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Sola Scriptura, Tota Scriptura

No documento Adventismo e Reforma Protestante (páginas 50-56)

e Interpretação

Dos cinco Solas da Reforma, talvez o mais mal compreendi-do seja o Sola Scriptura. Um compreendi-dos principais motivos para isso é que muita gente ignora que esse princípio se relaciona inti-mamente a alguns outros. Em outras palavras, não é possível separar o Sola Scriptura desses outros princípios sem destruí--lo. Conhecer esses outros princípios, portanto, é essencial para preservar a existência do Sola Scriptura e aplicá-lo corretamen-te. Nesta lição, vamos aprender sobre esses princípios indisso-ciáveis do Sola Scriptura.

O primeiro princípio que precisamos conhecer chama-se

Tota Scriptura, expressão latina que significa “Toda a Escritura”. Esse princípio ensina que toda a Escritura é inspirada por Deus, e não apenas algumas partes. Por essa razão, a Bíblia pode ser entendida como a própria “Palavra de Deus”, ainda que escrita em linguagem e estilo humanos. Os principais textos bíblicos que nos indicam essa realidade são II Tm 3:14-17, I Pd 1:19-21,

Jo 5:39 e 10:35, Lc 24:27 e II Pd 3:16.1 Para além desses textos, o

Tota Scriptura se sustenta a partir da coerência e complementa-ridade interna das Escrituras, das citações cruzadas, das evidên-cias de idoneidade dos autores, da historicidade comprovada de diversas descrições bíblicas e, claro, do raciocínio lógico: se não pudéssemos confiar inteiramente nas Escrituras, ela não nos ser-viria como revelação da vontade de Deus.

O leitor deve ter em mente que sem Tota Scriptura não há como existir Sola Scriptura. É só quando a Escritura é vista como um todo inspirado que podemos apontar esse todo como a única regra de doutrina e seu próprio intérprete. Se abrimos mão do Tota Scriptura, já não temos a Escritura completa para chamar de padrão absoluto.

Dois outros princípios intimamente relacionados ao Sola

Scriptura são: (a) todo texto precisa ser interpretado e (b) exis-tem regras lógicas e básicas de interpretação. Vamos entender esses princípios.

Interpretação é o ato de extrair de um texto ou fala o seu sig-nificado. Isso significa que qualquer leitura que extrai sentido de um texto já é uma interpretação, ainda que esteja errada. E uma vez que o objetivo de qualquer leitura é entender o sentido do que se lê, disso decorre que todo texto precisa ser interpretado. Não existe exceção a esse princípio.

As regras básicas e lógicas da interpretação textual tem a ver com a análise dos contextos com os quais determinada fala ou escrita se relaciona. Existem vários tipos de contexto: o temático, o histórico, o idiomático, o estilístico, o teológico, etc. O sentido de qualquer coisa escrita ou falada se encontra na relação entre 1 Além desses, ler também Êx 24:7; Ap 22:18-19; Dt 4:1-2, 12:32, 28:58-61, 29:20-27, 30:10, 31:9-13; Js 1:8, 8:31-34, 23:6; Is 8:20; Dn 9:2; Ez 14:14,20 e 28:3; Gl 2:6-10; Cl 4:16; I Ts 5:27; I Tm 5:18; Lc 10:7. São textos que auxiliam no entendimento de como os livros bíblicos foram sendo validados pelos demais autores canônicos ao longo dos séculos.

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esses contextos e a mensagem. Por exemplo, se lemos que João está no banco, o termo banco pode estar se referindo a uma ins-tituição financeira, um assento, um local que armazena sangue para doação, uma pasta digital com vários dados ou um monti-nho de areia na praia. A análise dos contextos é essencial para revelar qual é o sentido da frase sobre João. Suponhamos que no parágrafo anterior, o texto diz que João saiu de casa para pagar uma conta. Esse é o contexto temático. A avalição dele torna pro-vável que o banco em que João está é uma instituição financeira. Quando se fala em raciocínio lógico, muitos pensam que isso seria uma forma de quebrar o Sola Scriptura, pois ao usar a lógica, já não seria “Só a Escritura”. Mas esse é um raciocínio equivocado. O uso da lógica permeia toda a nossa vida. Usamos a lógica para fazer contas, dar e receber trocos, construir frases, erguer prédios, argumentar, avaliar situações, criar tecnologias, escrever livros e, claro, interpretar textos e falas. Não há como nos desvencilhar da lógica. A lógica é uma linguagem universal, um axioma, um dado da realidade.

Portanto, o uso de regras lógicas para interpretação do texto bíblico, além de não quebrar o Sola Scriptura, é um ato

pressu-posto pelo Sola Scriptura. Não há como existir Sola Scriptura sem o uso das regras básicas e lógicas de interpretação. Sem as regras, o sentido correto do texto bíblico não é extraído e, por conse-guinte, a Escritura Sagrada deixa de ser regra para nós. Em vez do “Assim diz o Senhor” passamos a ter o “Assim eu acho que devo interpretar”. Podemos citar alguns exemplos reais de problemas que foram causados pela negação desses princípios.

Surgida entre os séculos 18 e 19, a teologia liberal entende que a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas no máximo contém a Palavra de Deus, misturada a uma série de conceitos e visões humanas. Assim sendo, caberia a cada liberal descobrir o que na Bíblia é inspirado e o que não é. A teologia liberal desenvolveu

as mais diversas formas de negação das verdades bíblicas: a cria-ção do mundo em seis dias literais, o dilúvio, os milagres, o nas-cimento virginal de Jesus Cristo, a sua ressurreição física, a sua ascensão ao céu, o seu retorno no futuro, etc. Todas essas cren-ças básicas foram negadas explicitamente ou reinterpretadas de modo alegórico, passando por cima de muitas regras básicas de interpretação. Na teologia liberal, portanto, encontramos a nega-ção do Tota Scriptura, das regras básicas de interpretanega-ção e, con-sequentemente, também do Sola Scriptura.

