• Nenhum resultado encontrado

3 DISCUSSÕES TEÓRICAS

3.4 Sobre relações de poder

Investigar o processo de constituição discursiva de identidades não apenas persuade o investigador a envolver-se em relações de poder, como também a pen-

sar o seu objeto de estudo envolvido e afetado por essas relações. Tratamos o pro- cesso de constituição identitária como uma prática produtora de discursos em torno de sujeitos, que, por sua vez, assumem diferentes posicionamentos de acordo com as formações discursivas em que inserem e com os contextos institucionais de que participam (HALL, 2000; 2005; WOODWARD, 2000). Além disso, estando o sujeito inserido em práticas de produção e de significação, ele se insere também em rela- ções de poder (FOUCAULT, 1995). Em nosso estudo, enfocamos relações de poder, porque essas e as práticas discursivas envolvem e constituem as mulheres que co- laboraram conosco, assim como fazem como quaisquer sujeitos. Não aspiramos ao desvelamento de qual poder influi nas práticas discursivas de que elas participam, mas tentamos problematizar os efeitos de poder que circulam entre essas práticas e a partir delas. Pesquisar acontecimentos discursivos e relações de poder é pesqui- sar também a produção de sujeitos e de suas várias identidades – a étnica, a racial, a de gênero, a de geração, a de classe etc.

Poder aqui não é concebido como algo que se possui e que se utiliza para demonstrar a sua autoridade e até autoritarismo sobre os outros. Caso concordás- semos com essa idéia, a noção de poder estaria associada à repressão, como se os efeitos de poder fossem somente negativos. De fato, essa concepção é encontrada em muitos estudos preocupados com relações entre sexos, com condições de vida de mulheres e com questões de gênero. Adotando-a, estamos entendendo a mulher como um ser frágil, submisso, incapaz de tomar decisões sobre a sua própria vida. Todavia, não é assim que a enxergamos e queremos enxergá-la. Resistimos a es- ses discursos, embora sejamos conscientes da violência, da dependência financeira, da dependência psicológica de que muitas são vítimas, geralmente em relação a homens presentes em suas vidas.

É numa perspectiva foucaultiana que tomamos o poder. Nessa concepção, ele apresenta três aspectos relevantes: não tem a repressão como ponto central; é, sobretudo, exercido, em detrimento de ser possuído; é praticado por todos, tanto dominantes quanto dominados (FOUCAULT, 1995; DELEUZE, 2005). Para Foucault (1979; 1995), poder corresponde à relação de forças: forças que se confrontam com outras forças, poderes que interagem com outros poderes, revelando-se nas lutas quotidianas, microfisicamente nas várias instâncias da vida humana, além de en- contrar-se ao alcance de todos os envolvidos, de todos os interlocutores, – indepen-

dente de sexo, gênero, classe, etnia, raça, sexualidade, idade –, sem que um se anule face à força exercida pelo outro.

O poder tem como função afetar e como matéria ser afetado. Isso não implica pensar em exercícios de poder qualificados como ativos e outros como passivos. Se a prática de poder é considerada como um afeto e se exercê-lo é afetar outras for- ças, devemos referir-nos a afetos ativos e a afetos reativos. Conseqüentemente, po- demos pensar que, assim como as práticas não-discursivas são irredutíveis às dis- cursivas, as forças que são afetadas também não se reduzem àquelas que as afe- tam (DELEUZE, 2005). Do mesmo modo, sabendo que as relações de poder estão ao alcance de dominantes e dominados, nenhum interlocutor se subjuga completa- mente às forças que lhe atacam, porque ele possui a capacidade de resistir, fazendo com que o outro também seja confrontado pelo seu exercício de poder.

Em seus estudos, Foucault (1995) apreende como ponto de partida as estra- tégias de resistência acionadas contra os efeitos do exercício de poder e, assim, pensa os modos de objetivação dos sujeitos. Justificando o seu envolvimento com essa questão, ele (1995, p.232) afirma:

É verdade que me envolvi bastante com a questão do poder. Pare- ceu-me que, enquanto o sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, é igualmente colocado em relações de poder muito complexas. Ora, pareceu-me que a história e a teoria econômica forneciam um bom instrumento para as relações de pro- dução e que a lingüística e a semiótica ofereciam instrumentos para estudar as relações de significação; porém, para as relações de po- der, não temos instrumentos de trabalho. O único recurso que temos são os modos de pensar o poder com base nos modelos legais, isto é: o que legitima o poder? Ou então, modos de pensar o poder de acordo com um modelo institucional, isto é: o que é o Estado?

Era, portanto, necessário estender as dimensões de uma definição de poder se quiséssemos usá-la ao estudar a objetivação do sujeito.

É nessa dilatação das dimensões do poder que Foucault fornece subsídios teóricos e metodológicos para que os estudos sobre mulheres e gênero fossem re- dimensionados, a ponto de investirem na desconstrução de significados imputados a partir de uma marca corporal, de um signo, do sexo biológico. Tomando poder como força exercida em relação a outras forças, ele oportuniza a visibilidade das mulheres não mais enquanto sujeitos inertes às atitudes dos homens. Muitas foram as tentati-

vas de alterar essa visão que recaía sobre as mulheres. Na subseção 3.2, quando discorremos a respeito de gênero e registramos rapidamente o percurso desse cam- po, vimos que a crítica feminista à prática de historiadores e outros cientistas contri- buiu para uma desconstrução dos significados sociais atribuídos a mulheres e ho- mens, concorrendo para a reelaboração de modelos de papéis e identidades de gê- nero e de sexualidade, que nos são apresentados como se fossem portadores de uma lógica inexorável e como se fossem situados fora dos domínios da cultura e do poder.

