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Tira 2: Gatão de meia-idade

2 GÊNERO TEXTUAL: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

5.1 Temática 1: Na cama com o Gatão

As tiras cômicas que integram a temática “Na cama com o Gatão” evidenciam situações de ameaça à face de conquistador viril do personagem-título. Isso ocorre quando ele fracassa em seu desempenho sexual, o que o deixa “fora da face” pretendida.

Análise 1

TIRA 57 – Gatão de meia-idade Fonte: Paiva (1995)

No primeiro quadro, no texto de legenda, um sintagma nominal é responsável pela introdução do referente “vestígios de sedução” no modelo textual. Esse referente atua como âncora para o estabelecimento de uma rede referencial construída linguístico-visual e sociocognitivamente por meio de desenhos (a taça virada, o aparelho sonoro, o sapato de salto jogado) e de anáforas indiretas (sinais de uma noite de amor e sexo, música sensual, clima de conquista, mútua atração entre dois corpos excitados, frêmito selvagem do desejo incontrolável, do prazer imenso). Essa inter-relação entre elementos linguísticos e não linguísticos não promove a manutenção de um mesmo referente, mas uma continuidade do quadro referencial, que se estabelece, inferencialmente, por meio de associações.

Na manutenção do quadro referencial, essas associações indiretas entre referentes e âncora possibilitam, por meio da ativação de frames, a construção de estruturas de expectativa acerca do comportamento dos personagens, ao mesmo tempo que pressupõem contínuo movimento de recategorização referencial. Nesse sentido, por meio dos três primeiros quadros, podemos, por exemplo, categorizar o personagem-título, o Gatão, como viril, sedutor.

Entretanto, no último quadro, na fala da personagem, com a introdução do dêitico discursivo “isso”,67

o leitor se dá conta do insucesso do personagem Gatão. O dêitico “isso”, produzido na relação do linguístico com o visual, requer a recuperação de informações difusas do cotexto e a mobilização de conhecimentos, provocando uma ruptura nas estruturas de expectativas geradas anteriormente.

Para essa ruptura, contribui, no último quadro, o desenho do personagem Gatão meio desolado, sentado na cama, e da personagem feminina, que, aparentemente, lida com o fracasso sexual do Gatão com tranquilidade, por isso busca consolá-lo.

O humor, nessa tira, está relacionado à situação de fracasso sexual, que ocasiona a perda da face de homem viril do personagem Gatão. O referente “vestígios de sedução”, introduzido no primeiro quadro da tira, é recategorizado, sociocognitivamente, pelo leitor, por meio de pistas co(n)textuais, como “vestígios do fracasso sexual”. Desse modo, o personagem-título é, também, recategorizado por meio do atributo “não viril”. Isso evidencia que a recategorização não necessita ser lexicalmente explícita ou legitimada por meio de uma expressão anafórica.

Na tira em tela, não ocorre um desfecho inesperado, como se pressupõe para tiras que se assentam, sobretudo, no tipo textual narrativo. Há uma situação inesperada, diferentemente daquela que se supunha por meio da leitura dos primeiros quadros.

Análise 2

TIRA 58 – Gatão de meia-idade Fonte: Paiva (1995)

No primeiro quadro, a assunção do verbal e não verbal serve como âncora (pistas) para construção inferencial do referente “relação sexual”. No plano linguístico, o sintagma “foi ótimo” revela uma posição avaliativa da personagem feminina, uma vez que essa expressão

67 A relação estabelecida entre a dêixis e a referenciação remete ao fato de que a referência não é fixa, uma vez

atributiva,68 embora não goze de estatuto referencial, promove acréscimos informacionais ao referente, introduzido sociocognitivamente na tira 58. No plano visual, o desenho da personagem feminina de pé, vestindo-se, roupa íntima à mostra e o desenho do personagem Gatão deitado em uma cama coocorrem para essa construção referencial.

As considerações anteriores apontam para o fato de que nem sempre se torna necessária a manifestação explícita de expressões referenciais no cotexto. Nessa perspectiva, importa-nos considerar que a interpretação da referência nem sempre depende de expressões referenciais manifestadas cotextualmente, pois o ato de referenciar, longe de ser uma atividade estática, é uma criação que vai se reconfigurando não somente pelas pistas do contexto, mas também por outros dados do entorno sociodiscursivo e cultural que vão sendo acordados pelos participantes da enunciação (CAVALCANTE et al., 2010).

