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4. AS FALAS ANCESTRAIS E A COSMOPOLÍTICA WAIKHANA

4.3. Um futuro sem grandes conhecedores

No tempo em que passei entre os Waikhana pude ouvir em diversas ocasiões algo parecido com o que F. Cabalzar (2010) ouviu de seus interlocutores Tuyuka: o juízo corrente de que hoje, mesmo entre os maiores, ninguém mais estaria sendo preparado para ser grande benzedor e conhecedor de cantos e danças e que os saberes e benzimentos atualmente em circulação seriam mais simplificados e bem menos potentes do que eram no tempo dos antigos. Esta situação, segundo os índios, seria uma consequência das mudanças no modo de vida acarretadas com o estreitamente do contato com a civilização

dos brancos, processo que levou ao abandono de parte das práticas rituais tradicionais e à adoção da educação escolar como principal via na formação dos jovens. Dizem que com isso os velhos foram parando de falar e de transmitir aos filhos e netos os seus saberes, ao mesmo tempo em que começaram a abrandar os benzimentos para adequá-los aos novos padrões de vida, de comportamento, de alimentação.

Os próprios benzedores costumam contar que com a vida desregrada que muitos levam hoje, sem respeitar as restrições alimentares e de comportamento, benzer a alma das crianças e jovens com nomes e poderes de grandes potências seria muito perigoso, já que sem os devidos cuidados corporais que é preciso manter em determinados períodos do ciclo de vida, as potências que a pessoa carrega poderiam acabar lhe “estragando” ao invés de fortalecê-la. Primeiro porque, ao que parece, os próprios poderes criativos oriundos do passado ancestral que o benzedor mobiliza para compor a alma das crianças e dos jovens que entrarão para a vida adulta, exigem um trabalho de domesticação através de restrições alimentares e de comportamento cujo rigor será diretamente proporcional à profundidade espaço-temporal que ele percorre para buscar os nomes e outros elementos que constituirão o hedipona (alma-coração) da pessoa. Quanto mais longínquos estiverem, mais potentes eles serão, mas serão também, por isso mesmo, mais perigosos, tanto para a pessoa quanto para o próprio benzedor. Em segundo lugar, revestir a alma com grandes poderes sem que se tome os devidos cuidados alimentares e comportamentais, tornaria a pessoa ainda mais vulnerável aos ataques de Wai Mahsã (Gente Peixe) e outros seres hostis, na medida em que lhe daria maior visibilidade frente ao chamado “mundo de baixo”. Por isso é que seria mais prudente hoje abrandar os benzimentos e compor a alma com nomes e objetos menos potentes, mas que, por outro lado, deixariam as pessoas menos vulneráveis.

Diz-se que os grandes conhecedores que ainda restam são os que tiveram sua alma-nome benzida com poderes maiores, com ornamentos e flautas58. Preparados desde

58 Podemos encontrar em Cayón (2010, p. 317-324) e em F. Cabalzar (2010, p. 110-118) dados muito

interessantes a respeito da nominação e da diferença de procedimentos conforme as prerrogativas daquele que está sendo nomeado. Cayón nos fala de objetos diferenciais que entram na composição da alma das pessoas conforme suas profissões/especialidades e F. Cabalzar trata da composição diferencial da alma- nome dos conhecedores/irmãos maiores face àqueles que são buri nira, “um qualquer”. Meus próprios dados de campo não me permitem aprofundar a análise dos procedimentos de nominação no nascimento e

pequenos para serem kumus e/ou bayas, por meio de ensinamentos, encantamentos e práticas corporais, os conhecimentos que hoje guardam seriam mais completos e potentes, apreendidos diretamente dos antigos através de seus pais e avôs. Como me dizia Laureano sempre que conversávamos a respeito destes saberes maiores, isto que um conhecedor fala, e que ele próprio estava a falar, não era invenção da cabeça, mas sim histórias/pensamentos que os Waikhana mais antigos contavam e que foram transmitidas pelos próprios Pamulin Mahsã, “Gente da Transformação”, os primeiros ancestrais míticos que povoaram o Uaupés no início dos tempos. Por isso seriam saberes de muito valor e poder, que exigiriam determinados cuidados por parte destes que os portam e que os mobilizam para proteger e curar pessoas, alimentos, lugares.

Já mencionamos que antigamente estas falas de origem eram entoadas pelos velhos conhecedores nos mais importantes rituais, como o jurupari, kahpiwaya e nos grandes dabucuris. Realizadas nos intervalos entre os movimentos de cantos e danças, as entoações tinham o poder de conectar o presente ao passado ancestral, mobilizando assim os poderes criativos dos tempos míticos. Do mesmo modo, ao lado dos enfeites e outros instrumentos sagrados, serviam para relembrar e reforçar publicamente as linhas de origem, os poderes distintivos e as prerrogativas de grupos e clãs, seja internamente, seja perante os afins, como no caso dos dabucuris. Com isso, tais saberes acabavam tendo uma maior visibilidade e uma mais ampla circulação, permitindo que grande parte das pessoas tivesse pelo menos um entendimento geral da história de origem de seu grupo e de seu clã.

