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Fora e dentro do Seridó, fala-se de uma espécie de “cultura do seridoense”, pelo menos no que se refere ao culto a uma suposta identidade coletiva, que é exaustivamente adjetivada de forma positiva por seus agentes. Há um enaltecimento da disciplina, por exemplo, sobre o zelo com suas cidades, através do “capricho” de seus moradores com suas residências, sempre pintadas e limpas. Algo também é dito a respeito do “cuidado em varrer seus terreiros”, fazendo referência à frente das casas, que estão sempre bem “varridas”, e da manutenção das suas ruas limpas e jardinadas. O município seridoense de Acari, que durante muito tempo se orgulhou de ser uma das cidades mais limpas do Brasil, é um exemplo emblemático de um discurso valorativo.

Argumenta-se também sobre uma tradição organizativa dos grupos empenhados em sempre buscar o melhor para o Seridó, ou de políticos comprometidos em pensar primeiro no Seridó. Como já discutido no capítulo anterior, a tradição das cercas de pedras espalhadas pelos sítios e fazendas do território é lembrada nos discursos como algo que só existe por lá, assim como é

21 Ambiente institucional é o produto da interação entre diversos agentes, mediados por organizações, regras, convenções, valores e interesses prevalecentes em determinado momento e espaço social (BASTOS, 2006).

singular a produção de queijos, leite e bordados e o respeito pela religiosidade em volta da padroeira do Seridó, Sant’Ana, o que ajuda a reafirmar os laços de reciprocidade entre os seridoenses.

A Igreja Católica do Seridó teve papel importante na formação de um capital cultural no território. Isso é inegável. O Diácono Teixeira discorre que “a igreja criou a escola para os ricos, que era o Colégio Diocesano em Caicó, onde estudava os filhos dos fazendeiros da região, e os padres nas paróquias criaram as escolas rurais onde estudavam os filhos dos pobres”.

Sem o mesmo status de cultura peculiar, o território do Sertão do Apodi se destaca no cenário social do Rio Grande do Norte pela visibilidade de suas organizações e pela quantidade de mediadores que ali atuam no fomento do que eles mesmos definem como “capital social” para a promoção do desenvolvimento. No Sertão do Apodi, o capital social, ou seja, os laços de reciprocidade, confiança e identidade comum, foi trabalhado e exercitado por agentes internos e externos ao território. Já os seridoenses, ao se referirem ao seu orgulhoso e difundido capital social, argumentam sobre uma qualidade inata do povo do Seridó, expressa como algo de sua natureza.

A identificação de matriz de compreensão institucional dos agentes da agricultura familiar nos territórios pesquisados é alicerçada na atuação da tríade igreja, sindicato e partido político, tanto no Sertão do Apodi quanto no Seridó. A presença da instituição igreja é crucial para os processos analisados no presente trabalho.

Enquanto no Sertão do Apodi a igreja foi instrumentalizada pelos agentes em torno de seus projetos, ou seja, ela serviu como base e ferramenta do processo de empoderamento para a luta no campo de relações constituído no território, no Seridó, a igreja e seus tentáculos de atuação ainda persistem. No Seridó, a igreja mesmo sem a mesma força de antes, como forte instituição que, se não pela força política, mas pela força da tradição, tem enorme poder coercitivo sobre suas “crias”, ou seja, sobre os agentes que ela continua pensando ser responsável.

Entre tantas outras trajetórias, destaca-se a de Junior, que é natural da comunidade rural do Rio Umari do município de Caraúbas, Sertão do Apodi. Ele é presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Caraúbas e dirigente estadual da Fetarn. É filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A comunidade rural de

Junior há muitos anos recebe assessoria da ONG Diaconia, no que se refere à organização comunitária e ao desenvolvimento de projetos sociais.

Mesmo antes da chegada da Dioconia, a comunidade do Rio Umari recebia apoio do Padre Lourenço, ainda relacionada ao associativismo e pequenos projetos. Na década de 1990, Junior conta que esteve em São Paulo para tentar trabalho, mas passou apenas seis meses e retornou para Caraúbas. Ele afirma: “o rojão de lá, eu não me acostumei, morava numa favela, decidi voltar e prometi nunca mais sair do Rio Umari, gosto do que faço na minha comunidade”.

Junior começou sua vida como militante na sociedade civil através do trabalho comunitário desenvolvido pela Diaconia no Sertão do Apodi. Ele lembra: “como jovem e membro da comunidade de Rio Umari fui convidado por assessores da Dioconia para participar de um encontro de formação em Umarizal [município vizinho] e eu gostei muito do que vi lá, aí então quando retornei decidi que iria me envolver, participar da associação de minha comunidade”.

Em entrevista, o presidente do sindicato do município de Caraúbas ainda afirmou: “eu nunca fiz uma pesquisa, mas com certeza o trabalho sindical do Sertão do Apodi deve ao trabalho da igreja”. A assessoria oferecida pelos chamados Padres progressistas, no território, é notabilizada como essencial para a construção inicial de um capital social no Sertão do Apodi.

