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Referenciação e humor em tiras do Gatão de meia-idade, de Miguel Paiva

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Academic year: 2021

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PUC-SP

RIVALDO CAPISTRANO DE SOUZA JÚNIOR

Referenciação e humor em tiras do Gatão de meia-idade, de Miguel Paiva

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO 2012

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PUC-SP

RIVALDO CAPISTRANO DE SOUZA JÚNIOR

Referenciação e humor em tiras do Gatão de meia-idade, de Miguel Paiva

DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa sob a orientação da Professora Doutora Vanda Maria da Silva Elias.

SÃO PAULO 2012

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BANCA EXAMINADORA _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________ _______________________________________________

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À Professora Doutora Vanda Maria da Silva Elias, minha gratidão pela orientação sábia e atenta, pelo apoio, pela paciência, pela confiança, pela amizade e pela ajuda na superação de limites.

Às Professoras Doutoras Ana Rosa F. Dias e Ingedore G. V. Koch, pelas significativas contribuições dadas a este trabalho no exame de qualificação.

Aos docentes do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa (PPLP), especialmente à Professora Doutora Sueli Cristina Marquesi, pelos valiosos ensinamentos.

À Professora Doutora Maria da Penha Pereira Lins, com quem tanto aprendi e continuo aprendendo, por sua contribuição para meu crescimento acadêmico e por sua amizade.

Ao Professor Doutor Paulo Ramos, pelo diálogo acadêmico.

À CAPES, pela concessão de bolsa de estudos ao longo de meus estudos no doutoramento.

A Lourdes, secretária do PPLP, pelo carinho e pela presteza no atendimento.

Aos colegas de curso, em especial a Simeia Mello, pela cumplicidade acadêmica e pela troca de experiências.

À Professora, amiga e irmã reivindicada, Mônica Regina de Souza, pelo incentivo constante e pelo consolo nos momentos difíceis, pelas traduções e pela escrita do Abstract.

À Professora Maria Dalva Marchezi Rosário, pela revisão final deste trabalho.

Aos meus familiares, pelo estímulo e pela compreensão.

A Renan Cola, que torceu pela finalização deste trabalho.

A todos que, de alguma forma, contribuíram para a finalização dos meus estudos no doutoramento.

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Miguel Paiva (1995, