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DECRETO Nº 13.171, de 12 de setembro de

1 POLÍTICAS SOCIAIS NO CAPITALISMO E A RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA

1.2 Social-liberalismo e as novas relações entre a esfera pública e privada

Nos últimos 30 anos os países latino-americanos vêm presenciando, resistindo e coadjuvando uma série de ajustes estruturais implementados pelos governos nacionais e orientados principalmente por agências supranacionais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe12 (CEPAL). Foi no âmbito deste último que o

12 Nesse processo houve a participação de um influente instituto de pesquisa, o Institute for

International Economics No site do Instituto constam informações sobre as "análises

influentes" que o instituto já realizou: "[...] reforma econômica na Europa, Japão, os antigos países comunistas e América Latina (inclusive o Consenso de Washington), o choque econômico e social da globalização e respostas políticas para isto, outsourcing, comércio eletrônico, corrupção, investimento direto estrangeiro dentro e fora dos Estados Unidos, aquecimento global e política ambiental internacional e setores chave como agricultura,

chamado Consenso de Washington foi forjado, no início dos anos de 1990, quando uma agenda foi elaborada para a realização de "reformas liberalizantes" (WILLIAMSON, 2004, p.03) para os Estados da região.

Inicialmente, os aspectos essenciais dessas "reformas"13 foram divididos por Naim (1994, citado por NAVIA, VELASCO, 2004), em reformas de primeira e segunda geração:

As reforma de primeira geração incluem os suspeitos habituais: estabilização macroeconômica, cortes de alíquotas e de orçamento, privatização e similares. As reformas de segunda geração compõem um grupo variado que engloba amplas reformas do Estado, do serviço público e o fornecimento de serviços públicos; das instituições que criam e mantêm o capital humano (como a escola e o sistema de saúde); e do ambiente no qual as empresas privadas operam (mais concorrência, melhor regulamento, direitos de propriedade mais fortes). (NAVIA, VELASCO, 2004, p.234)

A partir dessas "reformas", realizadas não de forma homogênea pelos países, a América Latina se converteu, na virada dos anos de 1980 para 1990, na terceira grande "cena de experimentação neoliberal" (ANDERSON, 1996, p.19), precedido pelos países da OCDE e do leste europeu14. O objetivo central desses ajustes, segundo seus defensores, era o crescimento econômico na região, que nos anos de 1980

serviços financeiros, aço, telecomunicações e têxtil." (PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS, 2010, s/p. Tradução nossa). Apesar da natureza jurídica sem fins lucrativos, o orçamento anual do Instituto gira em torno de 10 milhões de dólares, provenientes de doações de "fundações caridosas, corporações privadas, doadores individuais e de ganhos nas publicações [...]". (PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS, 2010, s/p. Tradução nossa).

13 Quando nos referirmos às reformas propostas por organismos multilaterais e intelectuais que

comungam os interesses do grande capital utilizaremos o termo entre aspas, pois se trata de um "deslizamento semântico" (BORÓN, 2004, p. 19). Como apontam Behring e Boschetti (2006, p.149) as ideias reformistas, concordemos ou não com essas estratégias, são um patrimônio da esquerda "[...] que ganhou sentido no debate do movimento operário socialista, ou melhor, suas estratégias revolucionárias, sempre tendo em perspectiva melhores condições de vida e trabalho para as maiorias". Uma observação interessante de Borón (1995, p.109) refere-se ao termo "ajuste", que é concebido como uma ação emergencial para corrigir "momentâneos desequilíbrios" econômicos, porém, quando essas políticas são duradouras, como é o caso dessa agenda para a América Latina, tomam a forma de projetos societários, muito além de meros ajustes, tornando assim muito maior o desafio de desconstrui-las.

