• Nenhum resultado encontrado

SOFRIMENTO E VIOLÊNCIA FÍSICA E EMOCIONAL

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO DO SEGUNDO ESTUDO:

6.6 SOFRIMENTO E VIOLÊNCIA FÍSICA E EMOCIONAL

A professora “Sophia” falou que, se fosse dar um título às construções na caixa de areia, o título seria “A violência”. Porque é violência que a criança abusada sofre. Violência física, violência emocional. A sociedade finge que não percebe essa violência que destrói a inocência infantil. O abuso sexual infantil, para a professora “Sophia”, seria sempre acompanhado de medo por parte da criança. Uma agressão, uma violência da qual a criança não gosta. A criança, contudo, não teria plena consciência do que estaria acontecendo com ela. A criança saberia que não é bom para ela, mas não teria a consciência de que se trata de um abuso sexual. Além da dor física, haveria o sofrimento emocional:

“Eu acho que é dor física, eu acho que é a questão do sentimento, sabe? De, de, de pôr a confiança na outra pessoa, sabe? De se sentir assim, é... Um pouco suspensa. Não sei. Eu acho que ela fica um pouco flutuando porque não tem a maturidade de saber o que é e nem sabe como reagir” (“Sophia”).

A professora “Alice”, evangélica, contou uma experiência que ouviu na igreja da qual fazia parte. Ela se emocionou durante a montagem na caixa de areia, contando o que havia ouvido. Uma missionária, que não disse seu nome verdadeiro nem onde atuava, contou que trabalhava com pessoas que passaram pela situação de tráfico humano. Elas eram iludidas com promessas de uma carreira promissora no exterior e, quando chegavam ao destino, eram obrigadas a se prostituir. Embora o exemplo dado pela professora trate de exploração sexual, outro elemento que envolve a violência sexual, julgamos pertinente trazer um trecho de seu depoimento:

Na igreja, uma missionária veio trazer a experiência dela. [...] Ela trabalha com crianças, assim, ela trabalha na linha de frente, assim, evangelizando pessoas que, que sofreram

tráfico humano. E, e aí ela falou que o tráfico humano acontece de várias formas: tráfico de bebês, pra adoção; tráfico de bebês, pra tirar órgãos; mas, também, tráfico pra, pra prostituição, que acontece com adultos, mulheres, mas também acontece com crianças. E aí ela contou histórias que eu fiquei mexida. Mexida, mexida, sabe? Porque, meu Deus, eu nunca imaginei como o submundo que a gente tem é podre (choro). De crianças, de crianças que saem daqui, por exemplo, uma criança de dez, onze anos, que joga futebol, que tem o sonho de jogar futebol, e, de repente, chega uma pessoa e diz assim: “Ah, eu vou lhe levar pra Europa!” E a família, iludida, deixa a criança ser levada pra Europa, com esse sonho de ser, ser jogador de futebol. Quando a criança chega lá, a criança é dopada, é cortada as genitálias, é aplicado silicone e fazem uma criança de onze anos se transformar num transexual, pra ser abusada, assim, é um absurdo (voz embargada). É coisa, assim, que você não tem noção. Sabe? Assim, meu Deus! Isso acontece? Acontece. Principalmente, assim, Europa, leste europeu e Ásia (“Alice”).

Médicos ou pessoas não habilitadas fariam tais cirurgias aliciadas por uma máfia. A missionária que teria contado esse relato à professora “Alice” trabalhava para tentar resgatar essas pessoas e trazê-las de volta para o país de origem, investindo em sua autoestima. Nesse sentido, as pessoas que sofrem esse tipo de violência se sentiriam culpadas. E esse sentimento de culpa, esse sofrimento físico e emocional, perpassa as representações que as professoras participantes têm acerca do ASI. Sobre esse sentimento de culpa, a professora “Alice” tece alguns comentários:

