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2 O SISTEMA DE COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO:

6.4 Sobre as trajetórias e as cotas

Em cada trajetória construída, podemos perceber a própria história do sistema de cotas sendo contada a partir das experiências desses alunos. Todas as discussões que permeiam essa ação afirmativa aparecem nas trajetórias como questionamentos desses alunos e fatos que vivenciaram ou viram. Cada trajetória mostra semelhanças e diferenças importantes que contam muito sobre essa ação afirmativa e o impacto que ela gera tanto nos alunos como na universidade.

Os três alunos vieram de origem humilde, mas tiveram vivências distintas. Thamira e Benjamim são negros nascidos em famílias em que existem tanto negros

como brancos, mas a questão racial nunca foi um tabu em suas famílias; seus pais sempre lidaram com essa questão da forma mais natural possível. Diego vem de uma família de retirantes; por serem muito humildes, a maior parte jamais cursou o ensino médio.

Thamira sempre foi incentivada por sua mãe a estudar nas melhores escolas, para que pudesse ter mais possibilidades de sucesso na vida, por isso sua mãe, mesmo se sacrificando financeiramente, colocou sua filha para estudar em colégios particulares. No ensino médio, Thamira conciliou o ensino da escola particular com o da escola técnica. Já Benjamim, apesar de ter sempre sido incentivado pelos seus pais a estudar e por isso frequentou, em determinado período de sua vida, escolas particulares, por causa de uma crise financeira em sua família, estudou a maior parte de sua vida em escolas públicas e concluiu o ensino médio na escola técnica. Diego, por vir de uma família em que a alfabetização era um luxo, teve pouco apoio de sua família para estudar. Um dos primeiros de sua família a concluir o ciclo educacional, ele frequentou escolas públicas, mas seu verdadeiro estímulo para continuar estudando veio de sua experiência na escola particular.

Percebemos que esses três alunos dão uma importante semelhança para sua entrada na universidade. Foi pelo fato de terem estudado na escola técnica que eles tiveram o grande incentivo para cursar uma universidade, bem como maior conhecimento sobre o sistema de cotas. Antes dessa escola, nenhum deles tinha muitas informações sobre como funcionava essa ação afirmativa.

Na trajetória de Diego, ele informa que a escola técnica é uma escola pública de elite que se diferencia das demais escolas públicas. A partir daí, percebemos que dentro do sistema de cotas já ocorre uma concorrência desleal, pois, ao colocar as escolas públicas de elite em um mesmo grupo com as escolas públicas normais, se cria uma concorrência desleal, uma vez que os alunos das demais escolas públicas, por terem um ensino de qualidade inferior às escolas de elite, ficam em desvantagem nessa concorrência.

Em relação à interação dos cotistas com os demais alunos, as trajetórias apontam algumas diferenças. Thamira, desde seu primeiro dia, percebeu que sua sala lhe olhava com estranhamento, pois só existia ela e mais uma aluna negra. Ela

acredita que há poucos negros em seu curso. Segundo Thamira, há uma divisão clara, na sala, entre alunos cotistas e não cotistas. Benjamim nunca vivenciou uma situação desconfortável em seu curso em relação à sua cor de pele ou origem social. Ele afirma que, em sua turma, a diversidade existe e todos interagem de forma natural. Diego, se assemelhando a Thamira, vê uma grande separação entre os alunos cotista e os não cotistas. No curso de Diego, ele sempre identificou atos de preconceito dos alunos veteranos em relação aos cotistas.

Identificamos que, em cursos novos, como Gestão em Políticas Públicas, a adoção do sistema de cotas e os próprios alunos cotistas são vistos como algo natural. Porém, nos cursos de Direito e Medicina, cursos estes dos mais antigos e ditos de elite, há um grande distanciamento entre os alunos cotistas e os não cotistas.

Os três alunos afirmam que o sistema de cotas prioriza, principalmente, a origem social, deixando, assim, em segundo plano a questão racial. Na trajetória de Thamira, ela relata que só existe ela e mais outra aluna negra em sua turma, já Diego relata que não existem negros cearenses em sua turma. Com isso, podemos concluir que a existência de cotas sociais não necessariamente possibilita a representatividade dos negros na universidade.

Os três alunos afirmam que é preciso melhorar o auxílio da universidade perante os alunos cotistas, objetivando que estes possam conseguir terminar seus cursos. Nas três trajetórias, vemos que há bolsas de assistência aos cotistas, mas essas bolsas têm número reduzido e são de difícil acesso.

Em todas as trajetórias, é relatado que o sistema de cotas tem um papel de fundamental importância para proporcionar maior inclusão e diversidade dentro da universidade. No caso de Diego, o sistema de cotas possibilitou que alunos de origem humilde tivessem uma chance de cursar um curso que durante muito tempo foi inacessível para eles; já Thamira e Benjamim afirmam que, se não fosse o sistema de cotas, jamais teriam conseguido entrar em uma universidade como a UFC.

Diante dessas trajetórias, fica claro que, como qualquer outra política pública, o sistema de cotas deve ser aperfeiçoado em alguns pontos. Porém, essa ação afirmativa tem grande importância para a construção de uma política da diferença dentro da universidade.

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