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Diversas pesquisas realizadas ao longo de mais de dez anos de vida acadêmica possibilitaram a identificação de uma diversidade de agentes com atuação nas áreas rurais do Rio Grande do Norte. Durante esse percurso, sempre foi instigante perceber as relações desses agentes e suas instituições, bem como identificar seus posicionamentos, a forma como desenvolviam suas atividades, as delimitações espaciais da atuação de cada um, o tipo de mediação que era realizado, qual a concepção de trabalho e quais as parcerias consideradas.

Entretanto, foi nos territórios do Seridó e do Sertão do Apodi onde as inquietações de pesquisa mais adquiriram volume e densidade. As origens da atuação dos agentes nesses territórios sempre inquietaram, pois apontavam para semelhanças, aspectos comuns: muita gente pertencente à Igreja, envolvida com ONGs e sindicatos com atuação em partidos políticos. Tratava-se dos agentes da agricultura familiar. Diante dos componentes identificados, fez-se necessário ir a campo para aprofundar as análises da pesquisa em curso naquele momento.

Tudo começou com a identificação inicial da forte presença de setores da Igreja Católica, em determinado momento da história, como instituição responsável pela formação de lideranças e por influenciar na criação de associações rurais, sindicatos e Organizações Não Governamentais nos territórios. A partir de então, concluiu-se que o papel desempenhado por algumas instituições, principalmente a Igreja Católica, teve grande primazia sobre a produção de relações comunitárias e sobre a efervescência social existente tanto no Seridó quanto no Sertão do Apodi.

A igreja foi o espaço inicial para que muitos agentes surgissem como líderes comunitários, dirigentes sindicais, assessores de ONGs e militantes de partidos políticos. Juntamente à participação nos espaços proporcionados pela Igreja, também se tornaram possíveis a filiação ao sindicato, a militância no partido político e/ou o trabalho de assessoria na ONG.

A posição dos agentes no campo de relações políticas da agricultura familiar no Seridó e no Sertão do Apodi, apesar de algumas singularidades relacionadas ao perfil das instituições, tem origem em uma trajetória social comum. Essa trajetória é

fortemente alicerçada nas experiências incorporadas a partir da influência de instituições, que marcaram a formação de um habitus comum aos agentes do campo de poder, criado em torno do segmento social da agricultura familiar nesses territórios.

No entanto, não se fala aqui de um engessamento a uma suposta trajetória comum, mas de disposições, ou seja, de formas de agir que têm relação com experiências vividas pelos agentes na construção de um campo relacional. Alguns dos agentes não tiveram passagem pelos espaços da Igreja Católica, pois vieram de instituições ligadas à igreja evangélica, como é o caso das áreas de atuação da ONG Diaconia no Sertão do Apodi, sendo isso algo circunscrito a dois municípios, Caraúbas e Umarizal.

Outros agentes não tiveram essa experiência próxima à igreja, mas relataram a sua importância na formação do sindicato, da associação, ou para a criação e fortalecimento de um campo de relação política nesses territórios. A experiência dos agentes através das instituições também não obedece, necessariamente, a uma condição de fé ou obediência. No caso do Seridó, a religiosidade continua a ter, em alguns casos, incidência sobre a prática dos agentes. Já no Sertão do Apodi, a igreja, pelo que se identificou, teve desempenho em uma dimensão muito mais política na formação dos agentes.

Para esses agentes, as experiências de socialização junto às diversas instituições que tiveram influência em suas trajetórias são quase sempre relatadas como situações necessárias para um determinado contexto de suas vidas. Não há uma obediência à trajetória, pelo contrário, há uma seletividade por parte dos agentes em identificar o que foi importante em cada experiência, o que contribuiu para que eles se tornassem os agentes que são hoje, com atuação no campo de relações de cada território.

Por meio da observação das ações coletivas e da posição dos agentes nos territórios, bem como de entrevistas realizadas, chegou-se à conclusão de que existe uma matriz comum às trajetórias sociais e políticas, sendo essa a peça metodológica que irá sustentar o desenvolvimento da presente Tese. O tripé igreja, sindicato e partido político apresenta-se como característica comum dessa matriz institucional. Nesse sentido, observam-se três instituições preponderantes para formatação de um habitus coletivo.

O primeiro aspecto diz respeito à presença da Igreja Católica que, através de suas pastorais e de suas entidades prestadoras de serviço, influenciou na formação política e social de inúmeros jovens, a partir da década de 1960, com maior incidência nas décadas de 1980/1990. A influência de setores da igreja foi importante para o que muitos denominam de “tomada de consciência” e construção de um senso contestador.

Vale salientar que a igreja, até a década de 1950, foi grande aliada dos grupos econômicos nacionais, começando, a partir de então, a ter preocupações com as questões sociais, aliando-se ao Estado (CRUZ, 2000). A aliança entre igreja e Estado ocorreu, sobretudo, através da criação de sindicatos nas áreas rurais, devido ao receio do avanço das ligas camponesas, principalmente, no caso da região Nordeste. Somente a partir de meados dos anos de 1960, setores da igreja iniciam um processo de crítica a então Ditadura Militar instalada no país (CRUZ, 2000).

