• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTUO II PROBLEMATIZAÇÃO E SENTIDO CRISTÃO DO SOFRIMENTO

1. O sofrimento perante Deus

«No fundo de cada sofrimento experimentado pelo Homem, como também na base de todo o mundo dos sofrimentos, aparece inevitavelmente a pergunta: porquê? É uma pergunta a cerca da causa, da razão e também a cerca da finalidade (para quê); trata-se sempre, afinal, de uma pergunta a cerca do sentido. Esta não só acompanha o sofrimento humano, mas parece até determinar o seu conteúdo humano, o que faz que o sofrimento seja propriamente sofrimento humano»108.

Na verdade, enquanto a dor em especial a dor física, afeta todo o mundo dos animais (racionais e irracionais), mas só o ser humano, é que ao sofrer, sabe que sofre e pergunta o porquê.109 E sofre de modo humanamente ainda mais profundo se não encontra a resposta satisfatória a respeito da sua pergunta. Trata-se de uma pergunta difícil, como é também difícil outra muito afim, ou seja, a que diz respeito ao mal. Porquê o mal? Porquê o mal no

107

Ibidem, 98.

108 JOÃO PAULO II, Carta Apostólica «Salvifici Doloris», sentido cristão do sofrimento humano, Roma, 11 de

fevereiro de 1984, nº9.

109 Cf. Ibidem, nº9.

55

mundo? Quando fazemos a pergunta desta maneira, fazemos sempre também, ao menos em certa medida, uma pergunta sobre o sofrimento. As perguntas são difíceis, tanto quando o Homem as faz ao Homem, como também o Homem as apresenta a Deus. Na verdade, o ser humano não põe esta questão ao mundo, ainda que muitas vezes o sofrimento lhe provenha do mundo, põe-na a Deus, como Criador e Senhor do mundo.110 É importante reconhecer que não é fácil abordar esta questão de uma forma inteiramente objetiva. Tudo depende, com efeito, de uma opção inicial. A questão engloba muitas realidades, muitos pontos de vista e muitas experiências individuais e coletivamente.

Então, será possível haver um sentido para o sofrimento? Poderá então ter o sofrimento uma significação positiva? Será ele uma ocasião para se chegar a um bem maior? Donde procede o sofrimento individual e coletivo cujo clamor, não só chega ao céu, como se ergue contra o céu? Porque é que Deus não protege mais as pessoas? Porque é que o ser humano, pelo menos na aparência, está abandonado à sua sorte?111

É do conhecimento de todos que, quando se percorre o terreno desta pergunta, chega- se não só a múltiplas frustrações e conflitos nas relações do ser humano com Deus, mas sucede até chegar-se à própria negação de Deus. Se, efetivamente a existência do mundo como que abre o olhar da alma à existência de Deus, à sua sapiência, poder e magnificência, ao contrário, o mal e o sofrimento parecem ofuscar esta imagem por vezes de modo radical. E isto, sobretudo quando se vê o que acontece cada dia com a dramaticidade de tantos sofrimentos sem culpa e de tantas as culpas sem pena adequada. Esta circunstância, portanto – talvez mais do que qualquer outra, mostra como é importante a pergunta sobre o sentido do sofrimento e com que acuidade se devem tratar, quer a mesma pergunta, quer as possíveis respostas a dar-lhe.112

110 Cf. Ibidem, nº9. 111

Cf. José António Pinheiro TEIXEIRA, «O mistério do sofrimento: problemas e possibilidades», in Didaskalia, Revista da Faculdade de Teologia – Lisboa, Fascículo 1, Vol. XXX, 2000, 98.

112 Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica «Salvifici Doloris», sentido cristão do sofrimento humano, Roma, 11

de fevereiro de 1984, nº9.

56

A experiência atesta e ensina-nos que o sofrimento constitui um argumento existencialmente muito mais forte contra a fé em Deus do que todos os argumentos baseados na teoria do conhecimento, nas ciências, na crítica da religião e da ideologia. O ser humano, quando toma consciência do sofrimento, a tendência é de perder a sua confiança em Deus, pois que nenhuma sabedoria superior o consegue tranquilizar.

Durante muito tempo, pensou-se que a história do sofrimento poderia ser alterada se a humanidade, no âmbito ideal moderno da emancipação, assumisse a responsabilidade pelo seu próprio destino. Propunha-se neste sentido, que o lugar de Deus redentor fosse ocupado pelo Homem capaz de se redimir a si mesmo.