14 Embora o Chile de Pinochet tenha sido o país pioneiro nas experimentações neoliberais, a

"[...] virada continental [latino-americana] em direção ao neoliberalismo não começou antes da presidência de Salinas, no México, em [19]88, seguida da chegada ao poder de Menem, na Argentina, em [19]89, da segunda presidência de Carlos Andrés Perez, no mesmo ano, na Venezuela, e da eleição de Fujimori, no Peru, em [19]90." (ANDERSON, 1996, p.19 in SADER, GENTILI, 1996).

apresentara baixos índices. No entanto, como aponta Anderson (1995), nem em seu objetivo mais limitado - o crescimento econômico - os ajustes tiveram êxito. Os fracassos desses ajustes foram reconhecidos e analisados pelos seus próprios ideólogos em 200315, que localizaram o fracasso não na agenda do Consenso, mas em fatores exógenos a esta, principalmente responsabilizando as políticas econômicas adotadas pelos Estados, que não realizaram completamente a agenda proposta (WILLIAMSON, 2004).

Outro fator criticado também pelos arquitetos do Consenso de Washington diz respeito à inoperância destes países da região em articular crescimento econômico com “ajuste social”:

[...] o principal objetivo da política de formação era excessivamente estreito. Quer dizer, a política permaneceu focada na aceleração do crescimento, não no crescimento junto com equidade. Persistia uma pequena preocupação com a distribuição de renda ou com o social, apesar do fato de a renda da região ser mais concentrada do que a de qualquer lugar do mundo, excluindo alguns poucos países africanos (WILLIAMSOM, 2004, p.06)

Não obstante à aparente “preocupação” dos ideólogos da reforma com o “social”, o que se evidenciou na América Latina foi um verdadeiro “holocausto social”, nos termos de BORÓN (2003).

Longe de ser portadoras do progresso social, as políticas neoliberais precipitaram um holocausto social sem precedentes na história da América Latina. Isto se traduziu num aumento dramático da exclusão social, na pobreza e na vulnerabilidade de amplos setores das sociedades latinoamericanas. Com efeito, no marco das políticas neoliberais [...] se observa uma intensificação sem precedentes da exclusão social e da pobreza (BORÓN, 2003, s/p. Tradução nossa.)

15 Em 2003, John Williamson e Pedro-Pablo Kuczynski publicaram um livro denominado

Depois do Consenso de Washington: retomando o crescimento na América Latina (2004) em

que expuseram uma análise retrospectiva das "reformas" e propuseram novos elementos na agenda para a região.

As consequências dessa agenda para a América Latina foi, portanto, desastrosa, muito além do baixo crescimento econômico. Analisando alguns aspectos pontuais dessa agenda, Borón afirma que

A abertura comercial, que supostamente seria correspondida por um movimento equivalente praticado pelos países capitalista desenvolvidos, terminou sendo um gesto autista, com catastróficas consequências nos níveis de emprego [...]. As privatizações consagraram o saque legal do patrimônio público e sua alocação a grandes monopólios [...]. Por último, a desregulação financeira [...] converteu a maior parte das economias da América Latina e Caribe em dependentes desse grande cassino mundial que, segundo Susan Strange, é o sistema financeiro internacional. (2003, p.17. Tradução nossa) De especial importância para esse estudo são as chamadas "reformas de segunda geração", entendidas como sendo

Dedicada a montar instituições – um serviço público e um Judiciário modernos, eficientes, não corruptos sendo, talvez, a mais central delas – que permitirão que essas funções básicas sejam cumpridas com eficiência (WILLIAMSOM, 2004, p.271)

A perspectiva dos ideólogos do Consenso é “reformar a reforma”, orientação prontamente defendida por organismos multilaterais que atuam na América Latina, sobretudo na reorientação das políticas econômicas, em que a atuação da CEPAL ocupa um lugar significativo.

