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CAPÍTULO II NA FARTURA E NA ESCASSEZ: MODOS DE VIDA E DE

2.3 Sonhos de futuro: os filhos

Dadas as dificuldades da atividade laboral, os pescadores, em sua maioria, não gostariam que o próprio trabalho fosse reproduzido e continuado por seus filhos. Esta é a situação vivenciada pelo pescador senhor Manuel Ribeiro, este ao ser questionado se os seus nove filhos também são pescadores, com um tom altivo, solta uma resposta negativa, argumentando sua posição: “Não. Só pescam por esporte. Eu não vou criar eles na beira do rio, porque o trem é muito difícil demais”. Mais à frente ele detalha suas razões: “Ultimamente a pescaria está judiando muito com a gente. Judiar que eu falo é você tomar chuva aí, é vento, é uma dificuldade pra você ganhar o pão. Eu se voltasse ao tempo, já não aprendia a profissão mais, caçava outro meio”. E ao final, ele complementa o que deseja para

os filhos: “Eles têm que estudar, caçar outra profissão”288. Essa é também a visão de outros

pescadores, quando indagados sobre o ingresso dos filhos no universo da pesca:

Não, não, eu não incentivo, porque é o seguinte, é uma coisa que é ta acabado, porque o tanto de pescador que tem, se for envolver, é tempo perdido. Duas fez o curso pra enfermagem, fiquei satisfeito, uns já trabalha de bombeiro e os outros trabalha braçal, mas por fora, é uma coisa ou outra. Por que o rio, eu acredito que não vai, que não vai viver muito tempo com esse tanto de gente não289.

Todo mundo fala “por que suas meninas não faz carteira de pescador?”. Eu falo: não! Por quê? Porque elas não entende de pesca, não sabe o que é pesca. E outra, porque quem faz a carteira de pescador, ele não pode trabalhar contratado e nem fichar. Porque se ele fichar, ele perde tudo os direito dele lá. Então, por que eu vou deixar minhas filhas fazer uma certeira sendo que elas não exerce pesca?290

Hoje não porque tem outros que já tem uma perspectiva de vida diferente, né? A sobrevivência com a pesca já ta ficando mais difícil por causa de muita poluição, pouca chuva é a disputa pelo espaço da pesca é muito grande, hoje a condição de meus filhos também é completamente diferente da condição que eu tive da época da minha adolescência, então hoje eu já incentivo eles a fazer uma faculdade a trabalhar em outros setores291.

288 Entrevista realizada com o senhor Manuel Ribeiro Pereira, pescador, 63 anos, no dia 25 de Fevereiro de 2012, em sua residência no bairro Aparecida em São Francisco-MG.

289 Entrevista realizada com Vanilson de Jesus dos Santos, pescador, 64 anos, no dia 30 de julho de 2013, em sua residência no bairro Centro, em São Francisco-MG.

290 Entrevista realizada com América Geralda da Silva, pescadora, 49 anos, no dia 03 de janeiro de 2013, em sua residência no bairro Sagrada Família em São Francisco-MG.

291 Entrevista realizada com o presidente da Colônia Z-2, de Januária, Simeão Reginaldo Ferreira, no dia 07 de agosto de 2013, na sede da Colônia, em Januária-MG.

Esses depoimentos, no seu conjunto, parecem remeter às considerações de

Valêncio quando ressalta que “para pensar o devir dos filhos é necessário anular o valor

intrínseco do que se faz e do que se é presentemente”292, ou seja, o que ocorre nesse processo

de negação dos pais em relação a um possível seguimento dos seus filhos na profissão pesqueira é, pois, uma negação da própria história, do seu trabalho e de si mesmos enquanto pescadores, rejeitando a possibilidade de que os filhos vivenciem o que eles passaram . Brito, morador e estudioso da realidade são-franciscana, acredita que:

