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Para isso, todos conspiravam — e tanto mais. quanto mais que- riam a república e a felicidade do povo. Os republicanos têm por princípio a soberania do povo, mas eles sabem perfeitamente que o povo soberano não pode ser identificado com a multidão ignorante e inteiramente entregue à defesa de seus interesses materiais. Eles sa-

bem perfeitamente que a república significa igualdade de direitos e

de deveres, mas que ela não pode decretar a igualdade das inteligên- cias. E é claro que a inteligência de um camponês atrasado não é a mesma que a de um líder republicano. Uns pensam que a desigualda- de inevitável concorre para a diversidade social, como a infinita va- riedade de folhas concorre para a inesgotável riqueza da natureza. Basta que ela não impeça que a inteligência inferior compreenda seus direitos e, sobretudo, seus deveres. Outros pensam que o tempo, pouco a pouco, progressivamente, atenuará esta deficiência. causada por sé- culos de opressão e de obscuridade. Em ambos os casos, a causa da igualdade — da boa igualdade, da igualdade não funesta — tem o mesmo

COIEÇAO'EUUCAÇAO. EXPERIENCIA E SENTIDO"

dos homens mergulhados em suas preocupações materiais egoístas pelos homens devotados; de indivíduos fechados em seu particula- rismo pela universalidade da razão e do poder públicos. O que se denomina instrução pública, isto é, a instrução de um povo empírico programada por representantes do conceito soberano de povo.

A Instrução Pública é, assim, o braço secular do progresso, o meio de equalizar progressivamente a desigualdade, vale dizer, de de- sequalizar indefinidamente a igualdade. Tudo sempre se sustenta em um só princípio, a desigualdade das inteligências. Admitido esse prin- cípio, não haveria, em boa lógica, senão uma conseqüência a ser dedu- zida: a direção de uma multidão estúpida pela casta inteligente. Os republicanos e todos os homens de progresso sinceros sentem um salto no coração, diante dessa conseqüência. Todo seu esforço consiste em aceitar o princípio, recusando a conseqüência. É o que faz o eloqüente

autor do Livro do

povo,

M. de Lamennais. "Sem dúvida, reconhece

honestamente, os homens não possuem faculdades iguais".24 Mas o

homem do povo deveria, por esta razão, ser condenado à obediência passiva, ser reduzido ao nível dos animais? Não pode ser assim: "Su- blime atributo da inteligência, a soberania de si distingue o homem da besta"." É certo que a repartição desigual desse sublime atributo põe em perigo a "cidade de Deus" que o predicador convida o povo a edificar. Mas ela permanece possível, se o povo souber "servir-se com sabedoria" de seu direito conquistado. O meio para que ele não seja

depreciado, o meio para que ele se sirva de seu direito com sabedo- ria, o meio para construir igualdade com a desigualdade, é a instru-

ção do povo, isto é, a interminável compensação de seu atraso. Tal é a lógica que se institui, a da "redução" das desigualda- des. Quem consentiu com a ficção da desigualdade das inteligências, que recusou a única igualdade que a ordem social, poderia comportar, só pode mesmo correr de ficção em ficção e de ontologia em corpora- ção, para conciliar povo soberano e povo atrasado, desigualdade de inteligências e reciprocidade de direitos e deveres. A Instrução Públi- ca, a ficção social instituída da desigualdade como atraso é a mágica que conciliará todos esses seres de razão. E ela o fará ampliando ao "l r l ivreeívpnepk ,Pads,1838,p. 65 eJournaldephi/osopinepanecaslù/ue, t M 1838, p.144.

z Citaproximadado

I

ivre dupeupk, p. 73, in Journa4k philasophiepanerartique, p. 145.

O emancipador e suas imitações

infinito o campo de suas explicações e dos exames que as controlam. Nesse sentido, o Velho sempre ganhará, com as novas cátedras dos industriais e com a fé luminosa dos progressistas.

Contra isso, nada mais há a fazer, além de redizer sempre a esses homens supostamente sinceros que prestem mais atenção: "Mudai esta forma, quebrai esta coleira, rompei, rompei todo pacto com o Velho. Imaginai que ele não é mais imbecil do que vós. Pensai sobre isso, e dizei-me

o

que vos parece."26Mas como poderiam eles escutar o que

se segue? Como escutar que a missão dos luminosos não é esclarecer os obscurantistas? Qual homem de ciência e de devoção aceitaria dei- xar sua lucerna sobre o alqueire e o sal da terra sem sabor? E como as jovens plantas frágeis, os espíritos infantis do povo acreditariam sem o benfazejo orvalho das explicações? Quem poderia compreender que o meio, para eles, de elevarem-se na ordem intelectual não era aprender com os sábios o que ignoravam, mas ensinar a outros igno- rantes? Este discurso, um homem pode, com muita dificuldade, com- preendê-lo; mas nenhuma capacidade jamais o entenderá. Joseph Jacotot, ele próprio, nunca não o teria escutado sem o acaso que o fizera mestre ignorante. Somente o acaso é forte o suficiente para derrubar a crença instituída, encamada, na desigualdade.