Contudo, dizem que era entre os maiores que estes conhecimentos de maior poder eram transmitidos e ensinados de forma mais completa e profunda, pois justamente estes é que deveriam ser grandes benzedores e conhecedores de cantos e danças. O preparo começava desde o nascimento, com o benzimento da alma-nome com poderes maiores, e prosseguia por um longo período da vida para aqueles que realmente demonstrassem aptidão e interesse pelo ofício. Os neófitos tinham que se submeter a rígidas restrições e

na iniciação e sua diferença conforme as especialidades e as posições hierárquicas. O que sei é que os maiores, que seriam preparados também para serem chefes, kumus e/ou bayas, receberiam outros objetos (de maior poder) além daqueles que compõem a alma das pessoas comuns, dos menores (tanto homens, quanto mulheres), como bancos, cigarros e cuias. Dentre estes objetos de maior poder estariam os enfeites, o cetro-maracá ou bastão de comando (yagu) e as flautas sagradas.

práticas corporais que envolviam dietas, jejuns, abstinência sexual, banhos diários na água fria da madrugada, ao mesmo tempo em que passavam noites inteiras sentados junto aos velhos para escutar e memorizar as extensas falas ancestrais de seu grupo. Segundo Laureano, primeiro se aprendiam os benzimentos e cantos mais simples e de mais fácil memorização e somente quando estes estavam já bem fixos no pensamento é que se passava para o estágio seguinte. E assim aos poucos os saberes iam se complexificando e se aprofundando, o que exigia uma capacidade de memória e de reflexão cada vez mais apurada, assim como um maior autocontrole. A utilização de substâncias como o ipadu e o kahpi era também fundamental na medida em que estas auxiliavam no aprendizado e na memorização, expandindo o pensamento e a capacidade reflexiva dos jovens iniciandos59. Além disso, neste processo os jovens aprofundavam os seus conhecimentos da língua paterna, a qual passaria a ser seu principal instrumento de atuação enquanto benzedor e entoador das falas de origem.

Mas como já mencionamos, dentre os velhos de hoje, segundo dizem, somente alguns poucos teriam tido essa formação e aprendizagem com os antigos, ou ao menos algo próximo a isso. Pois depois do abandono das malocas, de grande parte das práticas rituais, da introdução da educação escolar e de todas as mudanças no modo de vida, quase ninguém mais teria sido preparado propriamente para ser grande benzedor e dançarino/cantor, mesmo entre os maiores. Com isso, os saberes outrora mobilizados, transmitidos e transacionados em certas ocasiões rituais, apesar de serem ainda essenciais para a vida de todos, teriam perdido parte de sua visibilidade e estariam hoje sendo transmitidos de forma muito mais simplificada e enfraquecida.

Refletindo sobre este contexto atual alguns diziam mesmo achar que estes saberes maiores poderão acabar morrendo junto com os velhos que ainda os têm, já que muitos dos conhecedores não querem mais falar e os próprios filhos e netos não estariam mais interessados em ouvir e aprender as falas de seus pais e avôs. Como disse uma senhora waikhana de Iauaretê: “esses aí [os jovens] só dão valor pros velhos quando a mulher fica grávida do primeiro filho e eles vêem que não sabem nada de benzimento pra proteger a

59 Para o processo de formação do kumu, em contraste com o do pajé, yai, ver S. Hugh-Jones (1996) e

Reichel-Dolmatoff (1971, p. 125-139). No trabalho de Lasmar (2005, p. 231-235) é possível encontrar também uma elucidativa e sintética consideração a este respeito.

família... aí correm pra chamar os velhos”; o problema, dizia ela, é quando já não puderem mais contar com a ajuda deles. Ou, conforme se indagava Marcelino em seus momentos de reflexão sobre o futuro da cultura waikhana: “quando estes últimos velhos que ainda têm o conhecimento morrerem o que vai ser da nossa cultura?”. Já sem os rituais em que estes saberes eram mobilizados, transmitidos e atualizados, tanto entre as patrilinhas, quanto em círculos mais amplos de relações, e com a suposta falta de interesse dos mais jovens em apreendê-los, alguns parecem mesmo aventar um futuro em que não haverá mais quem saiba fazer nominação, proteção de parto, de comida, de lugares.

E entre os Waikhana do lado brasileiro este tipo de preocupação parece ser ainda maior já que até mesmo a própria língua estaria sendo abandonada pelas novas gerações falantes de tukano. O que se passa é que a perda da língua parece significar, no limite, a possível perda ou enfraquecimento dos saberes e poderes distintivos que ela veicula e que são responsáveis pela própria perpetuação da vida. Pois apesar de ser admissível que alguns benzimentos sejam feitos em tukano, e mesmo por benzedores de outros grupos, como os Desana, que são tidos como grandes especialistas em procedimentos de cura/proteção, parece haver um entendimento geral de que somente a própria língua pode veicular e transmitir com propriedade as potências distintivas do grupo. Por isso, parece ser ainda um tanto impensável para os waikhana mais velhos que as narrativas de origem, outrora entoadas nos rituais, e certos procedimentos mais vitais como a nominação, sejam seriamente operados por meio de outra língua que não seja a waikhana60. É por isso que os grandes conhecedores seriam também os maiores eruditos da língua, o que lhes daria o poder de falar conforme os próprios ancestrais míticos e pós-míticos vieram falando desde a transformação.

60 É claro que isto é passível de ajustes e resignificações, já que grupos como os Tariano e Arapasso, que há

tempos não falam mais a própria língua, não deixaram, contudo, de realizar seus benzimentos e falas de origem, as quais são pronunciadas em tukano. Mas hoje a língua parece ser ainda encarada pelos Waikhana como um elemento fundamental na transmissão de conhecimentos e propriedades vitais distintivas do grupo.