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Sociolinguística Interacional

No documento Anatomias do conflito (páginas 53-57)

A Sociolinguística Interacional tem origem em disciplinas tais como a Linguística, a Antropologia e a Sociologia, e suas preocupações se voltam, portanto, para os estudos de linguagem, cultura e sociedade. Normalmente, partindo de perguntas como “o que está acontecendo aqui e agora nesta situação de uso da linguagem?” (RIBEIRO; GARCEZ, 2002, p. 7), os sociolinguistas dessa corrente fazem um “estudo da organização social do discurso em interação, ressaltando a natureza dialógica da comunicação humana e o intenso trabalho social e linguístico implícito na coconstrução do significado e da ação.” (RIBEIRO; GARCEZ, 2002, p. 9).

Essa abordagem de pesquisa, assim como a ACE, concentra-se nas interações de fala que envolvem dois ou mais atores como seu objeto de estudo, objetivando demonstrar como os indivíduos que participam da interação usam a fala para realizar seus propósitos comunicativos em situações da vida real. Além disso, compartilha uma perspectiva construcionista com a microanálise etnográfica e foi, assim como a ACE, extremamente influenciada pela etnometodologia.

Um dos fundadores dessa abordagem é o antropólogo linguista John Gumperz, cujo entendimento de conhecimento gramatical partilhado se baseia no fato de que tal conhecimento se constrói diferentemente pelas pessoas na medida em que suas mensagens são produzidas e compreendidas em contextos diversificados (GUMPERZ, 2002). Outro nome bastante caro à Sociolinguística Interacional é o de Erving Goffman, que procurou descrever a linguagem em uma perspectiva “situada”, ou seja, ancorada em circunstâncias específicas da vida social (GOFFMAN, 1974).

Gumperz acredita que somos capazes de produzir e entender processos de comunicação, os quais envolvem não só um reflexo das nossas identidades associadas aos grupos a que pertencemos, mas também índices de quem somos, do que queremos comunicar e de como sabemos a forma de fazê-lo. Com isso, o autor reformula o conceito de competência comunicativa de Hymes (1972), que entendia tal conceito apenas como um conhecimento cognitivo abstrato. Gumperz (1999; 2002), então, acrescenta a essa definição a ideia de cooperação, de que os falantes criam e sustentam durante a interação, uma vez que os usuários da língua são membros de grupos sociais e culturais. A partir disso, podemos inferir que o autor vê a linguagem como um sistema simbólico social e culturalmente construído, usado de forma que reflete os sentidos em um nível macro (como, por exemplo, ao marcar diferenças de status social) e os cria em um nível micro (como, por exemplo, ao destacar o que alguém está dizendo e/ou fazendo em um determinado momento interacional).

Já Goffman chama atenção para um domínio da vida social, cujas complexidades estruturais têm sido amplamente, segundo ele, “negligenciadas” (GOFFMAN, 2002 [1964]): a interação face a face. A partir dos relevantes estudos de Emile Durkheim (1893, sobre religião primitiva; 1895, sobre os fatos sociais, ambos citados por SCHIFFRIN, 1994) e George Herbert Mead (1934, sobre a formação do “self”, também citado por SCHIFFRIN, 1994), a noção de “self” como uma construção social ou, mais que isso, como uma construção interacional passou a ser central nos estudos de Goffman37. Associada à noção de “self”, a noção de “face” como um valor social positivo difusamente localizado no fluxo dos eventos em um encontro, reivindicado pelo falante e manifesto somente quando esses eventos são lidos e interpretados pelo outro é apontada pelo autor como uma forma de se ver o “self” como uma construção pública.

De acordo com Schiffrin (1994), as análises goffmanianas do relacionamento entre os significados interpessoais e a estrutura social são balanceadas por uma atenção cuidadosa, tanto ao valor simbólico do que é dito e feito, quanto às mais abstratas formas de vida social – uma dualidade que parece ter sido herdada da distinção entre forma social e sentido de Georg Simmel (1911, citado por SCHIFFRIN, 1994).

Outro conceito-chave em Goffman é o que ele chamou de estrutura de participação – um conjunto de posições que os indivíduos dentro de um grupo

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Ver Goffman (2002 [1979]; 1967; 1981), textos que destacam esse conceito de forma mais proeminente.

perceptual de uma elocução podem tomar em relação a essa elocução. Goffman (2002 [1979]) diferencia quatro posições ou “status” de participação: animador, autor, figura ou responsável. Apesar de essas posições poderem ser preenchidas por diferentes pessoas, um único indivíduo pode também preencher esses quatro papéis: grosso modo, um animador é aquele que produz fala, um autor é o que cria a fala, uma figura é retratada através da fala e o responsável, como o nome indica, é aquele que assume a responsabilidade pelo que é dito38. Cada posição dentro de uma estrutura de participação está associada a uma conduta codificada e normativamente especificada de tal modo que nosso reconhecimento das mudanças entre animadores, figuras, autores e responsáveis é facilitada pelas nossas expectativas normativas sobre a conduta apropriada para cada posição.