Elas se sentem culpadas. Quer dizer, eu sou vítima, mas eu me sinto culpada [...]: “a culpa foi minha, porque eu, com quatro anos, eu seduzi meu pai”. Ela era abusada pelo pai, mas, no imaginário dela, ela foi se constituindo adulta e, assim, o pai e a forma como acontece a agressão termina levando as pessoas que sofrem o abuso a se sentirem culpadas, tá entendendo? É como, mais ou menos, o pensamento que a gente tem hoje, que, assim, a mulher sai com saia curta e é estuprada: “Ah, a culpa é dela, porque ela saiu com saia curta”, tá entendendo? Assim, a lógica se inverte. Agora é engraçado porque só se inverte nesse contexto de abuso sexual, sabe? Então, assim, uma criança que sofre abuso, ela sofre de duas formas: ela sofre porque ela tá sofrendo abuso e isso não é bom, e não é legal e ela não gosta e, ao mesmo tempo, eu acho que ela ainda, ela se

culpa. Entendeu? Eu acho que ela ainda se sente, assim, ela acha que fez alguma coisa errada pra merecer isso (“Alice”).

A criança se sentiria merecedora do abuso. Ela teria feito algo e estaria colhendo as consequências. Aí vem o sentimento de culpa, que vai destruindo a autoestima da criança, que fica triste e se isola dos colegas. O professor perceberia que a criança está sofrendo algum tipo de abuso quando ela se apresenta muito isolada. A criança, por exemplo, vai ao parque da creche com os colegas para brincar, mas não se integra ao grupo nas brincadeiras. A criança “prefere” ficar sozinha, sem conversar ou interagir com os colegas. Isso aconteceria tanto nas brincadeiras quanto na sala de aula.

A professora observaria a cena e chegaria perto da criança com esse quadro de isolamento, para perguntar por que é que a criança não está brincando, oferecendo um brinquedo e conversando com a criança, procurando sondar algo e dar atenção a ela. E, muitas vezes, o professor também tomaria a iniciativa de levar essa criança para junto dos colegas, para que ela também pudesse interagir. Para o subgrupo de professoras participantes do estudo, esse trabalho faria parte do resgate da autoestima da criança.

A criança não se afastaria porque quer. Ela se afastaria para mostrar que não está se sentindo bem, que tem algo incomodando. A professora “Júlia”, nos seus relatos, trouxe muitos elementos de sua experiência pessoal de vida. Ela contou que era bem esse o quadro que ela vivia. Quando criança, a professora “Júlia” se afastava dos outros, mas não se afastava porque não gostava de seus amigos. Ela se afastava porque se sentia inferior. Ela se afastava porque se sentia triste. Era amedrontada pelo seu contexto doméstico. Poderia chegar em casa e, de repente, o seu pai adotivo ter batido na sua mãe. Tinha medo das coisas que poderiam acontecer. E se sentia culpada. Ela dizia que acha que toda criança abusada se sente um pouco culpada:

Eu acho que a gente também se sente culpado. Como se tivesse merecendo aquilo que tá acontecendo. Será que eu sou culpada? Eu acho que esse sentimento me acompanhou durante a minha vida. Até a minha adolescência eu me sentia também assim (“Júlia”).

O pai que adotara “Júlia” quando ela ainda era bebê, assim que ela completou determinada idade, começou a fazer gestos obscenos, gestos que “Júlia” classificou como horríveis. E ela demorou muito tempo para superar, precisando de acompanhamento psicológico. Mesmo assim, com o tratamento conduzido por um psicólogo, ela admitiu que a experiência foi tão forte e traumática que ela não consegue esquecer até hoje, é como se fosse um filme: “A gente não esquece, não. Mas a gente tem que viver, esquecer que aquilo ali aconteceu. É passado, mas que tá ali. Você nunca vai esquecer mesmo porque a ferida ficou cicatrizada, mas ela tá lá marcada, né? Pra sempre” (“Júlia”).

O fato de ter vivenciado na pele o abuso sexual infantil, na percepção da professora “Júlia”, a ajudaria a compreender melhor a condição da criança que está passando por isso e a poder ajudá-la a se recuperar emocionalmente: “É porque a gente viveu. Quando a gente sente na pele, a gente sabe a dor que o outro tá sentindo” (“Júlia”). O dever do professor seria aproximar-se da criança, conversar, investindo no resgate da autoestima e na tentativa de integrar essa criança que se isola ao grupo de amigos. Nesse sentido, a criança precisaria de atenção, de amor, de ser escutada, de carinho por parte do professor.