Bastaria, no entanto, um nada. Bastaria que os amigos do povo, por um curto instante, fixassem sua atenção sobre esse ponto de partida, sobre esse primeiro princípio, que se resume em um sim- ples e bastante antigo axioma metafísico: a natureza do todo não pode ser a mesma do que a das partes. O que se fornece de raciona- Iidade à sociedade toma-se aos indivíduos que a compõem. E o que ela recusa aos indivíduos, a sociedade poderá tomar para si, mas jamais poderá devolver-lhes. Dá-se com a razão o mesmo que com a igualdade, que é seu sinônimo. É preciso escolher entre atribui-la a indivíduos reais ou à sua fictícia reunião. É preciso escolher entre fazer uma sociedade desigual com homens iguais, ou uma socieda- de igual com homens desiguais. Quem tem só um pouco de gosto pela igualdade não deveria hesitar: os indivíduos são seres reais e a

sociedade, uma ficção.

CaIECAO"EDUCAC

TAo: EMPEIÈNCAESENiIDO"

Bastaria aprender a ser homens iguais em uma sociedade desi- gual – é isto que emancipar significa. Esta coisa tão simples é, no entanto, a mais dificil de compreender, sobretudo desde que a nova explicação – o progresso – misturou, de forma inextricável, a igualda- de e seu contrário. A tarefa à qual as capacidades e os corações repu- blicanos se consagram é construir uma sociedade igual com homens desiguais, reduzir indefinidamente a desigualdade. Porém, quem to- mou esse partido só tem um meio de Ievá-lo a tenho: a pedagogiza- ção integral da sociedade, isto é, a infantilização generalizada dos indivíduos que a compõem. Mais tarde, chamar-se-á a isso foonaçiio contínua–co-extensividade entre a instituição explicadora e a soci- edade. A sociedade dos inferiores superiores será igual, ela reduzirá suas desigualdades, quando se houver transformado inteiramente em uma sociedade de explicadores explicados.

A singularidade, a loucura de Joseph Jacotot foi a de pressentir o momento em que a jovem causa da emancipação, a da igualdade dos homens, estava em vias de se transformarem causa do progresso social. E o progresso social era, antes de qualquer outra coisa, o progresso na capacidade de a ordem social ser reconhecida como ordem racional. Essa crença só poderia se desenvolverem detrimen- to do esforço de emancipação dos indivíduos razoáveis, ao preço do sufocamento das virtualidades humanas contidas na idéia de igualda- de. Unia enorme máquina de promoção da igualdade pela instrução estava sendo constituída. Tratava-se da igualdade representada, so-

cializada,designa/izada,

própria para seraperteiçoada, isto é, retar-

dada de comissão em comissão, de relatório em relatório, de reforma em reforma, até a consumação dos tempos. Jacotot foi o único a pen- sar esse ocultamento da igualdade sob o progresso, da emancipação sob a instrução. Entendamos bem: seu século conheceu uma profu- são de oradores antiprogressistas, cuja lucidez os ares do tempo pre- sente, de desgaste do progresso, obrigam a homenagear. Porém, tal-

vez seja honra excessiva: eles simplesmente odiavam a igualdade. Odiavam o progresso, porque, como os progressistas, confundiam- no com a igualdade. Jacotot foi o único igualitário a perceber que a representação e a institucionalização do progresso acarretava a renúncia à aventura intelectual e moral da igualdade e que a instrução pública era o trabalho do luto da emancipação. Um saber dessa ordem

O emancipador esuas imitações

provoca uma horrorosa solidão. Jacotot acostumou-se a essa solidão. Rejeitou qualquer tradução pedagógica e progressista da igualdade emancipadora. Ele fez saber aos discípulos que escondiam seu nome sob a insígnia do "método natural": ninguém, na Europa, estava em condições de carregar esse nome, o nome do louco. O nome Jacotot era o nome próprio desse saber, a uma só vez desesperado e irônico, da igualdade dos seres razoáveis, sepultada sob a ficção do progresso.