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N. º DE CASOS DE CRIPTOSPORIDIOSE (% CASOS 0-4 ANOS) PAÍS

10. E PIDEMIOLOGIA M OLECULAR DA C RIPTOSPORIDIOSE

10.2 E SPÉCIES QUE C AUSAM I NFECÇÃO H UMANA E E PIDEMIOLOGIA DA SUA

TRANSMISSÃO

Nos anos que antecederam o aparecimento das técnicas de biologia molecular, a estrutura populacional do género Cryptosporidium era, ainda, desconhecida e a diferenciação das espécies era feita, somente, com base nas características morfológicas dos oocistos. Em consequência destes factos, pensou-se, durante algum tempo, que a espécie C. parvum era a única responsável pela criptosporidiose humana.

Só através da utilização de métodos de biologia molecular foi possível obter uma caracterização mais completa dos isolados, morfologicamente indistinguíveis, que eram causa de infecção humana. Em resultado desses trabalhos, sabe-se, hoje, que as espécies C. parvum e C. hominis são as responsáveis pela maioria das infecções no Homem [Awad-el-Kariem et al., 1995; Morgan et al., 1995; Bonnin et al., 1996; Peng et al., 1997; Spano et al., 1997b; Gibbons et al., 1998; Spano et al., 1998a, 1998b; Sulaiman et al., 1998; Cacciò et al., 1999; McLauchlin et al., 1999; Ong et al., 1999; Alves et al., 2000, 2001a, 2003b].

Em 1999, Pieniazek et al. identificaram, nos EUA, em doentes infectados por VIH, para além de isolados de C. parvum e C. hominis, três isolados de C. felis e um isolado de C. canis, no que foi a primeira descrição destas duas espécies em humanos. Alguns meses depois, Morgan et al., 2000a identificaram, também em doentes com infecção por VIH da Suíça, do Quénia e dos EUA, isolados de C. felis e de C. meleagridis, sendo esta a primeira vez que a segunda espécie foi identificada em humanos. Estas espécies foram, posteriormente, encontradas, também, em doentes imunocomprometidos em Portugal, em França e na Tailândia [Alves et al., 2001a, 2001b; Guyot et al., 2001; Gatei et al., 2002b; Tiangtip e Jongwutiwes, 2002; Matos et al., 2004]. Em 2000, no Reino Unido, Pedraza-Díaz et al. fizeram a primeira descrição da infecção por C. meleagridis, em seis indivíduos imunocompetentes. Um ano mais tarde, no

mesmo País, os mesmos autores descreveram, pela primeira vez, em duas crianças imunocompetentes, um caso de infecção por C. felis e outro por C. canis [Pedraza-Díaz et al., 2001a]. Num estudo em crianças seronegativas para VIH, numa favela nos subúrbios de Lima, no Peru, onde a criptosporidiose é endémica, Xiao et al. (2001a) encontraram, para além das espécies C. parvum e C. hominis, também, C. canis, C. felis e C. meleagridis, sendo a infecção por esta última espécie, quase tão frequente, como a observada para C. parvum.

Embora em prevalências bastantes inferiores, foram encontradas outras espécies e genótipos de Cryptosporidium associados à infecção humana, nomeadamente C. muris em quatro doentes com SIDA no Quénia, na Tailândia, no Peru e em França [Guyot et al., 2001; Gatei et al., 2002a; Tiangtip e Jongwutiwes, 2002; Palmer et al., 2003], Cryptosporidium genótipo cervo, em nove casos de criptosporidiose esporádica no Canadá [Ong et al., 2002] e C. suis num doente seropositivo para VIH, sem sintomatologia gastrintestinal, no Peru [Xiao et al., 2002a].

No quadro V são apresentados alguns dos estudos mais recentes, envolvendo a caracterização de isolados humanos de Cryptosporidium spp., em várias regiões geográficas, evidenciando as espécies e genótipos mais vezes associadas à infecção no Homem.