Esse processo que durante um grande período se repetiu em praticamente todo o Brasil e representou uma ação de setores da Igreja Católica defendia o projeto de atuação das chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) (ANDRADE, 2000). As CEBs foram importantes, através da atuação de pastorais e entidades a elas ligadas, ao fomentarem o discurso de contestação em um momento controverso da história nacional. Esse setor da Igreja Católica, ao assumir uma interpretação singular do papel de sua instituição junto às camadas mais populares, colaborou para a formação de uma nova cultura política (ANDRADE, 2000; PAIVA, 2000).

O trabalho desempenhado pelas CEBs sempre foi visto, pelos setores mais conservadores da Igreja Católica, como uma reflexão marxista dos textos bíblicos. A Teologia da Libertação, que ofereceu fundamento para o desenvolvimento das CEBs, levou uma parte da igreja do Brasil e de muitos países da América Latina a fomentar movimentos sociais, que passaram a contestar tradições políticas locais e seus regimes autoritários.

O segundo aspecto da matriz tem relação com a experiência sindical, na condição propriamente de sindicalista ou de assessor de ONGs que realiza assistência técnica para áreas de assentamento e comunidades rurais. O espaço de atuação nos sindicatos de trabalhadores rurais e/ou nas ONGs foi e ainda é, para

muitos agentes, o primeiro momento de organização social depois da experiência da igreja.

A formação dada pela igreja foi terreno fértil para o surgimento do chamado sindicalismo “CUTista” das áreas rurais, em particular no Sertão do Apodi. O novo sindicalismo era quase sempre formado por jovens que se posicionavam de forma a enfrentar o modelo sindical tradicional da Fetarn/Contag. A Igreja Católica também foi importante na formação de sindicalistas no Seridó, tendo talvez um papel até mais proeminente do que ocorreu no Sertão do Apodi. Porém, no Seridó, a igreja tinha preocupação em manter a unidade da identidade dos supostos valores seridoenses, como será descrito e analisado posteriormente.

No entanto, as intervenções feitas nos dois territórios tiveram formas e conteúdos bastante diferenciados. Enquanto a influência formativa da igreja do Seridó conservou o sindicalismo rural Contaguiano, no Sertão do Apodi aconteceu o inverso, pois, através, sobretudo, da Comissão Pastoral da Terra, a igreja foi importante para a criação de dissidências sindicais, nascendo então os “rurais cutistas” naquele território.

Mais tarde, as ONGs com atuação junto aos agricultores familiares no rural do Rio Grande do Norte contribuíram para a criação de uma nova proposta de organização sindical. A atuação das ONGs se confunde com a do sindicato e durante muito tempo foram indissociáveis, uma vez que, tanto no Seridó quanto no Sertão do Apodi, as parcerias institucionais alimentaram seus projetos coletivos.

Na década de 2000, o acirramento dos conflitos sindicais possibilitou o “cisma” no interior do movimento sindical rural, o que levou à criação da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar (Fetraf). Com a criação da Fetraf, novas lideranças sindicais passaram a buscar um espaço representativo na sociedade, novas estratégias de legitimação surgiram, utilizando- se da terminologia da categoria agricultura familiar como forma de atuação política.

Nos sindicatos ligados ao sistema Contag, o surgimento da Fetraf, que na verdade foi um movimento nacional, também animou uma ação mais proativa e militante por parte dos que permaneceram estabelecidos nos sindicatos tradicionais. Nesse momento, foi importante a resposta às provocações dos dissidentes, para que não conseguissem aumentar seu contingente de novos filiados.

O terceiro e último aspecto tem relação com a instituição partido político, já que a experiência da participação político-partidária projetou os agentes da

agricultura familiar para um novo posicionamento no espaço social dos territórios. No Seridó, esse momento ocorreu a partir da década de 1960, enquanto no Sertão do Apodi aconteceu, principalmente, com a chegada do processo de redemocratização. A experiência da igreja e/ou do sindicato, para esses agentes, foi marcada por um estereótipo contestador de uma realidade social, reivindicador de políticas públicas e denunciador de seus problemas sociais. Foi a partir do engajamento partidário que se tornou possível a construção do que em muitos municípios significou a conquista de mandatos de vereadores, prefeitos, vice-prefeitos e o estabelecimento de parcerias com outros grupos políticos na ocupação dos espaços institucionalizados de poder.

O lugar das ONGs nesse debate permeia os três aspectos institucionais identificados. Elas estão na igreja, no sindicato e, em algumas situações, foram criadas por lideranças, ou estão a seu serviço, que têm dedicação aos partidos políticos ou serviam, concomitantemente, aos propósitos de todas as instituições anteriores. As ONGs existem por excelência para assessorar sindicatos e/ou associações rurais em suas comunidades e áreas de assentamento. O lugar delas nessa matriz de compreensão é o de ser instrumento de ação para os agentes nos diferentes espaços, mas com foco na execução de projetos de poder.

A partir de agora será analisado, em detalhes, cada um dos aspectos institucionais que caracterizam uma trajetória comum, identificados em uma matriz de compreensão institucional para a formação do habitus dos agentes no Seridó e Sertão do Apodi. Os procedimentos e disposições que compõem o habitus coletivo dos agentes da agricultura familiar apresentam semelhanças, mas, ao mesmo tempo, revelam as discrepâncias existentes entre as várias instituições que atuam nos dois territórios.

4.2 O ESPAÇO POSSÍVEL DA IGREJA: O ESPÍRITO CONTESTADOR COMO