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Técnica e Tecnologia: amplificadores culturais de controle da experiência

Estando no início do século XXI, tempo em que o universo tecnológico digital e as interfaces são cada vez mais numerosas e complexas, homem e máquina são levados a dialogar e estão se tornando – se é que já não se tornaram – interdependentes. Crianças cada vez mais cedo são instadas a se envolverem no universo digital.

É certo que a tecnologia responde a necessidades, como a de facilitar o contato entre indivíduos, reduzindo distancias geográficas e desperdício de tempo, por meio de dispositivos de comunicação em rede e outros. Levanta-se então, outra questão qual seja de que forma a tecnologia permite a redução de distancias de outras naturezas, como por exemplo: sociais; interpessoais, psicológicas, enfim subjetivas?

Vive-se em um momento de profundas mudanças, todavia, grandes transformações são geralmente acompanhadas de muitos temores e ondas de nostalgia. Consequentemente as inovações tecnológicas promovem críticas divergentes que vão desde a aceitação imediata sem uma reflexão prévia à excessiva rejeição, no entanto, acredita-se que, como afirma o filósofo e educador Paulo Freire (2002, p.34), que não se deve nem “[...] divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência [...]”.

Em um texto famoso a respeito dos estudos da cultura de massas, o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco distinguiu os teóricos desta área em dois tipos básicos (e, por isso, extremos): os apocalípticos e os integrados. Uns viam nos meios de comunicação de massa e na indústria cultural uma série ameaça ao homem, sintomas e causadores de uma decadência da arte e das relações sociais. Os outros, em contraposição, encontravam ali canais para uma superação dos limites até então castradores e ferramentas ideais para as sociedades democráticas.

Tais perspectivas reaparecem insistentemente, quando o que está em discussão é a tecnologia, seus dispositivos e a forma como os hábitos do mundo "civilizado" a ela se

moldaram e embora as características da atual sociedade tecnológica sejam únicas e um tanto quanto recentes, elas começaram a ser desenhadas há muito tempo. Para que se entenda a situação atual considera-se necessário compreender, minimamente, o contexto histórico e cultural no qual se desenvolveram os atuais recursos tecnológicos. Embora as características da atual sociedade tecnológica sejam únicas e um tanto quanto recentes, elas começaram a ser desenhadas há muito tempo.

Com efeito, durante uma grande parte da história, a humanidade dispunha apenas de recursos técnicos muito modestos, apesar de corresponderem a invenções altamente engenhosas para a época. Porém, as raízes do mundo tecnológico que vivenciamos hoje podem ser encontradas no Renascimento, movimento histórico e cultural que durou do século XIV ao século XVI e que significou uma grande ruptura com o mundo da Idade Média. Para o que nos interessa aqui, é importante saber que o Renascimento promoveu um processo que o sociólogo alemão Max Weber chamou de “desencantamento do mundo”.

Durante a Idade Média, o mundo era considerado sagrado, pois fora criado por Deus. Ora, se o mundo era sagrado e trazia em si o mistério de Deus, não caberia ao homem interferir no mundo, pesquisando-o para conhecer tal mistério. Para as pessoas daquela época, o dogma cristão era inquestionável: bastava saber que o mundo havia sido criado por Deus, cabendo ao homem tomar conta dessa obra divina.

Entretanto, tal explicação não era satisfatória para alguns da época. Conhecer e acreditar não eram necessariamente inconciliáveis. O desejo de compreender o “funcionamento” das coisas se fez imperioso, a visão “teocêntrica” do mundo foi substituída pela racionalidade instrumental na qual Deus perde sua centralidade, dando origem ao conhecimento cientifica do mundo. (SEVERIANO, 2003, p.300).

Foi esse momento de “desencantamento do mundo” que permitiu a criação do método científico moderno, após séculos de conflituosos debates filosóficos. Caminhando-se um pouco mais na História, encontramos aquele que podemos identificar como o segundo grande momento da formação da sociedade tecnológica, a Revolução Industrial, que aconteceu primeiro na Inglaterra, em fins do século XVIII, e que depois se alastraria por toda a Europa. A Revolução Industrial pode ser compreendida com a realização das possibilidades tecnológicas, com o Renascimento e com o método científico.