Ainda em relação ao primeiro quadro da tira, verificamos que a personagem feminina está enquadrada num plano americano (CAGNIN, 1975), ou seja, o limite da percepção visual do leitor se dilui um pouco acima da altura dos joelhos dessa personagem. Isso parece concorrer para que ela assuma uma posição de evidência na sequência de quadros, contribuindo para o processo de transformação referencial.

Em relação ao segundo quadro da tira, a série de predicações verbais presentes na fala da personagem (“não gosto de dormir em camas estranhas” e “não quero que você fantasie sobre o futuro da nossa relação”) e sua posição de destaque na tira, sugerindo controle da situação, atuam como importantes elementos para uma construção (re)categorial. É, portanto, por meio da relação verbal e não verbal que o leitor constrói uma hipótese interpretativa acerca do possível atributo conferido à personagem feminina: “dominadora”.

Se assumirmos que a recategorização ocorre quando um referente já introduzido é reformulado, isto é, tem seu significado alterado, podemos afirmar que a rede de predicações e o enquadramento dado à personagem feminina promovem uma modificação no status categorial desse referente. Podemos, então, depreender que a remissão não é condição sine

qua non para haver recategorização, como parece ocorrer na tira em análise, em que há um

caso de recategorização sem anáfora.

Categorização e recategorização, embora guardem relações estreitas, não estão, necessariamente, associadas à relação categorização/introdução referencial,

68

Neves (2006, p. 286), numa perspectiva mais funcionalista, afirma que predicação e referenciação governam, em inter-relacionamento, a construção de objetos de discurso e sua manutenção no texto, bem como a natureza referencial desses constructos, que constituem os termos que formam as predicações, e, portanto, os argumentos que ficam disponíveis no discurso – com um determinado estatuto referencial – para o rastreamento coesivo no fazer do texto.

recategorização/anáfora. Recategorizar implica operações cognitivo-interativas, engendradas na atividade discursiva. Essa visão também é defendida por Silva (1998), para quem toda categorização implica uma recategorização, pois o processo de nomear um referente é carregado de (inter)subjetividade.

Considerando, segundo a teoria sobre “linguagem e gênero”, que o estilo interativo do homem é caracterizado pela assimetria/dominância e o das mulheres, pela simetria/solidariedade, espera-se, estereotipicamente, que, nas interações conversacionais, as mulheres se comportem passivamente e os homens, competitivamente. No entanto, na tira 58, ocorre o inverso: a personagem feminina é quem domina a situação.

Essa recategorização quanto aos papéis femininos e masculinos de interação é, também, observada no último quadro da tira. Na fala do Gatão, o sintagma nominal “esse texto” encapsula informações (CONTE, 2003 [1996]) cotextuais e marca a perplexidade do personagem, pois ele é que normalmente adotaria um comportamento verbal e não verbal direto e dominador. Pela imbricação do verbal (o encapsulador, os epistêmicos modais e marcadores de dúvida, “sei não...” “Mas eu acho”) com o não verbal (ele ainda está deitado, sua mão no queixo e o modo como olha para a personagem feminina), infere-se que, hipoteticamente, o Gatão é recategorizado como “não dominador”.

Essa mudança de atitude, promovida por diferentes recategorizações atribuídas aos personagens, desencadeia o efeito de humor, deixando o personagem Gatão fora de face.

Análise 3

TIRA 59 – Gatão de meia-idade Fonte: Paiva (1995)

Na tira 59, no primeiro quadro, os personagens são apresentados ao leitor: o personagem Gatão de meia-idade e sua companheira ou namorada, que tenta consolá-lo. No

plano visual, observamos que ele, curvado, mãos abraçando suas próprias pernas, está constrangido e desapontado. No plano linguístico, sua fala (“Eu te disse que era cedo para tentar de novo...”) atua como explicação para o motivo de sua falha sexual. A personagem feminina, por sua vez, com as mãos sobre os ombros dele, tenta confortá-lo. Em sua fala, o dêitico de memória (KOCH, 2004) “isso” encapsula informações cotextuais e, ao mesmo tempo, remete a um conhecimento em comum sobre o fato retratado na tira. Temos, nessa imbricação, a emergência do referente “falha sexual”.