O problema reside sempre no confronto com os factos. É que nem a evolução científico-tecnológica nem a revolução político-social conseguiram, por si mesmas, introduzir uma mudança radical na história do sofrimento humano. Aliás, atualmente, é o próprio Homem que tem cometido delitos que põem em causa, não apenas o desenvolvimento, mas também a subsistência. Se for tomado mais pelo desejo do ter e do prazer do que pelo de ser e crescer, o Homem consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida.113 Dizia o servo de Deus cheio de tristeza: «esperávamos a paz, mas nada há de bom; esperávamos a hora do alívio, mas só vemos angústia» (Jr 14,19). Tratando o problema desta forma, em vez de uma teodiceia, tenta-se de produzir uma espécie de antropo-diceia. Perante a emancipação desejada, o ser humano procura fazer uma avaliação em que coloca abertamente o problema da sua culpa e da sua redenção.

Porém, não se pode confundir emancipação com a redenção. Os dois conceitos significam libertação, mas existe uma diferença fundamental entre eles. Enquanto a emancipação significa libertação do Homem pelo Homem, redenção significa libertação do Homem por Deus. Só a redenção liberta o Homem a partir de uma profundidade onde não pode chegar o dinamismo da emancipação. Esta não subtrai o ser humano do sofrimento e à 113 Cf. José António Pinheiro TEIXEIRA, «O mistério do sofrimento: problemas e possibilidades», in

Didaskalia, Revista da Faculdade de Teologia – Lisboa, Fascículo 1, Vol. XXX, 2000, 99.

57

morte. Diante do sofrimento tudo pára.114 Sendo o ser humano o interlocutor da Teologia atual, é ele que sofre, que faz a experiência concreta da infelicidade e que está consciente da finitude da condição humana.

A pessoa chega ao ponto de alterar a sua atitude para com Deus devido a intensidade do sofrimento e vai à bruxa. «O Homem pode dirigir tal pergunta a Deus, com toda a comoção do seu coração e com a mente cheia de assombro e de equidade. Deus espera por essa pergunta e escuta-a, como vemos na Revelação do Antigo Testamento. A pergunta encontrou a sua expressão mais viva no livro de Job»115. Também podemos citar Karl Rahner que colocou essa pergunta como título duma das suas obras: «Por que razão nos deixa Deus sofrer?»116.

Trata-se de uma questão muito preocupante que precisa de uma solução. «É, contudo, igualmente verdade que Deus modifica profundamente a questão do sofrimento. Não haveria sofrimento se não confrontássemos pelo menos de forma latente, a nossa existência limitada com uma existência plena. Uma vez que aspiramos à salvação, sofremos com a nossa fragilidade. Se não houvesse o desejo de uma situação diferente, estaríamos conformados com o existente. Neste sentido, podemos encontrar Deus, não apenas na luz e na alegria, mas também na obscuridade e na doença»117.

A Igreja, por sua parte, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos, oferece aos Homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação; nem foi dado ao ser humano sob o céu outro nome, no qual devem ser salvos. Acredita também que a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e mestre. E afirma, além disso, que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e para

114 Cf. Ibidem,100.

115 JOÃO PAULO II, Carta Apostólica «Salvifici Doloris», sentido cristão do sofrimento humano, Roma, 11 de

fevereiro de 1984, nº10.

116 Cf. Karl RAHNER, Porque razão nos deixa Deus sofrer? Editorial franciscana, Braga, 2011.

117 José António Pinheiro TEIXEIRA, «O mistério do sofrimento: problemas e possibilidades», in Didaskalia,

Revista da Faculdade de Teologia – Lisboa, Fascículo 1, Vol. XXX, 2000, 99.

58

sempre. Aquele que vence, reina e impera. Quer, portanto, o Concílio Vaticano II, à luz de Cristo, imagem de Deus invisível e primogénito de toda a criação, dirigir-se a todos os Homens de boa fé, para iluminar o mistério do ser humano e cooperar na solução das principais questões do nosso tempo.118

De Cristo passamos para o amor. «O Amor é ainda a fonte mais plena para a resposta à pergunta acerca do sentido do sofrimento. Esta resposta foi dada por Deus ao Homem na Cruz de Jesus Cristo»119.