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Proferido nos anos 1954-1955, intitulado O Eu na teoria de Freud e na técnica

da Psicanálise∗, o Seminário II, constitui um momento ímpar em que Lacan (1992a) estabelece as diferenças entre eu e sujeito, bem como delimita de que intersubjetividade (mediação simbólica) se trata na Psicanálise. Entretanto, nossa atenção aqui vai ser dada ao conceito de Real, embora não perdendo de vista também a concepção de experiência psicanalítica que está em jogo nesse momento de elaboração da teoria lacaniana. Assim, logo no primeiro capítulo intitulado Os esquemas freudianos do aparelho psíquico, na sessão

Introdução ao entwurf, Lacan (1992a, p. 127) afirma que "as relações psicossomáticas estão

no nível do real". A fim de melhor entendermos essa afirmativa, é preciso avançar mais em seu texto. Observaremos que Lacan afirmará categoricamente que só se tem acesso ao Real via o Simbólico e que, numa análise, é disso que se trata, pois o Real é sem fissura:

"Lembrem-se do seguinte a respeito da exterioridade e da interioridade - esta distinção não tem nenhum sentido no nível do real. O real é sem fissura. O que lhes ensino, e aí Freud converge com o que podemos chamar de filosofia da ciência, é que este real, para apreendê-lo, não temos outros meios - em todos os planos, e não somente no conhecimento - a não ser por intermédio do simbólico. O real é absolutamente sem fissura" (p. 129).

Lacan está criticando, assim, toda ciência que supostamente aborda o real, sem levar em conta o simbólico, mas é a um simbolismo que, sem saber, elas acabam se dirigindo:

“Elas o projetam no real, elas se imaginam que são os elementos do real que entram em linha de conta. Mas é simplesmente o simbolismo que elas fazem funcionar no real, não a título de projeção, nem de quadro de pensamento, mas a título de instrumento de investigação. O real é sem fissura. E neste estado hipotético de auto- encerramento que na teoria freudiana supõe-se ser o estado do sujeito logo no início, o que pode querer dizer - o sujeito é tudo?" (p. 129).

Talvez, possamos afirmar que essa dicotomia entre sujeito e Real não dissolverá ao longo do pensamento de Lacan. Mas, por outro lado, há um circuito simbólico no qual o sujeito está inserido. Ou seja, o simbólico determina o sujeito, sendo exterior a ele, pelo menos até o final desses anos 1950. Lacan expressa afirmando o quanto é caro ao campo analítico um simbolismo: "Disse-lhes da última vez que um simbolismo é essencial a todas as manifestações mais fundamentais do campo analítico, e nomeadamente à repetição, e que nos é preciso concebê-la como ligada a um processo circular do intercâmbio da fala” (p. 129).

Dessa maneira, fica totalmente descartada a possibilidade na Psicanálise, sob a ótica de Lacan, pelo menos nessa época de elaboração de seu pensamento, de uma relação do sujeito com o objeto que não passe pelo simbólico, pois a repetição, enquanto do campo do Simbólico, tem a função de estruturar o mundo. E o ponto da relação do sujeito com o simbólico vai ser buscado por Lacan lá onde Freud, nos sonhos, denominou de umbigo do sonho. É importante ressaltar que na medida em que Lacan dá primazia ao registro do Real em detrimento dos demais esse “ponto não apreensível” terá um outro status, a saber como sendo da ordem do Real. Mas, neste Seminário II, é o simbólico que está em evidência. E o Real? O que vai nos dar o modelo que fornece a medida do Real, afirma Lacan, é a soma dos acidentes, dos acontecimentos que sobrevieram na vida do indivíduo. Assim, nos parece que o que é fatual é da ordem do real enquanto o que é de direito é da ordem do simbólico. É o que se sucede com o desejo:

"O que é o desejo a partir do momento em que ele é mola da alucinação, da ilusão, de uma satisfação que é, portanto, o contrário de uma satisfação? Se dermos ao termo de desejo uma definição funcional, se ele for para nós a tensão posta em jogo por um ciclo de realização comportamental seja lá qual for, se o inscrevermos num ciclo biológico, o desejo vai dar na satisfação real. Se ele vai dar numa satisfação alucinatória, é que, então, existe aí um outro registro. O desejo se satisfaz alhures e não numa satisfação efetiva. Ele é a fonte, a introdução fundamental da fantasia como tal" (LACAN, 1992a, p. 267).