No quadro seguinte, o modo como foram desenhados o personagem-título, deitado de lado na cama, olhar desconsolado, e sua namorada, cuja mão aparece novamente em seu ombro, mantém em foco o referente “falha sexual”.

Entretanto, dada a visão estereotipada acerca das atuações femininas e masculinas em sociedade, parece ser o referente recategorizado diferentemente pelos dois. A personagem feminina se mostracompreensiva, pois diz que o importante é estarem juntos, o que condiz, numa visão estereotipada, com o que se espera da mulher em sociedade. Ela, pela expressão fisionômica, pelo olhar, não se sente rejeitada, não culpa seu corpo e atribui a falta de ereção como algo que pode acontecer com qualquer homem. A personagem usa a linguagem da integração (TANNEN, 1990), por isso evita tecer críticas, é colaboradora e se mostra mais sensível ao acontecimento. Nessa ótica, o referente é pela mulher recategorizado como “normal”.

O personagem-título, por sua vez, ao utilizar a linguagem como instrumento de ação, enfatiza sua individualidade, procurando ser invulnerável (TANNEN, 1990). Para o Gatão, o referente, provavelmente, é recategorizado como “vergonha”, “perda da potência sexual”.

O sintagma nominal (SN) “esse espírito esportivo das mulheres”, presente na fala do personagem Gatão, no terceiro quadro, constitui-se numa rotulação (FRANCIS, 2003 [1994]), que, ao realizar um movimento interpretativo de cunho retrospectivo, encapsula informações dispersas no discurso, organizando-o e acrescentando uma avaliação.

Esse rótulo avaliativo assinala o modo como o Gatão reage diante das tentativas de solidariedade da personagem feminina, sinalizando para o leitor uma visão estereotipada acerca da atuação das figuras masculina e feminina em sociedade. Ela, num estilo marcado pela simetria/solidariedade, mostra-se colaboradora, cooperativa, passiva, vulnerável; com isso, busca não ameaçar a face (GOFFMAN, 1999 [1959])69 de homem dominador,

69

Segundo Goffman (1999 [1959]), face é a autoimagem delineada em termos de atributos sociais. Segundo esse autor (p. 41), “quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade (...)”.

conquistador do Gatão. Ele, por sua vez, para não se mostrar vulnerável diante da situação de falha sexual, mostra-se individualista, seguro, reagindo negativamente ao comportamento compreensivo da personagem feminina, conforme indicam a escolha do verbo “detestar”, a expressão fisionômica de desaprovação do Gatão e o modo como rotula a ação da mulher.

Considerando que o rótulo em questão não cumpre sozinho função avaliativa nem sumariza apenas o verbal, questiona-se a visão de Francis (2003 [1994]), cuja teoria propõe uma abordagem mais lexical, desconsiderando aspectos multimodais. Embora afirme (FRANCIS, 2003 [1994], p. 200) que a extensão precisa do discurso a ser seccionada pode não importar, pois crucial é a mudança de direção assinalada pelo rótulo e seu ambiente imediato, a avaliação realizada, na tira 59, pela rotulação funda-se em bases verbais e não verbais. Portanto, o empacotamento (sumarização) não abrange apenas sintagmas nominais e/ou conteúdos linguísticos mais amplos, mas também o comportamento não verbal dos personagens.

A estratégia de salvar sua face, no último quadro da tira, é a principal estratégia para a deflagração do humor.

Análise 4

TIRA 60 – Gatão de meia-idade Fonte: Paiva (1995)

Na tira 60, no primeiro quadro, uma mulher tenta, por meio do diálogo representado no balão-fala, consolar o personagem Gatão, dizendo que ele não tem nenhuma obrigação atlética no sexo. Ele, por sua vez, no plano visual, encontra-se numa posição de defesa/frustração: sua cabeça está baixa, seus braços estão cruzados sobre as pernas, o que, evidentemente, indica que ele não está à vontade. Esse comportamento também é reforçado, no segundo quadro, por marcas prosódicas como a hesitação do personagem, “É”, e as

reticências presentes em sua fala. É nesse contexto que se dá a construção referencial: “falha no desempenho sexual”.

