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1. BREVE PANORAMA DA BACIA DO UAUPÉS: OS POVOS TUKANO

1.2. Sobre território, hierarquia e descendência

serviria (ao menos no passado) para estruturar suas trocas matrimoniais.

Por fim, há ainda o modelo sugerido por C. Hugh-Jones (1979) para o sistema de

sibs tukano, o qual está baseado na idéia de uma ordenação funcional dos sibs por meio

de papéis rituais especializados. Neste modelo – que parece operar em alguns casos, ao menos enquanto uma idealização nativa do passado –, além dos chefes e servos, categorias que ocupariam os dois extremos da escala hierárquica, os sibs de posição intermediária também seriam classificados e ordenados de acordo com funções específicas. Mais propriamente, a autora sugere um modelo formal em que os grupos exogâmicos do Pirá-Paraná seriam constituídos por uma ou mais séries de cinco sibs ordenados hierarquicamente conforme sua especialização numa escala composta por cinco papéis rituais: chefes, dançarinos/cantores, guerreiros, xamãs e servos. Um grupo formado apenas por uma série de cinco sibs, ocupando cada qual uma dessas funções, constituiria o que a autora chamou de “grupo exogâmico simples”; já um grupo formado por mais de uma série constituiria um “grupo exogâmico composto”. Desse modo, a hierarquia entre os sibs seria colocada em termos de um ordenamento entre as funções rituais de cada um, o que levaria a uma ênfase na complementariedade e na coesão do grupo como um todo.

Hoje, como muitos autores já ressaltaram, esta especialização é fracamente verificável e quase sempre remete a um passado idealizado, onde cada sib, além de exercer um papel específico, também formaria um único grupo local agnático, numa conjunção ideal entre descendência e residência.

1.2. Sobre território, hierarquia e descendência

De fato, os idiomas nativos do Uaupés parecem colocar uma grande ênfase na articulação entre descendência, território, hierarquia e prerrogativas rituais. No âmbito dos grupos de descendência exogâmicos, o território serve como um importante ‘índice de identidade’, na medida em que se reveste de uma série de significados sociocosmológicos ligados à ancestralidade. Por isso, mesmo entre grupos hoje

geograficamente dispersos, o território tradicional de ocupação continua tendo um valor de referência crucial para a sua auto-imagem e para a sua identificação por outros grupos, como pude perceber entre os próprios Waikhana. Apesar de existirem hoje aldeias waikhana em alguns dos trechos do rio Uaupés, o médio Papuri, local de ocupação antiga – e ponto onde deságua um igarapé chamado Macucu, o qual é reconhecido por eles como seu território ancestral –, continua sendo apontado (por eles e por outros) como o lugar próprio dos Waikhana enquanto um grupo de descendência. Assim, os que permaneceram no Papuri formam hoje o principal nexo regional waikhana na bacia do Uaupés.

Os índios geralmente explicam este vínculo territorial em referência a um passado onde cada grupo estaria concentrado num mesmo trecho de rio, identificado como seu território ancestral. Desse modo, os seus diversos clãs encontrar-se-iam dispostos ao longo deste território, de modo que cada qual formaria também um grupo local agnático, composto geralmente por uma ou duas malocas multifamiliares onde viviam todos os membros do clã e suas esposas, vindas de outro grupo exogâmico. As fronteiras territoriais entre os diferentes grupos seriam, assim, mais bem definidas, do mesmo modo que a organização socioespacial dos grupos locais, a qual seria regida pelo sistema de clãs.

Conforme J. Chernela (1982; 1983), neste contexto o idioma da hierarquia seria, portanto, um fator chave na ordenação espacial dos clãs e dos grupos locais (mas ver também Goldman, 1963, p. 34 e C. Hugh-Jones, 1979, p. 20). Isto porque a ocupação do território pelos grupos exogâmicos, se daria por uma lógica tradicional na qual os clãs de mais alta hierarquia ou os clãs de “chefes” – juntamente com os clãs de servidores, que os auxiliariam nas atividades cotidianas e rituais – teriam a prerrogativa de ocupar os baixos cursos dos rios, onde a pesca é mais abundante e a comunicação com outros rios facilitada. Enquanto os clãs hierarquicamente inferiores, à exceção dos “servos” que habitariam com os clãs maiores, ocupariam os altos cursos ou os igarapés, onde o pescado é mais escasso e o acesso mais difícil, devido às inúmeras corredeiras que cortam os rios da região.

