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4 PERCURSO TEÓRICO DA AD

4.6 SOBRE A NOÇÃO DE FORMAÇÃO DISCURSIVA

É a Michel Foucault que se atribui a “paternidade” do termo formação discursiva (FD) e ela aparece primeiramente na obra Arqueologia do saber (1969). De acordo com Foucault, a FD não é definida em relação à ideologia, termo pensado por ele como “carregado de condições e consequências inadequadas para designar o sistema de dispersão” (FOUCAULT, 2007, p. 3). É a partir desta compreensão que Pêcheux propõe um reordenamento do termo. Por isso, o termo FD sofreu significativas mudanças no interior da AD, a começar por um aspecto particular de seu percurso conceitual que envolve dialeticamente as regularidades e as instabilidades dos sentidos. É esse dialogismo que torna a proximidade de Pêcheux e Foucault possível, ou seja, no momento em que ambos caminham para a ideia de heterogeneidade.

A contribuição de Foucault, além da própria denominação do termo, é a ideia de formas de repartição que definem o que pode ser dito nos diferentes meios sociais. Se anteriormente foi citado que o sentido é mutável, a formação discursiva é um dos fatores que consegue tal efeito, pois age decisivamente no que um enunciado pode significar. Para Foucault:

[...] em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1986, p. 9).

O objetivo de Foucault, segundo Pêcheux, no que diz respeito à ideologia, à análise das contradições de classes, pois é impossível fazer teoria sem tomar posição na luta de classes. O controle da “temível” materialidade, como diz Foucault, advém dos diferentes sentidos que um enunciado possa expressar e, para limitá-lo, é necessário inseri-lo em um conjunto de convenções em que a ideologia e as demais condições de produção “sufoquem” os demais sentidos, fazendo emergir apenas um, o mais aceito no meio em que a enunciação foi pronunciada. Os interesses sociais, as relações de poder, contribuem também para o surgimento das diferentes Formações Discursivas existentes e refletem a busca por manter a ordem e o segmento de suas crenças e valores. É, portanto, a partir daí que Foucault desenvolve a conceituação de que toda formulação repete, refuta, transforma, nega, enfim, em relação às quais se produzem certos efeitos de memória específicos.

Observa-se, então, a importância de inserir na concepção de FD a problemática da memória, cujo resultado do trabalho produz a lembrança ou o esquecimento, a reiteração ou o silenciamento de enunciados.

Segundo Pêcheux, a concepção de formação discursiva está em consonância direta com a ideologia haja vista que o autor a concebe a partir de um viés marxista, ou melhor, desloca tal noção para a teoria materialista relacionada à ideologia e à luta de classe, consequência da influência althusseriana. Pêcheux compreende formação discursiva como:

[...] aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 160). Assim sendo, pensamos que o que pode e deve ser dito em um discurso já pré-determina os efeitos de sentido que ali se produzem, conforme veremos no exercício de análise do corpus deste trabalho. A concepção de formação discursiva, portanto, está diretamente relacionada ao de formação ideológica, visto que o sujeito discursivo se inscreve ou se afasta de uma dada FD, de acordo com as formações ideológicas que determinam a FD. O significado das palavras não está na literalidade do signo, como já especificamos, ou seja, não existe um sentido específico. O significado de cada palavra aparece determinado no interior de uma formação discursiva. Conforme dissemos na seção anterior, a ideologia dispõe de uma história própria, consequência da luta de classes, quer dizer, de uma história das sociedades de classes (ALTHUSSER, 1974, p. 84). A ideologia não admite ser uma representação imaginária, todavia, está relacionada a reais condições de existência do sujeito, estabelecendo a localização que os sujeitos assumem ao inscreverem-se no conjunto de saberes que institui as formações discursivas,

Retomando Pêcheux, a ideologia funciona através das práticas sociais dos sujeitos. Assim sendo, é a ideologia por meio das práticas sociais e discursivas, que designa, ao mesmo tempo, o que o sujeito é e o que pode dizer. Ainda nesse sentido, Pêcheux (1997 [1975], p. 159-160) assegura que:

[...] É a ideologia que, através do “hábito” e do “uso”, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o que pode ser, e isso, às vezes, por meio de desvios linguisticamente marcados entre a constatação e a norma e que funcionam como um dispositivo de “retomada do jogo”. É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.

