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CAPÍTULO III ÉTICA E DECISÃO EM FIM DE VIDA

2.1. A subjetividade das palavras

O cuidar da pessoa em fim de vida, é um cuidar multidisciplinar, de trabalho em simultâneo ou em sequência que tem como finalidade dar resposta às necessidades de cada doente em particular. Ao PS não basta ser competente, compassivo e bem preparado; é necessário que tenha também conhecimentos teórico-práticos especializados, capacidade para se expressar com clareza e sem espaço para dúvidas do que na realidade pretende e deseja realizar. A este profissional para além da humanidade e da compaixão, é exigida ”fundamentação(…) do seu agir profissional, a qual se não adquire senão pelo estudo e pela prática” (Osswald, 2013, p. 29).

No processo de cuidar, a cultura e a vulnerabilidade dos intervenientes, a imprecisão e o desconhecimento do significado da terminologia usada e a sensibilidade na interpretação de alguns termos, podem perturbar ou até mesmo distorcer a comunicação. Carneiro (2010), defende que, quanto maior é a carga emocional, maior é a probabilidade de ocorrer omissões e erros de interpretação no processo de comunicação; a imprecisão e a ambiguidade de termos, usados muitas vezes fora do contexto, pode ser fonte de conflito e divergência para os diferentes intervenientes.

Na verdade, não tão raras vezes, o doente e a família têm vontade de ouvir mensagens com conteúdo diferente das que lhe são comunicadas. Nesta circunstância, há com frequência um “deficit comunicativo que leva os familiares a criarem ou nutrirem esperanças não condizentes com a realidade prognóstica da doença “ (Silva [et al.], 2012, p. 699). Desta situação, emerge a importantíssima necessidade de uma comunicação explícita e clara, para não causar incompreensão e evitar o surgimento de equívocos.

Quantas vezes já ouvimos dizer: não vamos fazer mais nada a este doente! Não vamos de-escalar terapêutica, vamos não escalar! Este doente é DNR, mas temos que lhe colocar um cateter, vamos iniciar hemofiltração! Quanta confusão e quanta interrogação transparecem no olhar inseguro e duvidoso de quem ouve estas expressões e não sabe efetivamente o que elas querem dizer! A compreensão equivocada do conteúdo de uma

mensagem pode desencadear reações mais ou menos intensas, e dar origem a conflitos evitáveis. É na expressividade e clareza das palavras “que verbalizamos o objectivo de uma compreensão, num encontro que medeia a Natureza e o real” (Ferrão, 2008, p.296). Na verdade, é indiscutível e inegável a importância das palavras; é do maior interesse aferir e precisar termos para que os intervenientes entendam corretamente a mensagem, e a mesma chegue ao destinatário sem ser deturpada. Comunicar corretamente, com eficácia e clareza com terminologia precisa e significado claro e inequívoco, para que todos os membros da equipe usem a mesma terminologia e lhe atribuam o mesmo significado, é um dever profissional que minimiza o risco de interpretações incorretas. Parafraseando Alves (2003),

“ para que a comunicação (…) seja eficiente tem que ser clara e concisa, isto é, usar frases simples, curtas e concretas, falar lentamente e pronunciar claramente as palavras. O receptor deve perceber as ideias de quem comunica, este deve expressar apenas uma ideia e utilizar o vocabulário, o ritmo e o significado adequado a cada receptor” (p.64).

A 5ª Conferência de Consenso em Cuidados Intensivos, promovida pela Sociedade de Cuidados Intensivos Europeia e Norte Americana, evidencia a comunicação como sendo essencial e identifica como de intervenção prioritária a terminologia de conceitos:

“(…)the jurors identified numerous problems with end of life in the ICU including…the use of imprecise and insensitive terminology” (Carlet [et al.], 2004, p. 1).