Contudo, apesar da ênfase nativa numa organização estrutural e espacial dos grupos do Uaupés com base na descendência patrilinear, na hierarquia, nas especializações rituais e na exogamia, na prática tudo isto parece ser muito mais fluído e variável do que o que aponta o modelo ideal, como já havia sugerido C. Hugh-Jones (1975, p. 105). Primeiro porque, além da ampla dispersão dos clãs ou segmentos de clãs de um mesmo grupo pelos vários rios e igarapés da região, muitas vezes bastante distantes entre si, a existência de certos arranjos locais que congregam distintos grupos exogâmicos é bem comum no Uaupés atual, e provavelmente sempre o foi. A residência conjunta ou a vizinhança próxima a um grupo aliado parece fazer com que os princípios que estruturam internamente os grupos de descendência – a agnação, a exogamia e a hierarquia – cedam lugar a um ambiente onde predominam a cognação, a endogamia e o igualitarismo. Pois, como bem mostraram autores como Århem (1981) e Cabalzar (2009), nestas situações o princípio da aliança parece sobrepujar o princípio da descendência enquanto estruturador das relações e dos arranjos sócio-espaciais, o que indicaria que no Uaupés estes dois princípios constituiriam formas concorrentes, alternadas ou complementares de sociabilidade.

Mas a fluidez do sistema social uaupesiano não se verifica apenas no âmbito dos arranjos sócio-espaciais. O dinamismo do sistema parece marcar até mesmo aquela dimensão que em tese encarnaria a própria estabilidade e rigidez das sociedades tukano, a saber, a hierarquia. Em primeiro lugar, mesmo que a ordenação hierárquica dos clãs e segmentos de cada grupo pareça ser encarado pelos índios como uma espécie de replicação de uma ordem fixada no tempo dos primeiros ancestrais, ela pode estar sujeita a uma série de controvérsias conforme o pólo (clã) enunciador do discurso mítico. Disputas de precedência e manipulações no ordenamento dos clãs através de maneiras diversas de apresentar a história são comuns, sobretudo entre os clãs que ocupam uma posição intermediária na escala hierárquica. Mas as controvérsias também incidem sobre a problemática das especializações rituais, ou melhor, sobre o status e o valor das diferentes funções. Um clã tradicionalmente conhecido por ser um clã de bayas, dançarinos/cantores, pode se vangloriar perante um clã de chefes, pelo fato de ser

detentor de certos conhecimentos esotéricos muito valorizados, mesmo que o segundo ocupe uma posição mais elevada na hierarquia de senioridade.

Além disso, a plasticidade da dimensão hierárquica entre os povos tukano se verifica ainda em certos contextos atuais nos quais a questão do prestígio e mesmo das classificações hierárquicas são também regidas por outros fatores além daqueles baseados na descendência e na senioridade. A valorização da carreira escolar e de algumas ocupações profissionais que vêm surgindo hoje no Uaupés, como soldados e funcionários públicos em geral, mas, sobretudo, professores, faz com que estes novos papéis sociais tornem-se importantes alternativas de prestígio e status para quem os ocupa, sobrepondo- se muitas vezes ao sistema hierárquico tradicional. Um fato relatado por Geraldo Andrello (comunicação pessoal) demonstra bem o modo como estas novas formas de prestígio podem mesmo incidir sobre as classificações nativas, ao mesmo tempo em que continuam a ser lidas e resignificadas através dos próprios conceitos tradicionais. Um homem tukano morador de Iauaretê, pertencente a um clã de “avô”, portanto inferior na escala hierárquica, depois de concluir o ensino superior e se tornar mestre em educação, passou a ser chamado de “tio” por outro homem pertencente a um clã de “netos”, hierarquicamente superior. Ou seja, com base no prestígio alcançado através de sua formação escolar, ele pôde ser realocado no esquema da hierarquia, passando a ser denominado por um termo de tratamento que abrandaria sua condição inferior. Este fato é ilustrativo do dinamismo que perpassa a hierarquia uaupesiana e demonstra bem a maneira pela qual a linguagem tradicional pode ser transformada e ajustada para conceitualizar situações novas.