No município de Caraúbas, existiam cerca de onze associações remanescentes do trabalho da igreja, quandoo Padre Lourenço esteve à frente da paróquia. A partir do fim da década de 1990, esse número aumentou bastante. Sindicatos fortes e um trabalho associativista, posteriormente, chamariam a atenção para a atuação de muitas ONGs no Sertão do Apodi.

Ao contrário do território do Seridó, no Sertão do Apodi, o trabalho de base da igreja, a partir de 1960 e intensificado nas décadas 1980/1990, produziu um capital social sustentado em uma organização social mais plural, que não preconizava “prender ninguém na igreja ou para igreja”. O processo de empoderamento tinha como meta formar os agentes, dotá-los de uma consciência social emancipatória, logo eles não precisariam, necessariamente, continuar na igreja, não existindo medo dos comunistas.

No Seridó, também ocorreu uma grande e importante intervenção realizada por Padres em suas paróquias, por meio do Seapac e do antigo MEB. No caso de atuação das ONGs, MEB e Seapac, o trabalho teve relação com o perfil de seu

quadro técnico, e não com uma visão política de um tipo de igreja. Apesar de prezar pela emancipação dos agentes e suas comunidades, destacam-se o pensamento do clero e a real intenção da igreja seridoense.

No Seridó, foi importante organizar os agricultores dentro de uma estratégia de buscar a melhoria de sua qualidade de vida, mas, ao mesmo tempo, manter o controle sobre suas posições ideológicas. Esse processo de intervenção almejava dificultar qualquer aproximação ou adesão a formas organizativas que gerassem conflitos à identidade conciliadora do seridoense.

Em um primeiro momento, ainda nas décadas de 1950/1960, a igreja do Seridó, com receio da chegada das Ligas Camponesas e dos discursos revolucionários de partidos de esquerda, foi pioneira em contribuir com a organização dos agricultores familiares. Depois disso, o trabalho do incentivo e apoio às comunidades rurais foi mantido como meio para conservar a religiosidade do seridoense, reafirmando o papel de protagonismo da igreja enquanto instituição de referência para a tradição regionalista.

Já no Sertão do Apodi, as entidades ligadas à igreja, principalmente o MEB e a CPT, atuavam no sentido de enfrentar e contestar as relações sociais adversas a que as comunidades rurais estavam submetidas, sendo a atuação do Seapac nos últimos anos descrita como tímida no território. O apoio às iniciativas político- partidárias, sobretudo através do Padre Pedro Neffes, na paróquia de Campo Grande, foi visto como um meio para o enfrentamento não de pessoas, mas de estruturas condicionadoras de uma realidade adversa.

Vale destacar que de fato o Padre Pedro Neefs foi quem mais protagonizou o discurso político de enfrentamento. Os demais Padres com atuação no território contribuíram bastante para a organização das comunidades, mas não tiveram a mesma visibilidade, nessa perspectiva que aqui se afirma, em relação à adoção de posições mais incisivas. Os padres europeus de Caraúbas e Apodi nem de longe protagonizaram as mesmas polêmicas políticas de enfrentamento, tal qual a do Padre Pedro Neefs da Paróquia do município de Campo Grande.

Na linguagem dos militantes da Teologia da Libertação, pode-se falar de uma “igreja para os pobres”. A denominada ação preferencial pelas classes populares foi muito difundida no Brasil, através de Padres vindos do exterior. Ao fazer referência à atuação de Padres estrangeiros que vieram para o Brasil em meados do século passado, um dos maiores nomes da Igreja Católica do Seridó, Monsenhor Tércio,

afirmou que “é fácil ser revolucionário nas terras dos outros, longe de seu país”. Parece, nesse caso, uma forma de desqualificação de um discurso para justificar a acomodação das forças religiosas locais diante dos interesses sociais dominantes.

Nesse contexto, inúmeras lideranças surgiram e foram moldadas pelo discurso dos serviços e órgãos de uma parte da igreja, alimentada por uma influência teológica mais à esquerda. A colaboração de alguns religiosos de um setor determinado da igreja contribui para o trabalho de organização de base com o engajamento de jovens, que hoje estão à frente de sindicatos, ONGs e partidos políticos.

No Seridó, os agentes da agricultura familiar reforçam a argumentação de que as Ligas Camponesas se aproximavam do Rio Grande do Norte pelas fronteiras da Paraíba e eram vistas pela Igreja Católica como ameaça. Como já discutido, a igreja receava que essa aproximação se desse pelo Seridó, então se adiantou em organizar os agricultores familiares, com o objetivo de evitar uma possível influência das Ligas e dos comunistas.

No Seridó, os Padres Ernesto, Raimundo e Delclides foram importantes para organizar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), mas o desenvolvimento do pensamento da ação católica nesse sentido não reproduzia, exatamente, o que pregava a Teologia da Libertação. Isso diferentemente do que ocorreu em outras Dioceses, a exemplo de Mossoró, área de abrangência do território do Sertão do Apodi, onde as CEBs tinham forte influência da Teologia da Libertação. Para ressaltar as diferenças entre as Dioceses de Caicó e Mossoró, o Diácono Francisco Teixeira afirma que “o Seridó nunca se apaixonou por modismos”.