As experiências de vida são depositarias da sabedoria popular que, através do tempo e das palavras, ganham forma e se verbalizam como queixas, advertências, moral, desesperanças, esperança, busca de novas alternativas e, em muitos casos, apenas como espera da morte, mas, ainda há aqueles que reúnem forças e acreditam em dias melhores, se não para si, ao menos para os filhos293

Pelo visto, a condição de analfabetismo da maioria dos pescadores faz com que muitos deles desejem e lutem para que seus filhos estudem ou, ao menos, escolham outras profissões que não a de pescador. Vale dizer, no entanto, que essa negação para que os filhos continuem exercendo a profissão dos pais não é consensual entre os trabalhadores da pesca. No caso dos pescadores que têm filhos mais velhos e que não tiveram oportunidade de estudar e, portanto, estão na mesma condição de analfabetismo dos pais, o número dos que seguiram a profissão dos pais é maior.

Nesse processo, o que se nota na vida das famílias dos pescadores é a “cassação de melhoras”, citada pelo senhor Paulo Sérgio, que ainda continua, nas outras gerações, entre filhos e netos. A movimentação de trabalhadores para atuarem em atividades sazonais ou mesmo para se fixarem em postos de trabalho nos grandes centros (mas também na própria região e na cidade de São Francisco), onde as condições de trabalho sejam melhores que as existentes na pesca, se mostra como uma constatação bastante visível nos últimos anos. É uma situação de tensão social que leva Dona América Geralda da Silva a considerar que ter filhos homens, com maior liberdade para sair, trabalhar fora e mandar recursos para a família, é um fator de sorte para quem os tem: “se não sair pra fora, não adquere (sic) nada não. Minha irmã

292 VALÊNCIO, Norma. Pescadores do rio São Francisco: a produção social da inexistência. São Carlos: Rima, 2007, p. 47.

293 BRITO, Saulo Jackson de Araújo. Uma cidade, muitas memórias: trajetórias de vida dos trabalhadores ribeirinhos de São Francisco-MG. In: SILVA, Valmiro Ferreira; BRITO, Saulo Jackson de Araújo; SOUZA, Harilson Ferreira de (orgs.). São Francisco em perspectiva. Montes Claros: Editora Unimontes, 2010. p. 153.

vivia igual eu também, mas ela teve a sorte de dois filho homem. (...) os dois rapaz (...) saiu

de casa, foi pra São Paulo, hoje graças a Deus eles estão bem, sabe”,294 afirma a pescadora.

Dona América ainda nos informa de que não aconselha, nem incentiva suas filhas

a ingressarem no mundo da pesca artesanal, segundo ela as filhas “têm que estudar, caçar

outra profissão”. Inerente ao seu discurso percebe-se uma preocupação quanto ao futuro: “elas têm futuro. (...) Nós que já tá com uma idade, que eu já vou completar 50 anos, não tem mais aquela idade de ser contratada por uma grande firma, e eles não, eles têm um futuro pra frente”, reitera a pescadora. Seu depoimento é coerente com o de muitos outros pescadores, inclusive com o dela mesma, sobre a realidade da pesca no rio São Francisco. As inúmeras dificuldades vivenciadas nesse trabalho artesanal “sem futuro” parecem conduzi-la ao pensamento de que noutros setores produtivos o trabalho e a vida se dão de modo menos doloroso.

Idealizando o trabalho na “firma”, na qual suas filhas podem um dia ser registradas, Dona América anuncia o caminho de muitos filhos de pescadores nesses últimos tempos, continuando o processo migratório que seus pais fizeram vindos do Nordeste do Brasil. Isso porque muitos deles, geralmente os mais velhos e, principalmente os homens, estão em cidades como Belo Horizonte, São Paulo ou Montes Claros, onde trabalham, adquirem bens e, como os pais têm uma visão de que o trabalho no rio, para eles, filhos, não é nada atrativo. O depoimento de Dona América de valorização da figura masculina enquanto força produtiva é revelador:

