir a integração efetiva de grande parte da população na economia e sociedade ditas modernas com o bloqueio ao acesso à terra. Em termos de subserviência externa, a independência não revolucionou o caráter primário exportador da economia brasileira, senão que preparou as bases para a produção exportadora assalariada em escala maior. O que se viu foi a combinação de interesses das, muitas vezes indissociáveis, burguesias brasileiras e elite agrária. Nesta conjuntura, os trabalhadores começaram a se desenvolver como classe segregada. Diferentemente de qualquer protótipo

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europeu, a inserção das relações capitalistas de produção e trabalho no Brasil se deu de forma dependente e sem a superação total do passado colonial.

Já na virada do século XIX para o XX, emergiram interpretações acerca da necessidade e possibilidade de romper os laços coloniais da sociedade brasileira através de transformações disruptivas (democrática e nacional) a fim de completar a formação de uma identidade nacional. Seria a partir do processo de desmonte da divisão internacional do trabalho vigente até 1929 que se colocariam estas questões de mudanças estruturais em pauta.

Nos anos entre 1930 e 1964, o Brasil passou pelos movimentos de urbanização, consolidação do regime de classes e de uma incipiente industrialização. Esta teria, supostamente, o papel de criar as bases objetivas e subjetivas para a autonomização da economia brasileira, via mercado interno, no quadro capitalista mundial. De fato o fez, mas de forma limitada: não foi capaz de romper com os laços de subdesenvolvimento e dependência, mas, às vezes, os reproduziu de forma ampliada. A conjuntura pré golpe de 64 era de percepção dos antagonismos e dos dilemas do capitalismo dependente. Tanto era assim que alguns setores da sociedade desejavam instaurar um conjunto de reformas de base para lidar com aquelas questões.

Conforme Fernandes (2011), no contexto de Guerra Fria as burguesias dependentes brasileiras - onipotentes no quadro interno e subservientes no externo - passaram a sofrer pressões internas por reformas estruturais e externas referentes à dominação do espaço econômico nacional. Por "medo pânico" do povo, aglutinaram-se e optaram de forma compósita por um aliado, o imperialismo, de modo a instaurar uma contra-revolução permanente que consolidou as bases de sua dominação e privilégios e solapou a revolução democrática ao instaurar uma democracia restrita. Assim, o regime militar cristalizou a dupla articulação como condição necessária do capitalismo dependente.

Ainda segundo Fernandes, com a manutenção da ordem garantida através de um Estado plutocrático e repressivo, o desenvolvimento das forças produtivas pôde avançar com o prolongamento do padrão industrializante, com a partipação massiva das empresas transnacionais e com o endividamento externo. O que se deve destacar do período de ditadura militar é que, no que toca à formação nacional, o problema estava resolvido desde a perspectiva do capital; enquanto na perspectiva dos destituídos, dos semi-integrados e dos condenados do sistema, a questão ficou mais distante de uma solução.

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Em relação à temática da terra, a solução dada pela ditadura foi de uma verdadeira modernização conservadora, ressignificando a questão agrária e a restringindo ao remanejamento de terras improdutivas14 aos despossuídos sem se preocupar com os outros fatores determinantes da pobreza do trabalhador do campo e da cidade. Para piorar, a modernização no campo foi acompanhada pela elevação da produtividade no meio agrícola combinada de industrialização no meio urbano e por um processo desordenado de urbanização que implicou agravamento do subemprego. As contradições de tal padrão de acumulação de capital remontam, dentre outros fatores, ao problema do acesso à terra.

Ao longo da república, a questão da terra evidencia-se como um dos obstáculos para um Estado nacional que concilie capitalismo, democracia e soberania nacional (Sampaio Jr., 2013). Isto se dá porque o latifúndio, ao perpetuar a concentração da terra e um enorme exército de reserva marginalizado do mercado de trabalho, impede a conformação de um mercado de trabalho minimamente equilibrado na relação entre o capital e o trabalho. Sem um dito equilíbrio, fica distante a possibilidade de existência de um Estado democrático baseado na combinação dos nexos morais que ressaltara Prado Jr (2004).

O lento processo de abertura política do regime militar foi acompanhado do completo esgotamento da industrialização e do endividamento externo sem precedentes. Ainda fragmentada politicamente e desnorteada pelos sucessivos fracassos no campo econômico, a sociedade brasileira não foi capaz de implantar as transformações democrática e nacional. Pelo contrário, nos anos noventa foi adotado o receituário neoliberal do Consenso de Washington com vistas à "superação do atraso", o qual contribuiu para uma nova rodada de modernização dos padrões de consumo via a financeirização, a mundialização e a difusão do consumo de massa permitida pela revolução técnico-informacional.

A abertura comercial e financeira foi consolidada ao longo da década tendo a necessidade de estabilização monetária como prioridade nacional; com as privatizações promovendo o desmonte do parque industrial nacional; com o favorecimento do movimento rentista especulativo e com o abondono dos anseios populares de fim da segregação social garantidos na recém promulgada, e com forte apelo social, Consituição de 1988.

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Segundo Sampaio Jr. (2013), a resposta burguesa durante a ditadura para a questão da terra foi cristalizada no Estatuto da terra de 1964.

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Depois da virada do século, os dilemas da segregação social e da dependência externa brasileiras ainda se encontram em discussão na sociedade. Muito embora, os termos de tal reflexão tenham se alterado muito em relação às ideias discutidas ao longo dos últimos cem anos. Não se trata de derivar os dilemas da formação diretamente do período colonial, mas de entendê- los à luz e como consequências deste passado. Portanto, o quê se há de concluir é que o impasse da formação ainda está posto e que a análise das forças motrizes da dinâmica histórica de suas contradições serve, precípuamente, para clarear o sentido e a direção das transformações que podem vir a ocorrer.

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