Aqui, confrontaremos a versão brasileira deste Seminário II, com a versão francesa intitulada Le moi dans la

théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, texte établi par Jacques-Alain Miller. Éditions du Seuil, 1978.

Aqui, então, há nitidamente uma diferenciação entre o desejo como mola da alucinação e o desejo inscrito num ciclo biológico. Estaria Lacan, dessa maneira, aproximando o Real do que é da ordem do biológico? De qualquer maneira, o que é da ordem do Real vai se distinguindo do que é da ordem do Simbólico. Isso é mais evidente ainda se se leva em conta a idéia de que o que uma análise opera é de outra ordem que não a do Real. Que ordem, então, é essa? Segundo Lacan, é a ordem da intersubjetividade, ordem simbólica. É nela que se situa a experiência psicanalítica. Mesmo que mais tarde em seu ensino, Lacan coloque o Real em primeiro plano, com certeza não será esse real das psicologias, “tão simples quanto estes limites das capacidades individuais” (p. 274). Isso fica mais nítido ainda quando Lacan vai se referir ao drama humano, “drama de cada um”, como sendo da ordem do Simbólico e não da ordem do Real.

Segundo Zizek (1991), nos anos setenta, Lacan introduz a diferença real/realidade e enfatiza o Real como impossível (cf. p. 70-71). Mas, de acordo ainda com esse autor, e que nos é bastante surpreendente, “esse real impossível está em ação antecipadamente, articulado em termos diferentes, já em numerosas passagens do Lacan dos anos cinqüenta” (p. 71). Zizek (1991) cita, assim, como exemplo uma passagem desse Seminário II, que ora estamos considerando:

“Édipo em sua própria vida é todo esse mito. Ele mesmo não é outra coisa senão a passagem do mito à existência. Que tenha existido ou não, pouco importa, já que, de uma forma mais ou menos reflexa, existe em cada um de nós, e existe bem mais do que se tivesse existido. Podemos dizer que uma coisa existe ou não existe realmente. Ao contrário, fiquei surpreso ao ver, a propósito da análise típica, um de nossos colegas opor o termo realidade psíquica a realidade verdadeira. Creio que, apesar disso, coloquei todos vocês num estado de sugestão suficiente para que esse termo lhes pareça uma contradição in adjecto. Se uma coisa existe realmente ou não, tem pouca importância. Ela pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo, mesmo que não exista realmente. Toda existência tem por definição algo de tão improvável que, de fato, estamos perpetuamente a nos interrogar sobre sua realidade” (LACAN, 1978, p. 268 apud ZIZEK, 1991, p. 71, grifos do autor).

Zizek (1991, p. 71), a respeito dessa afirmativa comenta:

“Em certo sentido, ‘já está tudo aí’: a diferença entre a realidade (o que ‘existe realmente’) e o real (o ‘mito’ fantasístico, o qual pouco importa que exista realmente ou não); a disjunção entre a ordem da verdade e a do real (o que faz com que a expressão ‘a realidade verdadeira’ seja uma contradição in adjecto); a determinação do real como impossível (o caráter ‘improvável’ de cada existência) etc”.

Considera ainda Zizek (1991, p. 71) que “o trauma nos fornece o caso exemplar desse real, o qual ‘pouco importa que realmente existia ou não’: o que importa é unicamente o fato de que ele exerce sua eficácia, de que funciona como um ponto que tem que ser construído, para que possamos dar conta do estado atual das coisas”.

Voltando ao texto do Seminário II, diante da indagação de Lefèbvre-Pontalis, que menciona a preocupação de Lacan em estar concebendo o real como algo da ordem do incômodo, ele responde que se trata de outra coisa, justificando então o sentido em que vem dando ao distinguir os três registros, o Simbólico, o Imaginário e o Real:

"Esta mesa, não me incomoda não poder erguê-la, ela me força a fazer um rodeio, é evidente mas não me incomodo de fazer um rodeio - não creio que seja este o sentido do que lhes ensino quando distingo o simbólico, o imaginário e o real" (p. 275).

