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superficial, de cada palavra sua, de cada um dos seus passos, de cada sinal de vida.” 645 Parece contraditório o que aqui diz sobre a profundidade/superficialidade em relação ao habitual

elogio do superficial contra o profundo.

646

Julgamos que neste caso se trata de outro tipo de

profundidade/superficialidade: não o do idealismo metafísico vs. materialismo vitalista, mas o

da veracidade complexa vs. mistificação vulgar. Isso mesmo está patente no §230 da mesma

obra:

dar-se a conhecer” (percebe-se a tensão contraditória em relação ao seu desejo anterior de se manter no anonimato relativo), visto que a desproporção entre a sua grandeza e a pequenez dos seus contemporâneos o tornaram totalmente desconhecido ou, pior ainda, mal conhecido. Em HH I, §157, já havia alertado para o fracasso do génio quando se eleva a níveis inatingíveis pela maioria.

642 KSA 8, 321: “Ich unterscheide g r o s s e Schriftsteller, nämlich sprachbildende – solche, unter deren

Behandlung die Sprache noch lebt oder wieder auflebt – und c l a s s i s c h e Schriftsteller. Letztere werden classisch in Hinsicht auf ihre Nachahmbarkeit und Vorbildlichkeit genannt, während die grossen Schriftsteller nicht nachzuahmen sind.”

643 Num NF de 1886/87, 7[66], avança com uma tipologia dos seus leitores niilistas: 1) aqueles que não o

compreendem; 2) literatos que traficam opiniões; 3) mulheres (sabemos que Nietzsche mostra tendências misóginas); 4) os pequenos heróis, esforçados, que aspiram a alguma nobreza (os mais criticados).

644 Nietzsche Philosophie, cit., p. 10 e 12, respectivamente.

645 KSA 5, 58: “Jeder tiefe Geist braucht eine Maske: mehr noch, um jeden tiefen Geist wächst fortwährend

eine Maske, Dank der beständig falschen, nämlich f l a c h e n Auslegung jedes Wortes, jedes Schrittes, jedes Lebens-Zeichens, das er giebt.”

Em ZA II, “Von der Menschen-Klugheit”, termina dizendo que a sua “última prudência humana” é desconhecer e tornar-se desconhecido, como? Indo mascarado para o meio dos homens.

646 O entendimento da profundidade/superficialidade não é linear, na FW há um conjunto de § que revelam

isso mesmo. Aconselhamos o 158 (achar que todas as coisas são profundas é uma má qualidade, obriga-nos a um esforço escusado e a encontrar mais do que lá está); 173 (quem é profundo luta por ser claro. Quem pretende parecer profundo aos olhos da multidão luta pela obscuridade); 189 (um pensador deve tornar as coisas mais simples e leves do que elas são); 256 (todo o homem de profundidade encontra prazer em viver na epiderme).

Esta vontade das aparências, da simplificação, da máscara, do encobrimento, em resumo, da superfície

– pois toda a superfície é um encobrimento –, opõe-se àquela sublime tendência que é própria do homem que conhece, que toma e quer tomar as coisas em profundidade, das mais variadas maneiras, pela raiz647

Uma ética das relações sociais, onde se inclui a de uma recepção, deve, pois, impor o

respeito pela máscara. Como escreve no §270 de JGB, a “humanidade mais subtil”

compreende a máscara e evita retirá-la a golpes de psicologia e de curiosidade. Mas se é

verdade que JGB contém a maior parte da sua teoria da mascarada, entrelaçada com a

desvalorização da transparência e do conhecimento absoluto, por evidente impossibilidade

epistemológica tanto quanto por uma ética do enigmático, i.e., a valorização do desconhecido

e do ambíguo, talvez devamos ainda assim destacar uma nota de 1882 que, no nosso ponto de

vista, sintetiza perfeitamente a grande linha de sentido que atribuiu à máscara: “Toda a acção

será mal compreendida. É preciso, pois, pôr a máscara para não ser continuamente

crucificado. Igualmente para seduzir...”

648

Proteger-se das más interpretações e cativar, eis a

razão porque se deve usar máscaras. Se esta tese não traduz todas as nuances do pensamento

nietzscheano, é porque nele, como acabamos aliás de ver, há complexidade e fragmentos

indecifráveis.

No que citámos, está ainda a vontade de ser compreendido, sê-lo “como deve ser”.

Mas isso mistura-se, sobretudo em JGB, com afirmações onde mostra claramente que prefere

a incompreensão, retirando-se dos jogos interpretativos. Este niilismo hermenêutico pode ser,

no entanto, um apontamento discursivo catalisador de uma redobrada perseverança

hermenêutica, desafio selectivo que tocaria apenas nas teclas dos intérpretes mais engenhosos

(no §27 de JGB pergunta, retoricamente, se não faz tudo o que está ao seu alcance para se

tornar dificilmente inteligível). Mas pode também ser um sinal de que temia ser treslido ou

647 KSA 5, 168: “D i e s e m Willen zum Schein, zur Vereinfachung, zur Maske, zum Mantel, kurz zur

Oberfläche – denn jede Oberfläche ist ein Mantel – wirkt jener sublime Hang des Erkennenden e n t g e g e n , der die Dinge tief, vielfach, gründlich nimmt und nehmen w i l l ”.

Alexander Nehamas descreve como Nietzsche faz da distinção entre aparência e realidade também uma questão psicológica, a dicotomia não passa de uma projecção no mundo da crença humana de que o “eu é uma substância.” (Cf. Nietzsche, Life as Literature, cit., p. 171)

648 NF 1882, 1[20]; KSA 10, 13: “J e d e Handlung wird mißverstanden. Und man muß, um n i c h t

fortwährend gekreuzt zu werden, seine M a s k e haben. Auch um zu v e r f ü h r e n ...”

Pierre Klossowski coloca a máscara na intersecção da dissolução das formas nietzscheanas e na maneira de constituir traços, ainda que ténues, de figuração da sua própria fortuitidade. Em geral, a máscara impõe a volatilidade de qualquer identidade, por trás da máscara está o Caos, a riqueza do Caos. Por isso, nos alerta para o lugar onde as emoções, primeiras, não mediatizadas ainda, vivem. Se soubermos depor a máscara ou se nos souberem tirar a máscara – também pode haver acordos –, é possível revelar-se uma autenticidade sem imagens nem conceitos. Superando um pouco esta fenomenologia da máscara, Klossowski pensa Nietzsche à procura de delimitações à sua consciência do fortuito. Nietzsche sabe-se obra do acaso, é isso que a sua psico-antropologia da vontade de potência lhe revela. Assim, as diferentes formas que tem de se mascarar, nomeadamente a autobiográfica, são maneiras de dissolver as figurações que os intérpretes fizeram dele, ao mesmo tempo que se reconstitui um pouco acima da pura fortuitidade. O “verdadeiro Nietzsche” está além de EH, e.g. Mas esse “além”, que seria a supressão das máscaras, é uma economia emocional ininteligível. Por isso se deixa, quer, constituir numa falsidade menos falsa do que as heterobiografias, usando essa máscara que, por acaso, será a última. (Cf. Nietzsche et le cercle vicieux, cit., p. 323)

lido por oportunistas. Mais uma vez reconhecemo-nos incapazes de aceder à intenção