Por este motivo e como advoga Carneiro (2010), é da maior importância aferir e precisar a terminologia usada na comunicação em cuidados intensivos, para que:

os interpretes se entendam corretamente – a complexidade no processo de comunicação é tanto maior, quanto maior é o número de intervenientes, a sua heterogeneidade e a sua proveniência, a sua diversidade formativa e a complexidade de assuntos;

cada um saiba o que lhe compete fazer – a boa prática depende da precisão com que se definem objetivos e estratégias para os atingir. A qualidade do desempenho está diretamente relacionada com a forma como esses objetivos e estratégias foram definidos e em função dos resultados ajusta-se e otimiza-se o processo; esta metodologia, tem implicita em si, a clareza e a precisão de conceitos, sob pena de induzir práticas incorretas (por imprecisão de objetivos) e de aceitar avaliações imprecisas (por indefinição de conceitos);

a mensagem chegue ao destinatário sem ser deturpada – o destinatário central das ações relacionadas com a saúde é o doente, a natureza dos assuntos a abordar é complexa, pessoal( a saúde de cada um) e social ( confronta direitos e deveres

de cidadania); o ato de comunicar e agir não se reduz aos profissionais, envolve a triade doente, familia e convivente.

Mas, em ambiente de cuidados intensivos, será na verdade pertinente fundamentar conceitos e precisar termos em fim de vida? A uniformização de conceitos, não será já uma prática de quem trabalha nestes serviços?

Em cuidados intensivos, as decisões em fim de vida, como podemos ver, são na sua essência intrincadas de uma particular complexidade, vividas com grande incerteza e emoção. Desta circunstância, emerge a probabilidade de imprecisar termos e confundir conceitos, o que por si só, é um elemento dificultador do processo de comunicação e do processo de decisão.

Não tão raras vezes, o PS, talvez com falta de formação especializada ou talvez com dificuldade em assumir tão cruel decisão, baboceia palavras soltas, que nada têm de claro e objetivo, com a esperança que os diferentes intervenientes comunguem do seu pensamento e interpretem na sombra da sua angústia o que as palavras realmente querem dizer. Parafraseando Tareco [et al.] (2013), em cuidados intensivos, “é necessário investir na forma de comunicar e (…) esclarecer termos (…)” (p. 25).

Beckstrand [et al.] (2009), questionou 1500 enfermeiros, membros da American Association of Critical Care Nurses, com o objetivo de identificar obstáculos e comportamentos favoráveis à prestação de cuidados em fim de vida; identificou como principal obstáculo, a falta de clareza dos médicos na comunicação e a indefinição de termos associados ao fim de vida. Pelo que o mesmo autor considera a formação nesta área de inigualável importância e recomenda que, “ educate and encourage physicians to communicate directly, in a more open manner with each other” (2009, p. 403).

Neste contexto, parecenos de facto pertinente, clarificar termos e conceitos de uso corrente em cuidados intensivos relacionados com o fim de vida, interligando-os com o seu fundamento e conceito:

 Obstinação: de acordo com o dicionário de lingua portuguesa da Porto Editora, é um termo que tem origem no latim « obstinatiõne». É definido como a “persistência no erro”.

A obstinação configura assim uma má prática profissional. Trata-se de uma atitude inútil persistente, que tem como consequência a “morte médicamente lenta e prolongada, acompanhada de sofrimento(…); com esta conduta, não se prolonga a vida propriamente dita, mas prolonga-se o processo de morrer” (Knopp de Carvalho [et al.], 2009, p. 2).

Na prática, reflete um investimento indeterminado no tratamento curativo, aliado a um sentimento de esperança de recuperação; contudo, nada mais é, que uma mera ilusão de que a cura é atingivel, mesmo sem se antever a sua real possibilidade; retrata

”uma luta desenfreada e (ir)racional , com vista à manutenção da vida a qualquer custo ou sob qualquer pretexto, muitas vezes com extremo sofrimento por parte do doente” (Batista [et al.], 2004, p. 33).

 Distanásia: no dicionário de lingua portuguesa da Porto Editora, o termo tem origem grega dys, «mal» + thanásia, « morte». É referido como um nome feminino, com o significado “morte dolorosa; agonia lenta”.