Ao se referir à Teologia da Libertação, o Diácono Teixeira fala “de uma instrumentalização da fé”, que não conseguiu contaminar a Igreja Católica do Seridó. O clero seridoense sempre foi resistente às ideias da Teologia da Libertação. Seu apoio ao associativismo e aos agricultores tinha como objetivo justamente impedir a difusão dessas ideias. O clero não via com bons olhos a mistura de política e fé para o contexto social do Seridó, que, por natureza, segundo Monsenhor Tércio, “é um povo conciliador”.

O Padre Ernesto foi um grande articulador da organização dos trabalhadores rurais nos municípios da abrangência da paróquia de Jardim do Seridó. O próprio Diácono Teixeira se sente fruto do trabalho desenvolvido por esse Padre. Algumas expressões chamaram a atenção na entrevista realizada com esse seridoense que

hoje coordena o Seapac estadual, a saber: a igreja sempre incentivou a educação no Seridó; a fé é um elemento muito forte na vida do povo, há um medo da igreja e um respeito também com a figura da padroeira da região, Sant’Ana; a natureza social do seridoense não é conflitar, e sim pactuar; entender o Seridó é compreender o papel da família para aquele povo, sendo a igreja um elemento constitutivo dessa ordem.

A população do Seridó tem devoção pelo concílio e isso tem relação com a igreja, com sua pregação. Para o assessor do Seapac, Procópio, o povo, mesmo em situações de opressão, pensa que “a retribuição será dada por Deus”. Fala-se de uma igreja que já foi muito forte e decisiva na formação da identidade da população. Hoje esse poder se diluiu, mas ainda há uma forte concepção de respeito nos espaços onde a igreja está presente.

No Seridó, a igreja até poucos anos cedia gratuitamente um horário na Rádio Rural para o sindicato divulgar suas notícias. O programa do sindicato se chama até hoje “Marcha para o Campo”, mas atualmente a Diocese passou a cobrar do sindicato pela exibição do programa. Segundo os dirigentes sindicais do Seridó, esse é mais um reflexo do afastamento da igreja do sindicato e das questões políticas da agricultura familiar.

É válido enfatizar que mesmo tratando-se da mesma matriz de compreensão, ao identificar uma trajetória alicerçada em instituições comuns aos territórios, o importante aqui é mostrar justamente as diferenças presentes nas trajetórias. As instituições que compõem o habitus dos agentes têm comportamentos diferentes nos dois territórios.

Elas atuam de maneira peculiar, por exemplo, em relação à Igreja, é identificada uma concepção de trabalho bastante dividida. Enquanto a igreja do Seridó organizava os agricultores familiares dentro de uma moldura preservacionista de uma tradição, no Sertão do Apodi a igreja contribuiu para formação de quadros para atuação em diversos segmentos da sociedade. Os sindicatos e o engajamento político-partidário também foram diferenciados.

Os habitus dos agentes são estruturados e estruturantes de um campo de relações que é alimentado por essas diferenças presentes na matriz. As trajetórias dos agentes da agricultura familiar nos dois territórios apontam para uma matriz de compreensão de um habitus coletivo onde igreja, sindicato e política partidária se entrelaçam para dar forma e conteúdo à posição dos agentes. O papel relevante da

igreja para essa compreensão é fundamental, pois, a partir de sua atuação, um campo de poder foi erguido no Seridó e no Sertão do Apodi, através da atuação em rede de agentes engajados em sindicatos e partidos políticos.

O papel desempenhado pelas ONGs é transversal a essa matriz e colaboradora da estruturação desse habitus. Elas são instrumentos de busca por melhores posições no campo por parte dos agentes e, ao mesmo tempo, vistas como resultado de suas trajetórias. Os agentes veem nas ONGs uma maneira de conquistar e acumular capital social para seus projetos, transformando-os em possibilidade de obtenção de outras formas de capital.

5 CONFLITOS, DISPUTAS E PROJETOS DE PODER: A CONQUISTA DO RECONHECIMENTO E A CONSTRUÇÃO DO CAPITAL SOCIAL

Este quinto capítulo explora a importância de algumas das principais redes de articulação política para a formação de um campo de relações da agricultura familiar nos territórios do Seridó e Sertão do Apodi. É destacada nas diferentes redes a trajetória dos agentes na construção da matriz do habitus para atuação nesse campo, bem como suas particularidades.

Os conflitos, as disputas e a concorrência pelas melhores posições no campo são analisados na forma como os agentes elaboram seus discursos a partir de suas práticas sociais. Nesse sentido, identifica-se que a construção e a mobilização de um tipo de capital social nos territórios são utilizadas pelos agentes para acessar outras formas de capital, adquirir reconhecimento no campo, transitar entre diferentes campos e buscar projeção em todo o espaço social em que atuam, ou seja, nos territórios do Seridó e Sertão do Apodi.