Entretanto, socialmente, a Revolução Industrial significou a automatização do trabalho humano, isto é, a força física que o homem despendia no trabalho foi substituída pela energia da máquina, movida pelo vapor e, depois, pela eletricidade. O impacto disto sobre as relações sociais do trabalho foi bastante significativo, passando a alimentar o sonho de que as

pessoas poderiam servidas pela técnica, ter muito mais tempo livre, pois, com as máquinas, a produtividade do trabalho aumentava incrivelmente. Infelizmente, hoje, sabemos que isso não aconteceu bem assim, pois a lógica do capital, baseada na extração de mais-valia sempre crescente e no lucro como fim em si mesmo levou a muito mais trabalho, a uma produção cada vez maior.30

Com a Revolução Industrial, o operário começou a trabalhar junto com a máquina, sendo a velocidade do trabalho não mais definida pelo homem, mas pela técnica. O tempo humano, marcado pelos ritmos biológicos, é substituído pelo “tempo da máquina”, marcado pelos ponteiros do relógio. A pessoa já não dorme quando sente e acorda quando já não sente sono, mas, sim, numa hora que lhe permite começar o trabalho no momento definido pela fábrica. Não come quando sente fome, mas no horário determinado como o do “almoço”. Não para de trabalhar quando já está cansada, mas apenas no final de seu expediente. Assim, homem e máquina passam a compartilhar do mesmo ritmo.

O terceiro e mais recente aspecto da formação da sociedade tecnológica é o que podemos chamar de informatização da sociedade, que aconteceu a partir da metade do século passado, com a invenção do computador. Hoje o tempo e a capacidade de processamento dessa máquina se aceleraram quase ao infinito, causando admiração e encantamento para muitos.

Do ponto de vista de Adorno e Horkheimer (1985) – teóricos da Escola de Frankfurt, a técnica, que é a essência do saber, que possibilita o domínio da natureza, não deve ser pensada de uma maneira universal e descontextualizada, mas deve ser refletida à luz do próprio sistema que a produziu. Assim, ela é

[...] tão democrática quanto o sistema econômico com o qual se desenvolve. A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital”.(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).

Cabe esclarecer que a opção pelos autores frankfurteanos, neste tópico, é definitivamente proposital31 já que a mesma defende que o modelo técnico-científico,

30 Essa discussão sobre tecnologia na revolução industrial foi intensificada no âmbito da Escola de Frankfurt, em

especial por Marcuse (1982) o qual ressalta a dimensão da razão instrumental, também por Adorno e Horkheimer (1991) que afirmaram que a racionalidade da técnica é ela própria, uma forma de dominação.

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Sendo a Teoria Crítica uma abordagem considerada predominantemente negativista quanto ao uso e desenvolvimento da tecnologia, esta funciona como uma lente que corrige ( ou pelo menos foca) minha visão muitas vezes míope. Imersa no mundo tecnológico desde muito cedo e passando a maior parte do dia conectada e usando equipamentos eletrônicos, a Teórica Crítica me alerta e traz contrapontos para uma maneira agir predominantemente tecnicista.

enquanto essência do saber orienta a relação do homem com a natureza e, consequentemente, com os outros homens. De posse deste saber, o homem finalmente teria condições de dominar a natureza. No entanto, como o próprio saber é incapaz de refletir sobre si mesmo, ou seja, um saber metódico, que expulsa o pensamento dos seus procedimentos, finda por tornar-se alienante e regressivo, abdicando de sua característica principal: a reflexividade. Como sugeriu Cohn (1998, p.13), “Se o esclarecimento não incorpora em si a reflexão sobre esse momento regressivo, então ele sela seu próprio destino. Trata-se de levar essa razão a sério, nas suas promessas e limites”.

Como resultado tem-se que a ciência e a técnica, incapazes de serem pensadas em seus fins últimos (felicidade humana e apascentamento do medo ante a natureza indomada) findam por se tornarem um novo mito; distanciadas do mundo de vida dos homens e de suas preocupações mais cotidianas. As decisões sobre suas aplicações, comandos e estratégias passam a ser privilégio absoluto de alguns expertos, além do fato da tecnologia contemporânea, à semelhança dos deuses da mitologia antiga, passar a designar, em muitos casos, o destino dos homens, seja objetivamente, seja subjetivamente, por meio da produção de desejos e fantasias.

Laymeart Garcia dos Santos, autor de Politizar as Novas Tecnologias (2003) problematiza a tecnologia em suas relações com o ambiente, com a sociedade, com a arte e com o futuro humano e afirma que:

[...] a potencia das máquinas se exerce em todas as dimensões da vida de um modo mais extenso e intenso do que poderíamos imaginar – seus efeitos colaterais, seus riscos, seus acidentes, então em toda parte. Sentimos que nossa experiência é crescentemente mediada por elas por elas e que o ritmo de nossa existência é cada vez mais modelada pela aceleração tecnológica. [...]Ninguém fica de fora, nem mesmo quem é excluído do processo por não querer ou poder participar. E, no entanto em nossas relações Com a tecnologia parece ainda prevalecer uma grande ingenuidade: como se ainda fosse possível considerá-la uma grande ingenuidade: como se ainda fosse possível considerá-la apenas quando ela nos serve! (SANTOS, 2003, p.10)