A leitura do quadro V permite verificar que a distribuição da proporção de infecção por

C. parvum e por C. hominis não é igual em todas as regiões, sendo, nos países Europeus,

encontrada, com mais frequência, a espécie C. parvum, enquanto que C. hominis é a espécie predominante no resto do Mundo. Embora se desconheça o significado desta variação, ela poderá ser o reflexo, não só da presença de diferentes fontes de infecção, como, também, de diferenças na influência de cada ciclo de transmissão, na epidemiologia da criptosporidiose. Contudo, à luz dos conhecimentos actuais, estas constituem, apenas, especulações, baseadas numa observação superficial da informação disponível, sendo necessário desenvolver estudos epidemiológicos aprofundados, em comunidades bem definidas, para que se possa compreender o papel dos diferentes ciclos de transmissão, na epidemiologia da criptosporidiose nesses locais [Thompson, 2003; Xiao e Ryan, 2004]. O Reino Unido é dos países onde mais estudos têm sido efectuados nesse sentido.

Nº DE DOENTES COM INFECÇÃO POR

PAÍS DOENTES TOTAL

C. hominis C. parvum C. meleagridis C. felis C. canis Outros REFª ÁFRICA

Malawi Crianças 43 41 2 0 0 0 0 Peng et al., 2003a

Quénia Crianças e adultos VIH+ 33 23 8 1 0 0 1 C. muris Gatei et al., 2003 Uganda Crianças 435 326 85 5 0 0 19 (C. parvum + C. hominis) Tumwine et al., 2003 ÁSIA

Japão VIH −, VIH+ 22 16 3 3 0 0 0 Yagita et al., 2001

Tailândia VIH + 34 17 5 7 3 2 0 Gatei et al., 2002b

Tailândia VIH + 29 24 0 3 1 0 1 C. muris Tiangtip e Jongwutiwes, 2002

AMÉRICA

Canadá Casos esporádicos 150 108 29 0 0 0 9 Cryptosporidium gen. cervo 4 genótipos não identificados

Ong et al., 2002

EUA VIH + 10 5 1 0 3 1 0 Pieniazek et al., 1999

Peru Crianças VIH − 85 67 8 7 1 2 0 Xiao et al., 2001a

Peru VIH + 302 204 34 38 10 12 1 C. suis

2 (C. hominis + C. canis) 1 (C. hominis + C.meleagridis)

Cama et al., 2003

EUROPA

Dinamarca Casos esporádicos 44 25 18 1 0 0 0 Enemark et al., 2002a

França VIH + 46 14 22 3 6 0 1 C. muris Guyot et al., 2001

Irlanda do Norte Casos esporádicos 39 4 35 0 0 0 0 Lowery et al., 2002

Portugal VIH + 29 7 16 3 3 0 0 Alves et al., 2003b

Reino Unido Surtos, casos esporádicos 1705 645 1049 5 0 0 6 (C. parvum + C. hominis) McLauchlin et al., 2000

República Checa Crianças VIH − 9 0 9 0 0 0 0 Hajdušek et al., 2004

Vários trabalhos realizados, no Reino Unido, mostraram que entre 65% a 84% dos casos esporádicos de criptosporidiose são originados por C. parvum, que se manifestam como pequenos surtos familiares, resultantes da transmissão secundária pessoa-a-pessoa, após a exposição inicial de um ou mais membros da família ao parasita. Os casos esporádicos, causados por C. hominis apresentam um pico sazonal no fim do Verão e início do Outono, em indivíduos que regressam ao País, após um período de férias no estrangeiro. Os surtos associados ao consumo de água de abastecimento contaminada com oocistos de C. parvum, verificam-se, na maior parte das vezes, durante os meses da Primavera, coincidindo com a época do nascimento dos cordeiros, dos surtos de criptosporidiose observados nestes animais, de determinadas práticas agrícolas e de chuvas fortes, que dão origem à contaminação dos recursos hídricos. Nos restantes meses do ano, sobretudo após períodos de chuva intensa, a maioria dos surtos hídricos são causados pela espécie C. hominis, devido ao transbordar e ao arrastamento de esgotos de origem humana, que vão contaminar os cursos de água [McLauchlin

et al., 2000; Goh et al., 2004; Hunter et al., 2004].