Em verdade, o que parece vigorar hoje entre os povos do Uaupés é uma situação que oscila da tensão ao ajuste entre os diferentes códigos que atualmente concorrem para a estruturação de suas relações sociais. Descendência e aliança, hierarquia e igualitarismo, por um lado; por outro, a operacionalidade das categorias tradicionais ao lado de novas linguagens que passam a vigorar na medida em que se estreitam as relações com a sociedade branca. Todos estes são modos de sociabilidade e idiomas passíveis de atualizações e usos diversos conforme o contexto e as motivações daqueles que os agenciam. Pois os índios parecem lidar muito bem com estas diferentes linguagens,

passando de uma à outra, equacionando-as ou confrontando-as conforme as circunstâncias e os interesses em questão.

Mas vale aqui uma observação importante a respeito da própria problemática da descendência no universo tukano. Pois se, por um lado, esta aparece como um dos modos por meio do qual estes povos pensam a si mesmos e vivenciam suas relações sociais, por outro, em seu sentido mais profundo, a idéia de descendência constitui o cerne de toda a vida ritual e espiritual no Uaupés. Mais do que questões de status, prestígio e honra relacionadas às posições genealógicas, o que parece estar implicado na idéia de descendência tukano é a transmissão de vitalidades e poderes metafísicos oriundos do passado mítico. Nesse sentido, tal categoria aparece assentada antes em certas premissas mítico-cosmológicas do que na existência de linhas genealógicas ligando o presente ao passado ancestral; o que aponta para uma realidade muito mais aberta e fluída do que, a princípio, o uso do termo poderia sugerir.

Primeiro que, como já destacou Goldman (1977), entre os povos tukano, as patrilinhas estruturadas hierarquicamente não chegam a formar grupos corporados, fundados em linhagens e genealogias. Pois apesar de representarem uma significativa exceção patrilinear e um caso incomum de segmentariedade hierárquica num contexto como o da Amazônia nativa – marcado em grande medida pelo cognatismo, pela bilateralidade e por um ideal mais igualitário –, os povos tukano também compartilham daquelas características gerais observadas para as sociedades das chamadas terras baixas sul-americanas (cf. Kaplan, 1977; Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979): entre eles, a continuidade social também não se efetuaria pela via juralista das linhagens, dos grupos corporados e seus direitos sobre a terra e os recursos produtivos (como no caso das sociedades africanas), mas sim pela transmissão de propriedades metafísicas como nomes, almas e substâncias.

Diversos autores já chamaram a atenção para o fato de os grupos de descendência tukano possuírem uma fraca memória genealógica e pouco interesse nas genealogias do tempo presente, sendo que a conexão com o passado ancestral seria dada por outras vias, como os rituais de iniciação e, sobretudo, o sistema de nominação (ver especialmente C.

Hugh-Jones, 1979, p. 33-40/133-168; Chernela, 1992; Goldman, 1963, p. 90-101)12. Esta fraca ênfase sobre a genealogia, como disse C. Hugh-Jones (1979, p. 40), poderia parecer “surpreendente em uma sociedade na qual o pertencimento ao grupo patrilinear se assenta fortemente sobre a descendência”; se não fosse o caso de, aqui, a própria descendência constituir uma noção mais metafísica do que ‘genética’ (e jurídica). Pois, como sugeriu a autora (id., p. 164), a conexão entre o presente e o passado e a própria perpetuação dos grupos patrilineares entre os povos tukano, seriam garantidos não pela ligação fisiológica entre pai e filho, mas sim pela nominação e por tudo aquilo que seria transmitido através dos nomes: essências espirituais, ‘força de vida’ ou a própria ‘alma’ dos ancestrais13. Ou seja, constituindo o próprio alicerce da vida de qualquer indivíduo, seriam estas propriedades veiculadas pelos nomes que, no limite, efetivariam o pertencimento das pessoas aos grupos de descendência.