De acordo com o pensamento de Marcuse (1982), também teórico da Escola de Frankfurt, a tecnologia, que possibilitaria a diversidade e a pluralidade, contribuiu para que a dominação tendesse a perder o seu caráter explorador e opressor, tornando-se "racional", sem que por isso se desvanecesse a dominação política. Ou seja, a racionalidade da dominação mede-se pela manutenção de um sistema que pode se permitir converter em fundamento da sua legitimação o incremento das forças produtivas associadas ao progresso técnico-científico, embora. Por outro lado, o estado das forças produtivas represente precisamente também o

potencial pelo qual, medidas as renúncias e os incômodos impostos aos indivíduos, estas surgem cada vez mais como desnecessárias e irracionais. Paradoxalmente, esta repressão desvanece-se na consciência da população, pois a legitimação da dominação assume um caráter mais sutil, porém mais totalitário, capaz de manipular de forma imperceptível a consciência do homem, segundo o autor supracitado.

Marcuse teve a clareza de que a técnica pela técnica não propicia mudança alguma. Não passa de um fator parcial, visto que, no decorrer do processo tecnológico, uma nova racionalidade e novos padrões de individualidade se disseminam na sociedade, diferentes e até mesmos opostos àqueles que iniciaram a marcha da tecnologia. Para o autor:

Essas mudanças não são efeito (direto ou derivado) da maquinaria sobre seus usuários ou da produção em massa sobre seus consumidores; são, antes, elas próprias, fatores determinantes no desenvolvimento da maquinaria ou da produção em massa. (MARCUSE, 1999, p.74).

Para Marcuse a tecnologia é vista como um processo social no qual a técnica propriamente dita (isto é, o aparato técnico da indústria, transporte, comunicação) não passa de fator parcial. A tecnologia, como modo de produção, como totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominante, um instrumento de controle e dominação.

Note-se que Marcuse(1999) trata da influencia ou efeito da tecnologia sobre os indivíduos de forma parcial, portanto não definitiva e fatídica como pregam os tecnofóbicos mais radicais. Marcuse acrescenta ao fator tecnológico o fator humano, qual seja a direcionalidade da aplicação e utilização de tais dispositivos que são embutidos de características de dominação e emancipação.

No que concerne aos componentes sociais da tecnologia Pacey (1996) acredita que:

a inovação deve ser vista como o resultado de um ciclo de ajustamentos mútuos entre os fatores social, cultural e técnico. O ciclo pode começar com uma ideia técnica ou uma mudança radical na organização, mas de todo modo, haverá interação com outros fatores para que a inovação comece a fruir. (PACEY, 1996, p. 25, Tradução Livre).

1. O sentido restrito de tecnologia, que se refere a aspectos técnicos, como ferramentas, máquinas, químicas, produtos, etc.;

2. Os aspectos culturais (objetivos, valores e códigos de ética, crença no progresso e criatividade);

3. Os aspectos organizacionais que incluem atividades econômicas, industriais, profissionais assim como usos e costumes.

Neste contexto, existe um conjunto de fatores mutuamente interdependentes que levam às transformações, sendo, portanto necessário incluir o que o autor chama de liveware32 e não apenas softwares e hardware.

No estágio atual de desenvolvimento de tecnologias digitais, e principalmente as envoltas no desenvolvimento de games, chama-se atenção para as interfaces naturais ao usuário (NUI - Natural User Interface). Seus recursos se referem a um estilo de interface caracterizado pela invisibilidade do controle ao usuário. Uma interface é natural se explora as habilidades que o usuário adquiriu durante a vida ao interagir normalmente com o mundo. Portanto, uma interface natural deve ser aprendida e utilizada rapidamente, beneficiando-se e adaptando-se a partir da atuação do corpo humano, como é o caso dos games para Xbox- Kinects aqui utilizados.

Certo, entretanto, é que inovações tecnológicas, quase sempre, entusiasmam e no mundo dos games o desenvolvimento de plataformas e computadores cada vez mais sofisticados e potentes tem possibilitado a crescente produção de espaços híbridos, que apresentam imagens sintéticas que buscam ser visualmente indistinguíveis das imagens do mundo real. Através da tecnologia presente nos games, usuários são submetidos a processos nos quais algumas vezes torna-se difícil separar, distinguir entre realidade e virtualidade. Neste sentido, ordinariamente real e virtual operam um redimensionamento do homem; uma reescrita do seu modo de situar-se diante de uma sociedade atravessada por uma ordem cultural simulativa. Real e virtual são, pois categorias as quais se passa a tentar compreender no próximo tópico.