Mesmo não aderindo o liberalismo no sentido estrito, mui-tos crentes flertam com uma visão “self-service” da Bíblia, onde as partes que não lhes agrada são ignoradas. Embora muitos que assim agem não tenham grande conhecimento teológico, existe uma corrente de cristãos teologicamente mais arrojados que procura dar uma fundamentação teórica mais elaborada à visão “self-service”. Eles desenvolvem o conceito de Jesus como a chave interpretativa (ou chave hermenêutica)2 da Bíblia. Em um pri-meiro momento, isso não parece ruim. Jesus é mesmo o centro das Escrituras e, portanto, a Bíblia como um todo só é compreen-dida à luz dele. No entanto, uma vez que geralmente os adeptos dessa visão possuem sua própria versão particular de Jesus, o con-ceito de Jesus como chave interpretativa não passa de uma tenta-tiva de impor à Bíblia conceitos extrabíblicos. O resultado é sem-pre negação de partes da Escritura ou reintersem-pretações absurdas.

Em nichos mais progressistas, muitos crentes aderem às teo-logias da libertação (de matiz católica) e da missão integral (de matiz protestante). Ambas tem a proposta de ler os evangelhos e a Bíblia a partir de perspectivas políticas trabalhistas, socialistas e marxistas. De maneira semelhante, teologias identitárias como a 2 As expressões “chave hermenêutica” e “chave interpretativa” são sinônimas. Hermenêutica é o termo geralmente usado para designar algum método de interpretação ou mesmo a ciência da interpretação como um todo.

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feminista procuram ler a Escritura Sagrada com as lentes de seus respectivos nichos representados. Em todos esses casos, a Bíblia também não fala. Ela serve apenas de estante para filosofias e cosmovisões extrabíblicas e até antibíblicas em muitos de seus aspectos. Quando o intérprete deixa de se preocupar com o que a Bíblia diz em seus contextos originais, passando a se preocu-par com uma tentativa de síntese entre Bíblia e filosofias diver-sas, a interpretação oriunda dessa síntese já não é um reflexo da Palavra de Deus.

Nas igrejas neopentecostais, a teologia da prosperidade pas-sou a ter grande aderência desde os anos 1970. Segundo essa teologia, Deus sempre quer nos dar riquezas e cura. O único impedimento seria a nossa falta de fé. A fé, portanto, nos daria o direito de determinar o que queremos em nossa vida. Qual é a base bíblica para essa teologia? Nenhuma. É claro que os adeptos dessa teologia usam passagens bíblicas para tentar sustentar suas teses. Mas existe um uso discriminado dos textos. Passagens que contrariam as ideias da teologia da prosperidade são ignoradas, enquanto passagens sobre bênçãos e fé são usadas fora de seus contextos. Em suma, as regras básicas de interpretação não são utilizadas. Aqui também a Bíblia deixa de falar por si mesma.

Entre muitos crentes, uma visão equivocada de “leitura espi-ritual” da Bíblia os leva a pensar que interpretações baseadas em regras muito técnicas e estritas seriam uma maneira de ler sem o

Espírito, atendo-se à letra fria. Para estes, a Bíblia só falaria a partir de leituras mais místicas e menos lógicas, onde as verdades vão além do texto puro e simples. Evidentemente, esse tipo de raciocí-nio abre margem para que cada intérprete impute ao texto ideias que não fluem de lá, sob a justificativa de que isso seria uma lei-tura espiritual. Cria-se assim uma hermenêutica subjetiva.

Esse modo de interpretar não é novo. Dentre as escolas de interpretação que surgiram ao longo da história cristã, a Escola

de Alexandria trabalhou muito com ideias semelhantes, sobre-tudo entre os séculos 2 d.C. a 4 d.C. O resultado foi o desenvol-vimento de um sistema alegórico de interpretação, cuja base era buscar alegorias em todo e qualquer texto bíblico. O sistema teve grande influência na idade média, levando muitos teólogos a proporem as mais equivocadas interpretações da Bíblia e as utili-zarem como base para doutrinas.

Embora a Reforma Protestante tenha atacado a chamada ale-gorese, propondo o método histórico-gramatical (interpretação baseada na análise objetiva do texto à luz dos contextos gramá-tico e histórico), ainda vemos hoje crentes protestantes se vol-tando a esses vícios teológicos.

Um último exemplo de desvios que podemos citar é o chamado “método texto-prova”. Comum nas discussões teológicas de baixo nível, o método consiste em citar textos bíblicos sem contextuali-zá-los e explicá-los, na convicção de que isso prova determinada posição. A ideia por trás desse método é que os textos são autoevi-dentes, não necessitando de qualquer explicação, nem de relação com o que o autor do texto queria dizer para o seu púbico original.

Discussões movidas ao método texto-prova são sempre enfa-donhas e nada edificantes. Os debatedores lançam dezenas de textos “na mesa” e cada qual acha que provou algo. A Bíblia, no fim das contas, não fala por si mesma, pois ou os textos bíblicos são usados fora de contexto, ou são usados sem explicações que tornem claro como eles suportam as posições dos debatedores.

O que podemos concluir desses exemplos é que o Sola

Scriptura, para existir e ser eficaz, precisa andar de mãos dadas com o Tota Scriptura e as regras básicas de interpretação. Sem esta associação, Sola Scriptura se torna uma expressão vazia de sentido e até contraditória. Se queremos levar a sério a Bíblia como regra de fé e prática, precisamos dominar os princípios de interpretação e enxergar a Bíblia como um todo inspirado.

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LIÇÃO 7

A continuidade

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