No Brasil, é preciso destacar a atuação do então Ministro Bresser Pereira16, idealizador da reforma no Estado brasileiro e também difusor de seus postulados nos países da América Latina. Esse intelectual, orgânico ao pensamento social-liberal, discordava de alguns argumentos dos ideólogos do Consenso, ressaltando que a crise na América Latina dos anos de 1980 não foi uma crise de mercado, como, segundo ele, querem os neoliberais, mas "[...] uma crise fiscal, uma crise do modo de intervenção e uma crise da forma burocrática de administrar o Estado" (1998a, p.105). O autor argumenta que o "Estado do século XXI" não poderá ser o Estado liberal do século XIX, como querem os neoliberais,

16 Bresser Pereira foi Ministro do governo FHC (1995-2002), comandando o então criado

segundo ele, e nem tampouco o Estado social-burocrático do século XX, pois este teria entrado em crise. O Estado por ele idealizado seria, então, o Social-liberal:

Será social porque seguirá sendo responsável pela proteção dos direitos sociais em matéria de educação, saúde e provisão básica. [...] Será liberal porque realizará estas tarefas de forma mais competitiva, deixando de oferecer à burocracia estatal o monopólio das partes orçamentárias para a educação, a saúde e a cultura. (BRESSER PEREIRA, 1998a, p.108) Sua proposta de Estado, não apenas para o Brasil, mas para a América Latina, sustenta-se em quatro pilares básicos, a saber:

(a) a delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal através de programas de privatização, terceirização e “publicização” (este último processo implicando a transferência para o setor público não estatal dos serviços sociais e científicos que hoje o Estado presta);

(b) a redução do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário através de programas de desregulação [...];

(c) aumento da governança do Estado, ou seja, sua capacidade de tornar efetivas as decisões do governo, através do ajuste fiscal [...], da reforma administrativa rumo a uma administração pública gerencial [...];

(d) aumento da governabilidade, ou seja, do poder do governo [...]. (BRESSER PEREIRA, 1998b, p.98).

Desses quatro pilares, destacamos o emergente conceito de público não estatal, indicando uma nova forma de propriedade que se insere ao lado das formas clássicas de propriedade: a privada e a público-estatal.

Teorizado, portanto, na América Latina por Bresser Pereira (1998a, 1998b) e na Europa por Giddens (2001), este conceito está intimamente relacionado ao projeto de Estado pensado por esses intelectuais: Estado social-democrático ou social-liberal, que para

Bresser Pereira são expressões sinônimas (1998a, p.108-109). Bresser conceitua o Estado social-liberal a partir de suas diferenciações com a configuração dos Estados durante os últimos séculos:

No capitalismo mercantilista dos séculos dezessete e dezoito prevaleceu o Estado patrimonialista, caracterizado pela confusão entre o patrimônio do príncipe e o do Estado que, não obstante, começava a ser questionada. No capitalismo competitivo do século dezenove foi dominante o Estado liberal, garantidor da propriedade e dos contratos: produtos apenas de bens estritamente públicos. No capitalismo monopolista deste século [XX] o Estado social burocrático assumiu três formas: o Estado benfeitor, nos países desenvolvidos, o Estado desenvolvimentista, nos subdesenvolvidos, e o Estado burocrático, nos países estadistas. (BRESSER PEREIRA, 1998a, p.117.)

Nesta passagem fica evidente a perspectiva liberal de que a competição necessariamente gera qualidade, ao mesmo tempo em que desonera o Estado, contribuindo para seu ajuste fiscal. Em seu projeto de Estado as empresas produtoras de bens seriam privatizadas, as produtoras de serviços públicos seriam objeto de concessão a empresas privadas, e os serviços sociais seriam entregues, também com caráter competitivo, "[...] não a empresas privadas, mas às organizações públicas não estatais." (BRESSER PEREIRA, 1998a, p.108).

O que se evidencia, portanto, é uma redefinição das prerrogativas do Estado e de sua relação com a sociedade através de uma ressignificação do termo público. As organizações privadas da sociedade civil que atuam em atividades chamadas de “interesse público”, estariam então situadas no terreno do “público não estatal”, sendo subsidiadas e reguladas pelo Estado. Para melhor entendimento dessa retórica social-liberal sobre o Estado e o público, parece-nos importante discutir os sentidos tradicionais ou clássicos dos termos público e privado, o que faremos a seguir.