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Das mulheres com quem tivemos contato, como já registramos, conseguimos transcrever somente os relatos de vida de três delas. Aqui apresentaremos alguns comentários a respeito dessas colaboradoras, a partir da retomada da trajetória es- colar, que se configurou no principal critério para a escolha delas. Quanto à nomea- ção de cada uma delas, de início, pensamos em utilizar o vocábulo mulher atrelada a um número – a saber: mulher-01, mulher-02, mulher-03 –, porque mulher é uma categoria empírica no âmbito dos estudos de gênero (HEILBORN; SORJ, 1999; KO- FES, 1993). Depois, no receio de que imperasse certa impessoalidade, optamos por nomeá-las com o seu primeiro nome. Porém, notamos que, desse modo, poderiam ser identificadas por alguém que trabalhasse na mesma instituição. Assim, com o compromisso de resguardar a imagem das colaboradoras e respeitar o seu direito de privacidade, resolvemos denominá-las com a letra M referindo-se à categoria empíri-

ca mulher, as letras inicial e final do primeiro nome delas e o ano em que a entre- vista foi realizada.

MSA2004 nasceu em Arez (RN), onde viveu até os dez anos de idade, quan- do migrou para Natal (RN). Estudou muito pouco quando morava em sua cidade de origem. Depois de uma interrupção, voltou a estudar numa primeira vez, quando re- sidia em Natal e já tinha dezesseis anos. Segundo os seus relatos, desde o início a sua trajetória escolar se mostra marcada por dificuldades de aprendizagem, mudan- ças de colégio, desistências e paradas: “Ia para outro colégio, não gostava do colé- gio. Pedia para voltar para aquele outro colégio. Voltava. E continuava e sempre não passava […]. Aí, depois, saí do colégio e fiquei sem estudar. Agora, com muito tem- po, foi que eu vim voltar a estudar” (MSA2004). Hoje, ela tem mais de quarenta anos, é casada e tem um filho e uma filha. Ela informa que o último retorno ocorreu há aproximadamente três anos, após o nascimento e crescimento dos filhos, porque, enquanto pequenos, a sua responsabilidade pelo cuidado e pela educação deles poderia ser um empecilho para o acesso e a freqüência à escola. Apesar de não mais exigirem cuidados concernentes à fase infantil, eles reclamam determinados posicionamentos identitários apropriados ao ambiente doméstico, quando ela está na escola, devendo identificar-se como estudante nesse contexto institucional. O fato de não conviver diariamente com o pai dos filhos obriga-a a assumir posiciona- mentos que, por vezes, podem ser atribuídos ao papel masculino.

MIA2004 nasceu em Cana-brava, comunidade do município de Macaíba (RN). Durante a infância, trabalhava com outros membros da família na lavoura. Iniciou a sua trajetória escolar com oito anos de idade, que foi suspensa, por mais de uma vez, devido às condições financeiras desfavoráveis à compra de material e trans- porte escolares. Passou a morar em Natal, trabalhando como empregada doméstica, mas retornou à sua cidade de origem, após assédio sexual do patrão, quando des- cobriu que ela já tinha uma filha e que era mãe solteira. Nesse regresso à casa dos pais, voltou a trabalhar na roça. Esse trabalho foi interrompido com a doença da mãe, fato que a obrigou a atuar somente no espaço privado, a fim de cuidar daquela e dos afazeres domésticos. Depois do falecimento da mãe, os cuidados foram reser- vados ao pai. Permaneceu na cidade de origem, junto aos familiares, até que decidiu buscar trabalho remunerado em Natal. Entretanto, a partida não aconteceu de ime- diato, pois ela esperou que a irmã fosse morar na casa dos pais de novo, com mari- do e filhos, para que pudesse morar em Natal mais uma vez. Nessa cidade, depois

de alguma experiência profissional, passou a conviver com o companheiro, que as- sumiu a sua ligação com a entrevistada, depois de ter ficado viúvo. De acordo com os seus relatos, a característica preponderante desse relacionamento parece ser as relações assimétricas de poder, expressadas também pelo sentimento de posse e pelos atos de violência física do companheiro em relação a MIA2004, que não pos- sui a permissão de resolver problemas quotidianos, como, por exemplo, compras em supermercado, pagamentos bancários etc. A retomada da trajetória escolar dela re- sultou da permissão dele. Todavia, apesar disso, é possível percebermos estratégi- as de resistências ao poder exercido pela figura do homem.

MCO2005 nasceu em São Bento do Norte. Durante a infância, junto com os outros membros da família, trabalhava na lavoura. À noite, ia à escola, mas, de tão cansada, não aproveitava muitos das aulas: segundo ela, “ia só cochilar em cima dos birôs” (MCO2005). Casou, teve um filho e, após um irmão descobrir que ela era violentada pelo marido, foi levada de volta para a casa dos pais. Depois da separa- ção conjugal, percebeu que se encontrava grávida. Mesmo assim, continuou com os pais. Enquanto trabalhava na lavoura, a mãe cuidava dos seus filhos. Com vinte e sete anos de idade, mudou-se para Natal, a fim de trabalhar na casa de um fazen- deiro de sua cidade e que morava na capital do Estado. Trabalhava e mandava di- nheiro para a família quinzenalmente, até que, algum tempo depois, trouxe para mo- rar com ela os filhos e outros membros da família. Atualmente, desempenha a fun- ção de copeira numa instituição de ensino superior público, localizada no Estado do Rio Grande do Norte. Esse trabalho, ela o adquiriu mesmo com um nível de escola- ridade considerado mínimo – o que não a conduz a retomada da trajetória escolar. Conforme a análise dos seus relatos de vida, notaremos posicionamentos identitári- os de alguém que se empenhou em conquistar certa estabilidade financeira, resi- dência própria e, sobretudo, independência em relação a alguma figura masculina que exercesse o papel de marido, uma vez que é a provedora das necessidades do lar, não se casou mais, atua como chefe de família.