Desse modo, o discurso e o sentido são instituídos por várias FDs que, por sua vez, são representações e são determinadas pelas formações ideológicas (FI). A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetiva, portanto, pela sua identificação com a FD que o domina. Por esse motivo, o sujeito sempre fala inscrito numa posição discursiva e ideológica. É no interior do interdiscurso que estão dispostas as FDs numa relação de conflito e/ou aliança. Por essa razão, é através da ideologia que o sujeito se realiza. E todo sujeito é atravessado por formações ideológicas (FIs). A ideologia, em nossa perspectiva, está inerente e materialmente ligada ao inconsciente. O sentido é, por conseguinte, a relação existente entre o sujeito desde então interpelado pela ideologia e tocado pelo inconsciente. Pêcheux (1997 [1975], p. 160-162) define de forma precisa uma FD:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito [...]. Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao “todo complexo com o dominante” das formações discursivas intricado no complexo das formações ideológicas [...]. Diremos, nessas condições, que o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes em outro lugar e independente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas.

Diante disso, Pêcheux defende que toda FD está interiormente delimitada e governada por leis sócio-ideológicas. Nesse sentido, a FD caracteriza, na ordem do discurso, o espaço de coexistência do sentido e do sujeito. No próximo tópico, abordamos mais detidamente a questão do sujeito para a AD.

principalmente nos anos posteriores a 1980, quando o autor abre espaço para perspectivas de rediscussão, dentre elas, as que envolvem a FD, memória e história. Essas transformações no conceito de FD refletem-se na modificação do conceito de objeto discursivo5, pois surge a necessidade de a AD ampliar seu objeto de análise, incorporar conceitos que supram algumas lacunas relacionada à complexidade que se estabelece os fundamentos teóricos.

Assim sendo, a FD (heterogênea em sua constituição) é observada com mais afinco na existência material das formações ideológicas em seu interior. Não há uma homogeneidade que permita separar as FDs entre si, pois, em sua constituição, formações ideológicas distintas, com resquícios de outras FDs, fazem-se presentes. Observa-se, assim, um aumento do trabalho do analista, pois agora é necessário explicar um conjunto complexo de natureza heterogênea que compõem as FDs e, consequentemente, as contradições entre si, sob o domínio de um conjunto também heterogêneo de formações ideológicas originadas na luta ideológica de classes.

Essa problematização institui o território da História como o campo das FDs. Isso torna possível enxergar, na dispersão de enunciados, certas regularidades nos discursivos, pois toda a massa de textos que pertencem a uma mesma FD insere-se em um campo em que podem ser estabelecidas identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polissêmicos, segundo regras específicas das práticas discursivas. Dessa trama decorre o fato de que, desde sua raiz, o enunciado se delineia em um campo enunciativo que tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual, isto é, que o insere na rede da História e, ao mesmo tempo, o constitui e o determina.

De maneira bastante esquemática, são as formações discursivas que regulam o que pode e deve ser dito, dependendo do lugar de onde o sujeito enuncia e para quem enuncia, assim como o que deve ser silenciado porque não pode ou não deve ser dito em determinadas condições de produção. Compreende-se, portanto, que se trata de um conjunto de enunciados que se espera que o sujeito enuncie de acordo com a sua posição. As formações discursivas demonstram quais as posições ideológicas que sustentam o sujeito. Diante do exposto, observemos a definição abaixo que salienta a contribuição das FDs no discurso:

5

De acordo com Orlandi (2010), é o nome que se dá ao corpus de análise, após a passagem pelo primeiro processo analítico ao qual o texto é exposto.

O domínio de saber de uma FD funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de reformulações (determina „o que não pode/ não deve ser dito‟) (COURTINE, 2009 p. 99).

Neste sentido, tem-se um fechamento inconsciente, que nos possibilita delimitarmos o que pertence ao interior da FD daquilo que lhe é exterior. O fechamento é incerto, pois as posições ideológicas que a FD representa em uma determinada conjuntura histórica contribuem para esse fechamento, modificando-se em um outro momento histórico. Devido à mudança ideológica, a significação e a produção dos efeitos de sentido também serão divergentes.

Vejamos, após a discussão sobre FD, como o sujeito se instaura na AD.