No segundo quadro, na fala do personagem Gatão, o item lexical “assim” parece desempenhar a função de dêitico de memória, pois não só se refere à situação retratada no primeiro quadro, como também alude ao fato de se esperar, estereotipicamente, que o homem seja um “atleta do sexo”. Isso evidencia a construção da face social, pretendida pelo personagem, que é a de “homem viril”, um “garanhão infalível”. Ainda nesse mesmo quadro, a expressão referencial “a segunda”, presente na fala da personagem feminina, faz referência à nova tentativa de relação sexual. Essa postura da personagem feminina reforça uma imagem social (face) de “companheira”, “colaboradora”, tal qual ela busca construir desde o primeiro quadro da tira.

No último quadro, o referente “mulher” é introduzido, marcando uma mudança de foco (KOCH 2002, 2004). Esse referente, “mulher”, é recategorizado pelo personagem-título como “interesseira”, uma vez que, segundo ele, quer logo construir uma relação séria. Isso ocorre por meio das predicações (“é fogo”, “quer criar compromisso”) e de elemento não linguístico (olhar de reprovação do personagem Gatão). Dessa forma, nesse quadro, ocorre uma quebra de expectativa gerada nos dois quadros anteriores, deflagrando o humor, pois o personagem Gatão, numa estratégia de salvar sua face de homem viril, ameaça a face coletiva das mulheres.

Análise 5

TIRA 61 – Gatão de meia-idade Fonte: Paiva (1995)

No primeiro quadro da tira 61, na voz do narrador, o sintagma verbal (SV) “negar fogo”, metaforicamente interpretado, representa um acréscimo informacional, que contribui para a emergência do referente, “falha sexual”. Além disso, os traços do personagem Gatão (seu olhar a meia pálpebra, desviado para o canto esquerdo da tira) sugerem a lamentação de

seu fracasso; seus braços cruzados indicam postura defensiva ou de insegurança. Esses elementos da cotextualidade concorrem para a construção referencial.

Ainda nesse primeiro quadro, a personagem feminina lhe faz uma pergunta, a qual, por seu conteúdo informacional, revela postura de compreensão e solidariedade, pois ela está disposta a resolver a situação embaraçosa. Por meio dessa postura cooperativa, em seu discurso, num estilo interativo/solidário (TANNEN 1990; COULTHARD 1991), ela evita falar diretamente do problema e mantê-lo em foco, sem, contudo, desfocalizar o referente implicitamente introduzido. Em sua sugestão, emerge outro referente, “strip-tease”, ancorado pela situação discursiva e pelo modo como essa personagem usa a linguagem da integração, incentivando o Gatão a manifestar sua opinião.

É nesse processo articulatório em que informações já conhecidas pelo leitor e informações novas, o dado e o novo, que estruturas de expectativas são geradas, culminando numa situação inesperada.

A organização e a disposição dos signos icônicos e verbais, na cultura ocidental, guardam relação semelhante à relação entre os planos "ideal" e "real" dispostos de cima para baixo, conforme o quadrante de significação proposto por Kress, Leite-García e van Leeuwen (2008):

FIGURA 12 – Quadrante de significação potencial em imagens ocidentais Fonte: Kress; Leite-García; van Leeuwen, 2008, p. 395

Segundo esse quadrante, elementos dispostos à esquerda são tidos como informações conhecidas, dadas; os dispostos à direita são informações novas. Nesse processo articulatório de progressão referencial, referentes são ativados, retomados e transformados, o que evidencia ser a referenciação um processo discursivo e situacionalmente construído, como ocorre na tira em análise.

Dessa forma, o referente “strip-tease” é responsável por acionar mental e localmente um frame sobre essa prática: peças de roupa sexy e provocante, normalmente lingerie, são retiradas de forma lenta e sensual; mas essa prática é recategorizada, no último quadro da tira, sob a ótica masculina do Gatão. No lugar de uma roupa provocante, ele sugere que a personagem feminina use uma camisa da seleção brasileira de futebol, para espanto dela. Provavelmente, trata-se de uma maneira de ele se livrar da situação constrangedora ou de, por meio da camisa da seleção, que remete a um dos assuntos preferidos dos homens, futebol, ele recuperar sua imagem (face) de macho. Temos, nesse caso, uma tentativa de salvamento de face e, consequentemente, uma importante estratégia para a produção do humor.

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