A partir disso, podemos compreender aquela ressalva feita por S. Hugh-Jones (2002, p. 47) a respeito da noção de patrilineariedade no Uaupés. Segundo o autor, entre os povos tukano a identidade e o pertencimento ao grupo, assim como a transmissão de propriedades (materiais e imateriais) ao longo das gerações, “não estão baseados em algum princípio abstrato e a priori de descendência”. Pelo contrário, “é a propriedade material e imaterial e as noções de essência, propriedade e identidade que constituem os grupos e os tornam ‘patrilineares’ – e aqui a língua, os nomes e a nominação passam a primeiro plano”. Os povos tukano, assim, só seriam patrilineares pois as forças vitais e as essências espirituais que dão vida às pessoas e garantem a continuidade dos grupos – bem como a propriedade material e imaterial que lhes serve de veículo (flautas sagradas, enfeites de dança, cantos, nomes, línguas) – são atributos transmitidos por linha

12 Para os autores, esta fraca profundidade genealógica seria devido à existência de um estoque limitado de

nomes entre os povos tukano, o que levaria a uma repetição sistemática dos nomes a cada geração alternada. Mas vale notar que autores como Adrello (2006, p. 329-345) e Cabalzar (2009, p. 205-208), problematizam este ponto, analisando alternativas e estratégias utilizadas pelos índios (Tariano e Tuyuka, respectivamente) para incrementar sua memória genealógica, dentre estas o uso de nomes cristãos, de apelidos e a referência a nomes de lugares por onde os ancestrais passaram.

13 A expressão tukano para ‘alma’ é ehêri porã, que literalmente significa ‘filho da respiração’, mas que os

próprios índios costumam traduzir por ‘coração’ – na língua waikhana se diz ehedi pona ou hedipona. Essa ‘alma-coração’, que seria transmitida por meio dos nomes, estaria também ligada à noção de ‘vida’ ou ‘força de vida’, chamada kahtiró em muitas das línguas tukano. Para uma interessante análise do corpus cosmológico que informa a cerimônia de nominação entre os Tukano, ver Andrello (2006, p. 257- 272). Este tema será tratado no último capítulo deste trabalho.

masculina, desde os tempos dos primeiros ancestrais míticos. Nesse sentido, aquilo que Goldman observou a respeito da idéia cubeo para isto que nós chamamos de “descendência patrilinear”, poderia ser estendido a todos os povos tukano:

What is termed “patrilineal descent” in the sociological vocabulary appears in the Cubeo traditions as a configuration of masculine powers. These powers are primary, creative, initial sources of human life, the start of the descent lines and the opening phases of the generative process (2004, p. 43).

Constituindo a fonte propulsora dos processos criativos, transformativos e multiplicadores, os poderes masculinos seriam, assim, potências espirituais responsáveis pela própria instituição da vida humana14. O que se transmite por linha paterna, primeiro através do sêmen, mas, sobretudo, através dos nomes, é a própria ‘vida’ (kahtiró) ou a ‘alma’ (hedipona, também traduzido por ‘coração’) da criança: seu sopro vital. Buscado no mundo ancestral por aquele que conduz a cerimônia de nominação, o nome (wa’me), veículo de essências espirituais e das potências transformativas do passado mítico, é, desse modo, o que efetiva o pertencimento da criança ao grupo de descendência e, ao mesmo tempo, o que lhe confere toda a força e vitalidade necessárias para o seu crescimento e pleno desenvolvimento humano. Portanto, conforme dirá Goldman, patrilinha aqui “não é tanto um conceito de descendência sociológica, mas de transmissão de forças e poderes metafísicos” (id., p. 44).