Neste entender, distanásia é a renúncia de um dever profissional de proporcionar uma boa morte; inclui na sua essência a obstinação em manter tratamentos injustificados e /ou excessivos, que prolongam o sofrimento e adiam a morte. ” Pode ser sinónimo de tratamento fútil e inútil que tem como consequência uma morte lenta e prolongada” (Côrte-Real, 2007, p. 24). É na verdade, uma perigosa tentativa de retardar a morte o máximo de tempo possivel numa pessoa cujo o fim é iminente e inevitável .

Na Europa é sinónimo de obstinação terapêutica ou encarniçamento terapêutico, nos Estados Unidos é sinónimo de futilidade médica ou tratamento fútil. Em qualquer um dos continentes, não previligia a dignidade da pessoa, na medida em que não oferece a oportunidade de ter uma boa morte.

Citando Silva [et al.] (2012), a distanásia é considerada “ a morte vagarosa, ansiosa e sofrida, decorrente de tratamentos inúteis ou fúteis, para manter o paciente vivo, por meio de medidas extraordinárias, geralmente caras, invasivas e tecnológicamente complexas” (p. 698); é sempre o resultado de uma ação ou intervenção que, “ao negar a dimensão da mortalidade humana, acaba absolutizando a dimensão biológica dos ser humano” (Kovács, 2003, p. 153).

 Fútil: no dicionário de lingua portuguesa da Porto Editora, tem origem no latim «futile»; é referido como um adjetivo de dois géneros, e o seu significado é explanado como:

 “ que tem pouco ou nenhum valor; insignificante; vão”

 “ que dá muita importância a coisas inúteis, superficiais ou sem valor; leviano; frivolo; pouco profundo”.

Para Carneiro (2010), em fim de vida e em cuidados intensivos, instituir ou suspender tratamentos/ procedimentos é uma atitude que se fundamenta no estado da arte atual, na legitimidade de quem prescreve e na intenção com que estes

assunto que exige avaliação criteriosa da sua indicação e da prescrição de cada procedimento.

 Futilidade: no dicionário de lingua portuguesa da Porto Editora, é uma palavra que tem origem no latim «futilitáte». É referida como um nome feminino e o seu significado é explicitado como:

 “ qualidade do que tem pouco ou nenhum valor”;

 “carácter de quem dá muita importância ao que é insignificante ou inútil; frivolidade; superficialidade”;

 “ coisa insignificante ou sem valor; bagatela”.

É de salientar que a admissão da maioria dos doentes em cuidados intensivos, tem inicio em situações de urgência ou emergência; a incerteza quanto à evolução do seu estado é uma realidade, que só com o evoluir do tempo é possivel ter clarividência da irreversibilidade da doença e da previsibilidade da morte. Na verdade, estes serviços são caraterizados por este dinamismo e por uma constante imprevisibilidade.

Todavia, os PS, que embora envolvidos pela imprevisibilidade são também contemplados pela racionalidade do seu conhecimento, conseguem perceber que em determinada circunstância há tratamentos com indicação e que há outros sem indicação. Contudo, os que em determinado momento estavam indicados, podem deixar de o estar, pelo que como refere Carneiro (2010) deverão ser suspensos. Para o mesmo autor, só faz sentido instituir tratamentos quando existe um objectivo identificado e justificado, com fundamento no estado da arte e prescrito por quem está autorizado a fazê-lo. O desrespeito desta indicação pode configurar uma situação de obstinação terapêutica e nos casos em que o resultado culmina no prolongamento do sofrimento e/ou práticas injustificadas pode assumir como já vimos carácter de distanásia.

Para Schemeiderman [et al.] (1990), futilidade é entendida como “ qualquer esforço para atingir um resultado possivel, mas que o raciocinio ou a experiência sugerem ser altamente improvável” (p. 949). É portanto, uma prática que contempla somente a “duração da vida e não a sua qualidade” (Kovacs, 2003, p. 156).

 Decisão de Não Reanimar (DNR) :

A decisão de não reanimar é segundo Carneiro (2010), o culminar de um processo ponderado e refletido da equipe de saúde, em que, a condição do do doente ou a evolução da doença que antecipam a morte como desfecho inevitável. É o resultado “ de uma constatação médica de ineficácia da sua aplicação. (…) a DNR é adequada a todos os doentes para os quais os cuidados de fim de vida foram o caminho acordado ” ( Sotto Mayor, 2012, p. 6).