Momento crucial de seu seminário, pelo menos para nós, visto que é nesse contexto que Lacan afirma que o sujeito só existe na medida em que surge o símbolo, momento diferente do Real:

"A parte essencial da experiência humana, aquela que é propriamente falando experiência do sujeito, aquela que faz com que o sujeito exista, situa-se no nível em que o símbolo surge. Para empregar um termo que tem ressonância na formação do pensamento científico, ressonâncias baconianas, as tábuas de presença - nunca se pensa nisto - supõem que surja uma dimensão totalmente diferente da do real. O que vocês conotam como presença, vocês o colocam sobre o pano de fundo de sua existência passiva" (p. 275).

Dessa maneira, não podemos perder de vista que é ao sujeito que Lacan (1992a, p. 276) já está se referindo, no sentido de que este não é tão passivo assim. E o campo da determinação do sujeito é outro diferente do da ordem do Real:

"Está totalmente fora de cogitação dizer que o real não existia antes. Mas dele nada surge que seja eficaz no campo do sujeito. O sujeito, na medida em que existe, em que se mantém na existência, em que coloca a questão de sua existência, o sujeito com que vocês dialogam na análise e que saram pela arte da fala, sua realidade essencial fica na junção da realidade e do aparecimento das tábuas de presença. Isto não quer dizer que seja ele quem cria todas elas. O que me mato em lhes dizer é que, justamente, elas já estão feitas. O jogo já está jogado, os dados já foram lançados, com a seguinte ressalva, podemos retomá-los em mão, e lançá-los mais, ainda".

Está explicitamente enfatizada por Lacan a idéia de que o símbolo, o jogo, advém antes mesmo do sujeito, embora caiba a este também certa atividade. Não se pode deixar de salientar que desde muito tempo os dados já foram lançados, portanto, a partida já começou. Mas, diante da insatisfação de Lefèbvre-Pontalis, com a resposta dada por Lacan a respeito do que seja o real, este (1992a, p. 276-277) acrescenta o seguinte comentário:

"Encontrei, para uso de vocês, um edito de 1277, curiosíssimo. Nestas épocas de trevas e de fé, era forçoso reprimir que, nos bancos da escola, na Sorbonne e em outros lugares, blasfemavam abertamente durante a missa o nome de Jesus e de Maria. Vocês não fazem mais isso - isto não lhes passaria mais pela idéia, de blasfemar os nomes de Jesus e de Maria. Quanto a mim, conheci pessoas altamente surrealistas que antes se teriam feito enforcar do que publicar um poema blasfematório contra a Virgem, porque pensavam que apesar de tudo poderiam acontecer-lhes alguma coisa. Os castigos mais severos eram editados contra aqueles que jogavam dados em cima do altar durante o santo-sacrifício. Estas coisas me parecem sugerir a existência de uma dimensão de eficácia que singularmente faz falta em nossa época. Não é por nada que lhes falo de dados e lhes faço jogar o jogo do par ou ímpar. Sem dúvida alguma há um certo escândalo em meter um jogo de dados em cima da mesa do altar, e ainda mais durante o santo-sacrifício. Porém, creio que o fato de isto ser possível nos restitui a idéia de uma capacidade muito mais obliterada do que se crê no meio ambiente do qual participamos. É o que meramente se chama de uma possibilidade crítica".

Lacan se esforça a fim de elucidar o que se entende por Real, nessa época. O Real a que ele se refere não é da ordem do incômodo tal como pode ser uma mesa, colocada à

nossa frente e levando-nos a fazer um rodeio, bem como não se trata de transposição de normas apenas.

Avançando mais nesse seminário sobre O Eu na teoria de Freud e na técnica

da Psicanálise, passemos a considerar o importante capítulo XVIII que se intitula O desejo, a vida e a morte, onde Lacan (1992a, p. 280) procurará elucidar melhor a idéia de que a

experiência freudiana parte da noção de desejo:

"A experiência freudiana parte de uma noção diametralmente contrária à perspectiva teórica. Ela começa por estabelecer um mundo do desejo. Ela o estabelece antes de toda e qualquer espécie de experiência, antes de qualquer consideração sobre o mundo das aparências e o mundo das essências. O desejo é instituído no interior do mundo freudiano onde nossa experiência se desenrola, ele o constitui, e isto não pode ser apagado em instante algum do mais mínimo manejo de nossa experiência".