A importância que a transmissão zoonótica tem, na epidemiologia da criptosporidiose, no Reino Unido, foi demonstrada, em 2001, durante o período da epidemia de febre aftosa, que atingiu aquele País. A implementação de medidas para o controlo da epidemia, como a redução do acesso às zonas rurais, o isolamento das quintas afectadas e a restrição da mobilidade dos animais, teve como consequência a redução de 35% no número de casos de criptosporidiose declarado às autoridades, principalmente dos provocados por C. parvum. As medidas adoptadas, para o controlo da transmissão da febre aftosa, alteraram, também, a epidemiologia da transmissão da criptosporidiose, por diminuição da exposição das pessoas ao reservatório zoonótico e da redução dos níveis de contaminação dos recursos hídricos [Smerdon et al., 2003].

A epidemiologia da transmissão da criptosporidiose humana foi, também, estudada na Nova Zelândia, em várias comunidades rurais com grande implementação de explorações leiteiras e na zona metropolitana da cidade de Wellington. Os resultados obtidos evidenciaram que, nas comunidades rurais, 70% das infecções humanas eram devidas a C. parvum, sendo C.

hominis responsável por, apenas, 30% das infecções. Resultados opostos foram encontrados

na zona metropolitana, onde 89% dos casos de criptosporidiose detectados foram causados pela espécie antroponótica C. hominis, contra 11% dos casos provocados por C. parvum. Os autores observaram, ainda, variação sazonal da espécie predominante, ocorrendo quase todas

as infecções por C. parvum durante a Primavera, época do nascimento de cordeiros e bezerros, que exibem elevadas prevalências de criptosporidiose, predominando a infecção por

C. hominis durante o Outono [Learmonth et al. 2004].

A transmissão de C. parvum ao Homem, através do contacto directo com animais infectados, encontra-se bem documentada [Miron et al., 1991; Elwin et al., 2001]. Embora não tenha sido devidamente esclarecida a origem da fonte de contaminação, existem, também, registos de surtos hídricos e alimentares causados por C. parvum [Peng et al., 1997; Sulaiman et al., 1998; Ong et al., 1999]. Ainda que os hospedeiros naturais de C. parvum, como os ruminantes domésticos e alguns mamíferos silváticos, possam constituir reservatórios de infecção para o Homem, a interpretação do significado epidemiológico da infecção humana por C. parvum exige alguma cautela, na medida em que se desconhece a contribuição, não só da transmissão antroponótica desta espécie, como da transmissão hídrica e alimentar por contaminação de origem humana [Xiao et al., 2004a; Xiao e Ryan 2004]. A identificação, no Homem, de infecções mistas por C. hominis e algumas espécies zoonóticas, como C. parvum, C. meleagridis e C.

canis vem, também, reforçar a hipótese da possibilidade da transmissão antroponótica de

espécies zoonóticas [McLauchlin et al., 2000; Cama et al., 2003; Tumwine et al., 2003; Xiao e Ryan, 2004]. Os estudos realizados ao longo dos últimos anos evidenciaram a complexidade da epidemiologia da transmissão da criptosporidiose. As espécies C. parvum e C. hominis são as mais prevalentes no Homem, sendo, também, as responsáveis por todos os surtos em que foi possível caracterizar os parasitas neles envolvidos [Fayer et al., 2000; McLauchlin et al., 2000; Lowery et al., 2002]. Contudo, a ideia inicial da existência de duas populações distintas de C.

parvum, envolvidas em diferentes ciclos de transmissão, constitui uma visão simplista da

epidemiologia da criptosporidiose. A descoberta de que outras espécies e genótipos de

Cryptosporidium podem, também, ser causa de infecção humana, veio demonstrar a

existência de ciclos de transmissão adicionais, envolvendo o que aparentam ser espécies e genótipos adaptados ao hospedeiro e cuja importância para a saúde pública não se encontra, ainda, completamente esclarecida (figura 7) [Thompson, 2003; Xiao e Ryan, 2004].

FIGURA 7– Representação esquemática dos ciclos de transmissão e reservatórios de infecção

das espécies e genótipos de Cryptosporidium, associados à criptosporidiose humana [adaptado de Thompson, 2003]