A partir dos anos 80, a DNR é percebida como um direito do doente reinvindicar a sua auto-determinação em contraponto a uma inconsciência aparente dos profissionais de saúde para uma imortalidade tecnológicamente mediada.

Nesta circunstância, não iniciar nem tentar manobras de reanimação que possam ser entendidas como obstinação terapêutica é “ não causar dano ou prejuizo ao doente” (Vinagre, 2006, p. 1304); é um dever que cumpre a leges artis da profissão.

Reanimar, de acordo com o dicionário de lingua portuguesa (da Porto Editora), é um termo de origem grega « re+animar». É referido como “ restabelecer as funções vitais que se encontram momentaneamente em risco de; restituir à vida “. Deste modo, está indicado instituir manobras de reanimação cardio-respiratória, ”quando estas forem realmente beneficiar o paciente, não sendo enquadradas como um tratamento fútil” (Vinagre, 2006, p.1305).

Carneiro (2010), defende que, a decisão de não iniciar e/ou suspender procedimentos, deve ser o resultado de um processo de decisão bem fundamentado pelos diferentes profissionais de saúde, tornando-se indispensável o seu registo. Como se depreende do exposto, esta situação é apenas aplicavel a situações de reanimação cardio-respiratória e não implica decisões sobre nernhum outro tratamento ou procedimento em curso ou a instituir.

 Suspensão – de acordo com o dicionário de língua portuguesa da Porto Editora, é um termo com origem no latim « suspensiõne» de nome feminino. É definido como “ato ou efeito de suspender(-se)”.

Para Saraiva (2005), a decisão para suspender tratamentos em cuidados intensivos, deve basear-se em principios éticos como a autonomia (o direito do doente decidir sobre o tratamento que se pretende instituir); a beneficiência (o tratamento/ procedimento deve concretizar um bem para o doente); a não maleficiência ( o tratamento/procedimento não deve de forma intensional provocar mal ao doente); e a justiça distributiva (deve ser usada racionallidade no uso de recursos, proporcionando equidade no seu acesso). Em defesa desta obrigação, os profissionais de saúde devem ser capazes de avaliar criteriosamente a situação em cada momento e ao invés de insistir em medidas agressivas e inuteis, devem ponderar não iniciar/abster-se de novos procedimentos, ou até mesmo, suspender tratamentos desproporcionados e futeis, sempre que seja evidente a inevitabilidade da morte.

Para Nunes (2008), em termos práticos, e em particular no fim de vida, não há evidencia de importantes diferenças entre a suspensão (withdraw) e a abstenção (withhold) de

tratamentos; Contudo o que está em causa é somente “uma adequação do esforço terapêutico à real necessidade do doente” (p. 2).

Parafraseando Serrão (1998), abster-se de terapêuticas inúteis, é

“ não iniciar ou interromper um tratamento que segundo a melhor ciência médica, é terapeuticamente inútil, por não produzir nenhum efeito benéfico ou por causar um sofrimento desproporcionado em relação aos pequenos e transitórios beneficios esperados” (p. 89).

Desta forma, e segundo os critérios das leges artis, o profissional de saúde, age corretamente e não pratica um ato, éticamente condenável.

Do exposto, fica a consciência e a concordância com o pensar de Carneiro (2010) de que, quando os conceitos e os termos utilizados para traduzir o que se pretende, não são corretos, a ação que deles decorre, seguramente também não será correta. A precisão de termos e conceitos não é de todo um exercício de estilo linguístico, é sim, um pressuposto da boa prática. Parafraseando Ferrão, “(…) as palavras não são somente um dos meios de expressão mais utilizados como também são um dos mais perfeitos, por isso, temos tendência a identificar a pessoa como um ser de verbalização (…)”(Ferrão, 2008, p. 296).

Do exposto, em cuidados intensivos, é necessário que os profissionais se questionem sobre as relações e as intersubjetividades construídas a favor do desenvolvimento da autonomia.