Eu não tive a sorte de ter um filho homem, foram quatro meninas, duas casadas e duas solteiras. Uma tá em Belo Horizonte e tá essa aí, que é mais nova, que fez 18 anos. A gente não passa fome, mas tem dificuldade direto. Aqui mora eu, meu esposo, dois netos, meu filho, seis pessoas. Igual ela, casou, mas mora aqui porque ainda não adquiriu lugar. A outra adquiriu aqui do lado, que é minha filha também. Mas eu sei que é tudo difícil. Principalmente, se não sair pra fora, não adquire nada não. Minha irmã vivia igual eu também, mas ela teve a sorte de dois filho homem. Tem a filhas, uma casou, foi pra Brasília, tá numa situação mais melhor, tem a outra que vai casar, tem mais duas, e os dois rapaz, jovem, com 18 anos, saiu de casa com 18 anos, foi para São Paulo, hoje graças a Deus eles estão bem, sabe, cada um deles tem um carro, tem uma casa boa, as irmãs trabalha. Então hoje, ela pode pôr as mãos pro céu e agradecer a Deus, que ela tá bem295.

Essa visão está, pois, como já vimos, inserida na mesma conjuntura exposta no capítulo anterior e que lhe dá sentido. A concorrência pelos poucos postos de trabalho na

294Entrevista realizada com América Geralda da Silva, pescadora, 49 anos, no dia 03 de janeiro de 2013, em sua residência no bairro Sagrada Família em São Francisco-MG.

295 Entrevista realizada com América Geralda da Silva, pescadora, 49 anos, no dia 05 de maio de 2012, em sua residência no bairro Sagrada Família em São Francisco-MG. Entrevista realizada com América Geralda da Silva, pescadora, 49 anos, no dia 05 de maio de 2012, em sua residência no bairro Sagrada Família em São Francisco- MG.

cidade faz com que a tarefa de sobreviver se torne cada vez mais permeada de tensões na vida dessas pessoas.

As alternativas apresentadas aos pescadores artesanais e aos membros de suas famílias, entre ser pescador registrado ou ser um trabalhador com carteira assinada, os coloca numa situação de difícil decisão. Longe de terem uma postura padrão, essas decisões são diversas. Assim, se por um lado muitos escolhem a certeza do recebimento dos benefícios da

pesca, principalmente o Seguro-Defeso296, ao invés de ingressarem no mercado de trabalho,

registrados, mas sem benefícios, por outro, há aqueles que apontam como solução para a vida dos filhos a segunda opção, como no caso de Dona América. A lógica seguida por esses pescadores é essa: ou se é pescador e ganha tudo o que tem direito enquanto tal, ou se recusa esses benefícios para ter uma carteira registrada no mercado de trabalho. Essa lógica é uma forma de lidar com a própria legislação que regula o trabalho do pescador, pois um requisito básico para que essas pessoas tenham direito, por exemplo, ao seguro-desemprego, é o de “não ter vínculo de emprego ou outra relação de trabalho, tampouco outra fonte de renda

diversa da decorrente da atividade pesqueira”297.

Finalizando as discussões em torno dos modos de vida e de trabalho e dos sonhos dos pescadores artesanais de São Francisco, entendo que as experiências e conhecimentos acumulados ao longo dos anos fizeram desses profissionais artesanais da pesca sujeitos sociais possuidores de uma história capaz de evidenciá-los no contexto regional e no universo cultural como agentes construtores de uma visão de mundo específica. Olhando dessa forma,

passei a entender esse grupo social na perspectiva de Vincent298, como “indivíduos em

movimento” e o rio São Francisco, integrando cidades, pessoas, culturas, modos de vida, visualizado como algo móvel, fluido, assim como R. Williams entende a vida em espaços como esse que, convergindo o campo e a cidade, se movem “ao longo do tempo, através da história de uma família e um povo; move-se em sentimentos e ideias, através de uma rede de

relacionamentos e decisões”299.