Nesse sentido, Foucault traz subsídios à crítica feminista através de uma no- ção de poder que tem como elemento central a resistência, que expõe o corpo como alvo e veículo do biopoder, que se apresenta como uma rede de forças em exercício no quotidiano. As suas contribuições concorrem para desconstruir os regimes de verdade elaborados em torno de determinados objetos presentes nas várias instân- cias da vida quotidiana, persuadindo-nos a perceber que “Não há objetos naturais, não há sexo fundado na natureza” (PERROT, 2005, p.501). Também não há gênero instituído na natureza. Inspirados em Foucault (1969; 1995; DELEUZE, 2005), po- demos afirmar que eles são efeitos de práticas discursivas e de exercícios de poder.

Aqueles modelos são constituídos a partir de regimes de verdade que impli- cam efeitos de poder sobre corpos e vidas de indivíduos comuns. No entanto, essas práticas discursivas, originárias de uma matriz heterossexista e falocêntrica (BU- TLER, 2003), não são imunes à alteração. Essa matriz parece afetar, de modo uní- voco, todos os sujeitos a partir da aparente coerência do gênero e do binarismo atri- buído ao sexo e ao gênero. Essa univocidade, coerência e estrutura, conforme Bu- tler (2003, p.59), “são sempre consideradas como ficções reguladoras que consoli- dam e naturalizam regimes de poder convergentes de opressão masculina e hete- rossexista”. Se a resistência é imprescindível para o exercício de poder, os sujeitos podem resistir, questionando essas identidades que lhes são impostas, tornando identidades claras em opacas, incertas.

Na contemporaneidade, cada vez mais vêm surgindo práticas de dizer e de ver que cooperam para dar visibilidade a sujeitos que expõem as suas marcas cor- porais como marcas de poder, seja porque afetados seja porque afetam, no sentido de resistir. Com efeito, podemos citar a travesti, a drag queen, o metrossexual… Mas, os próprios homens e mulheres que se fizeram objetos construídos por aqueles regimes de verdade e de poder instituídos pela matriz da heterossexualidade e do

falocentrismo podem mostrar-se dispostos a questionar tais maneiras de exercer a sua masculinidade e a sua feminilidade (BUTLER, 2003; LOURO, 2004).

Tratamos de forças que estão em relação a outras forças (DELEUZE, 2005), que se desenvolvem e se expõem no corpo e através do próprio corpo humano, construindo regimes de verdade em torno dele e regulando as suas ações, através do estímulo, da incitação etc. – o que descarta a idéia de que o poder é, exclusiva- mente, repressor. Concebê-lo a partir da repressão é tê-lo sob uma perspectiva jurí- dica, como uma lei que diz não, como o ato realizado por alguém que tinha como propósito impedir outrem de fazer algo, como as ações adotadas pelo Estado a fim de coibir os indivíduos de abalarem a ordem social estabelecida. Na verdade, o po- der é, sobremaneira, uma rede de forças produtivas, que investe sobre todo o corpo social. Para Foucault (1979, p.8),

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é sim- plesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância nega- tiva que tem por função reprimir.

Nessa citação, quando afirma “o poder não pesa só como uma força que diz não”, Foucault não nega o seu aspecto proibitivo, mas, sobretudo, alerta para as su- as possibilidades produtoras, expandindo o horizonte de exercício de poder; ou, melhor dizendo, já que as relações de poder já eram presentes nas diversas esferas da vida quotidiana, essa noção expandiu o horizonte de estudos de poder. Podemos vivenciar relações de poder na família, na escola, na religião, na produção científica, na mídia… e não apenas na instituição do Estado. Podemos sentir os seus efeitos positivos muito mais do que os negativos – isso, principalmente num momento histó- ricos em que as práticas discursivas na mídia contribuem bastante para a reformula- ção, o deslocamento e a fragmentação das paisagens culturais, influindo na produ- ção dos sujeitos na contemporaneidade e na ressignificação das identidades desses sujeitos, em termos de gênero, raça, etnia, sexualidade, classe, geração etc.

Quanto aos aspectos positivos e negativos dos efeitos de poder, é importante lembrarmos que, no âmbito dos estudos de gênero, muitos trabalhos abordam a vi-

olência contra as mulheres. Contudo, embora não esquecendo a existência da re- pressão, não podemos confundir poder com violência, embora essa possa resultar daquele. A diferença entre eles é que a atitude violenta tem como alvo corpos, ob- jetos, pessoas, seres diversos, destruindo, deformando, alterando a sua morfologia, enquanto que o poder almeja atingir ações, forças, induzindo, estimulando, motivan- do, limitando etc.

Foucault (1995) elenca três tipos de lutas antiautoritárias: contra os mecanis- mos de dominação, contra os de exploração e contra os de sujeição. Elas são mo- dos de exercício de poder, de resistir a ele, ou, melhor dizendo, de exercício de po- der a partir da resistência. Em relatos de vida, esses mecanismos podem ser perce- bidos agindo sobre os sujeitos, como acontece no caso das mulheres entrevistadas. Neles, também notamos estratégias acionadas por elas para resistirem àqueles me- canismos.