Está contida, nessa afirmativa de Lacan, a idéia de que a Psicanálise considera o universo do desejo, pois, é nele que se opera a análise. E, agindo assim, é o ser que ela deixa de lado, isto é, aquele concebido pela tradição filosófica:

"Na perspectiva clássica, teórica, há entre sujeito e objeto, co-nascimento, co- nascimento - jogo de palavras que conserva todo seu valor, pois a teoria do conhecimento está no âmago de qualquer elaboração da relação do homem com seu mundo. O sujeito tem de adequar-se com a coisa numa relação de ser com ser - relação de um ser subjetivo, porém bem real, de um ser que sabe que ele é, com um ser que se sabe que é" (LACAN, 1992a, p. 280).

Para a Psicanálise, segundo Lacan, entretanto, não há uma relação de ser a ser. Enquanto aquele que existe, o que o homem não é, é um ser. Lacan estabelece uma diferenciação entre a proposta clássica, teórica, da teoria do conhecimento e a proposta freudiana que concebe o sujeito não como ser, como o que é, mas como aquele que falta, existe, por isso a ênfase no desejo: "O desejo é uma relação de ser com falta. Esta falta é falta de ser, propriamente falando. Não é falta disto ou daquilo, porém falta de ser através do que o ser existe" (p. 280). Nesse contexto, Lacan (1992a, p. 281) identifica a libido, termo caro a

Freud, como a que dá ânimo ao conflito que se dá no âmago da ação humana, ou seja, o desejo é da ordem dessa libido:

"Esta falta acha-se para além de tudo aquilo que possa apresentá-la. Ela nunca é apresentada senão como um reflexo num véu. A libido - porém, não mais em seu emprego teórico de quantidade quantitativa - fica sendo o nome daquilo que anima o conflito fundamental que se acha no âmago da ação humana".

E nesse âmago espera-se que, segundo Lacan - e aqui se estabelece a idéia lacaniana de que o desejo humano é desejo de ser reconhecido antes de qualquer coisa e impossível de ser nomeado – que “as coisas estejam aí, sólidas, estabelecidas, à espera de serem reconhecidas, e que o conflito esteja à margem” (p. 281). Mas, se de um lado, não se pode nomear o desejo humano; por outro, é possível dizer, em termos, quando ele surge. Ele surge com o Simbólico. Entretanto, embora nos pareça um tanto contraditório, Lacan (1992a, p. 294-295) vai afirmar que não se trata do desejo humano, na medida em que “o homem que joga com o dado é cativo do desejo assim posto em jogo. Ele não sabe a origem de seu desejo, a rolar com o símbolo escrito nas seis faces”. Lacan ratifica a idéia de que na estrutura do desejo humano o que se tem é o fato de ser reconhecido pelo outro, isto é, o desejo humano é desejo do outro, bem como a idéia de que é impossível ao homem saber da origem de seu desejo. Assim, será no próximo capítulo que se trata da introdução ao grande Outro que Lacan elaborará o esquema L, em que se estabelece para além da relação entre o “eu” (moi) e o “outro” (a) - referindo ao autre em francês - relação imaginária por excelência, uma relação entre o “S” sujeito e o grande Outro, grafado por “A”, maiúsculo. Vemos que, nesse seminário II, a experiência psicanalítica é da ordem do simbólico:

“O ponto decisivo da experiência freudiana poderia resumir-se no seguinte – lembremo-nos que a consciência não é universal. A experiência moderna despertou de uma longa fascinação pela propriedade da consciência, e considera a existência do homem na estrutura que lhe é própria, que é a estrutura do desejo. Eis o único ponto a partir do qual se pode explicar que haja homens. Não homens enquanto

rebanho, porém homens que falam, com esta fala que introduz no mundo algo que pesa tanto quanto o real todo” (LACAN, 1992a, p. 283).

Assim, o que constitui, determina o sujeito é o Simbólico, porém, há o Real. Nesse sentido, no próximo item, iremos nos ater à concepção de significante, enfatizada por Lacan no Seminário III. Nesse Seminário, veremos Lacan concebendo o Real como as estrelas que volta sempre ao mesmo lugar, que, de acordo com Miller (1999), foi a primeira metáfora de Lacan sobre o Real.

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