296 Em conversa informal com funcionários do Instituto Nacional de Segurança Social – INSS, já ocorreram casos em São Francisco de pessoas que trabalhavam há mais de vinte anos no setor de serviços, contribuindo com o INSS, sendo, assim, assistidos pelos direitos que lhes são devidos, e, apenas para receberem o seguro- defeso e os outros benefícios como pescador artesanal, acabaram deixando de contribuir com o INSS.

297BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Seguro-Desemprego. Pescador artesanal. Disponível em <http://portal.mte.gov.br/seg_desemp/seguro-desemprego-pescador-artesanal.htm>; acesso em 21 mai 2013. 298 VINCENT, Joan. A sociedade agrária como fluxo organizado: processos de desenvolvimento passados e presentes. In: FELDMAN-BIANCO, Bela. A antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.

299WILLIAM, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.21.

Assim, na tessitura realizada com elementos do passado e do presente, vi os pescadores elaborando e dando sentido às transformações ocorridas no rio, no seu trabalho, nos seus modos de vida, procurando os significados possíveis das silenciosas, mas contínuas mudanças que viram e sentiram nas últimas cinco décadas. Numa visão holística sobre esses pescadores de São Francisco, compreendi o quanto vida e trabalho, indivíduo e meio ambiente, pessoal e coletivo, pensamentos/sentimentos e ações estão vinculados, dialeticamente imbricados um no outro, forjando daí sua própria cultura.

Acionando um conjunto de memórias junto aos pescadores artesanais da cidade de São Francisco, deparei-me com homens e mulheres que se lembravam, sentiam saudades, se indignavam, riam, reclamavam, filtrando o passado e se expressando sob a latência do que vivem hoje, principalmente quando olham para o rio e o veem sem a grandiosidade produtiva de outros tempos. Nesse sentido, compartilho da visão de Heloísa Helena Pacheco Cardoso, quando diz que “a fala, no momento em que é explicitada, está inserida em um contexto ou

momento e é dele que se olha para trás”300. Partir do presente e compreender os sentidos do

passado, a meu ver, faz desses pescadores reais construtores de uma inteligibilidade para a vida, pois pela experiência de conviver com o rio cotidianamente, acabaram entendendo as mudanças desse rio no tempo e, consequentemente, as transformações que o próprio trabalho tem sofrido nesse espaço nas décadas recentes.

Nessa direção, a articulação com a coletividade, com o grupo de pescadores, com entidades representativas da categoria e com uma gama de instituições governamentais tem ganhado grande sentido entre esses profissionais. Nesse universo, ao que parece, o grupo de pescadores artesanais ganhou uma identidade forjada nas leis, nos departamentos do governo, dizendo o que é um pescador artesanal, seus deveres, seus direitos e como deve ser exercido o seu trabalho. Nesse processo, o choque com suas vivências, experiências, sua cultura, foi inevitável. Na modelação desses sujeitos da pesca como um grupo homogêneo, sua história, sua experiência, seus modos de vida parecem ter sido desconsiderados, gerando ainda mais tensões.

É em torno dessa discussão que tento analisar a seguir os sentidos dados pelos pescadores artesanais de São Francisco a essa gama de novidades das últimas décadas no universo institucional que, gradativamente, foram transformando-os numa figura jurídica, reconhecida nacionalmente num processo permeado de embates e tensões. No centro dessa

300 CARDOSO, Heloísa Helena Pacheco. Nos caminhos da história social: os desafios das fontes orais no trabalho do historiador. História & Perspectivas. Núcleo de Pesquisa e Estudos em História, Cidade e Trabalho. Fontes Orais: perspectivas de investigação. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia. v.23, n.42, jan/jun, 2010, p. 39.

análise está a Colônia de Pescadores como elemento preponderante para compreendermos que entre as vivências diárias dos pescadores no leito do rio e o lugar que lhes deram e que lhes transformaram numa instituição existem alguns desajustes, principalmente porque interesses e visões diversos se confrontam nessa arena que é a Colônia de Pescadores.