Essas expectativas acima referidas fazem parte de um outro conceito cunhado por Goffman (2002 [1979]) – o conceito de footing, que, em poucas palavras, diz respeito aos alinhamentos que são tomados por nós e pelos outros como presentes enquanto administramos a produção e a recepção de uma elocução. Junto à noção de footing, a noção de enquadre (GOFFMAN, 1974) ajuda a construir a ideia de interação social pautada em estruturas de participação. Enquadres são os princípios organizacionais e interacionais pelos quais as situações são definidas e sustentadas como experiências. Segundo Tannen e Wallat (2002 [1987]), “a noção interativa de enquadre, então, refere-se à percepção de qual atividade está sendo encenada, de qual sentido os falantes dão ao que dizem. [...] [Os enquadres] emergem de interações verbais e não-verbais e são por elas constituídos.” (p. 189).

Uma vez que o pensamento de Gumperz (1982), sobre inferência situada, reflete o de Goffman (1963), que, com foco na interação social, descreve a forma e o sentido do contexto interpessoal e social, ambos os autores fornecem pressuposições para a decodificação do sentido. O entendimento desses contextos, segundo Schiffrin (1994), pode nos permitir identificar mais completamente as pressuposições contextuais que figuram nas inferências que os ouvintes fazem do que os falantes dizem.

Apesar das diferenças de interesses entre os dois autores, há dois pontos centrais no trabalho de ambos, que contribuíram para a consolidação da Sociolinguística Interacional: a interação entre o “eu” e o outro, e o contexto (SCHIFFRIN, 1994). A contribuição de Gumperz recai sobre as interpretações do contexto como de importância

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Para uma descrição mais detalhada de cada um desses “tipos de falante”, ver Goffman (2002 [1979], p. 133-138)

fundamental para a comunicação entre os usuários da língua, e o trabalho de Goffman focaliza o contexto fornecido pela organização da vida social (nas instituições, por exemplo) de modo que, tanto a conduta do “self” quanto a comunicação com o outro podem fazer sentido (seja para os copresentes, seja para os analistas).

A linguagem também é vista por ambos os autores como indexical: para Gumperz, a linguagem é um índice dos pressuposições contextuais “de fundo39” que fornecem conhecimento escondido – porém relevante – sobre como fazer inferências sobre o sentido que é atribuído a uma elocução; para Goffman, a linguagem é um dos vários recursos simbólicos que fornecem um índice para as identidades sociais e relacionamentos que são construídos durante a interação.

Finalmente, ambos os pesquisadores admitem que a linguagem tem um papel ativo na criação do mundo social, pois pode alterar, não só o sentido da mensagem, mas também a estrutura de participação da fala, de modo que tanto diferentes intenções quanto diferentes “selves” podem ser demonstrados através de mudanças sutis na forma de se proferir uma elocução. Essas intenções comunicativas dos falantes podem ser expressas ou inferidas através de determinadas pistas sociolinguísticas, as chamadas pistas de contextualização (GUMPERZ, 2002 [1982]), que são manifestações verbais ou não verbais que constroem expectativas sobre o que poderá acontecer a seguir na interação. Assim, é importante destacar que, conforme Gumperz (2002 [1982], p. 153), “os participantes de uma conversa, por exemplo, têm expectativas convencionais sobre o que é considerado normal e o que é considerado marcado em termos de ritmo, volume da voz, entoação e estilo de discurso”.

Ainda sobre a noção de “pistas de contextualização”, Ostermann (1998) afirma que, em uma dada interação, se a interpretação que os participantes realizam sobre as ações dos demais for realizada apenas no nível oracional, podem ocorrer problemas de entendimento – os chamados mal-entendidos – uma vez que, entre esses participantes, podem não estar operando as mesmas convenções de contextualização.

Para os fins desta pesquisa, portanto, é importante ressaltar as definições acima, uma vez que são algumas dessas pistas as responsáveis por destacar os movimentos interacionais nomeados neste trabalho como episódios de conflito. Isso posto, é possível ressaltar que a interpretação de uma atividade ou de um evento como um todo se pauta a partir da construção dessas expectativas e pressuposições sociais, que são criadas e

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recriadas pelos participantes de modo a serem confirmadas ou não pelos demais participantes como construtoras e constituintes de um determinado contexto de produção. É a partir da identificação dessas pistas que os participantes identificam “o que está acontecendo aqui”, formulando (ou não) situações como “isto é uma abertura de encontro” ou “isto é um episódio de conflito”, entre tantas outras possibilidades.

Nesse sentido, linguagem, cultura e sociedade estão fundadas na interação: apoiam-se em uma relação reflexiva eu-outro. A interação social, enquanto um contexto específico para que a linguagem seja padronizada conforme os reflexos que produz em seu contexto de produção e entendimento, é o lugar da negociação e da construção de sentido. Isso reforça o pensamento de que linguagem e contexto são coconstituintes: a linguagem contextualiza e é contextualizada, assim como a linguagem não apenas funciona “em” contexto, pois também forma e fornece contexto. Dessa forma, situações, ocasiões, encontros, entre outros, têm formas e significados que são parcialmente criados e/ou sustentados pela linguagem. E é essa visão de sentido situado, isto é, o uso da língua na interação social, que é contemplada pela Sociolinguística Interacional.

Essas noções básicas da Sociolinguística Interacional, aliadas a algumas noções básicas oriundas da ACE, são essenciais para uma compreensão da análise de dados a ser feita a seguir. Por essa razão, apresentamos na seção seguinte, um panorama global desta outra tradição de pesquisa qualitativa.

No documento Anatomias do conflito (páginas 53-57)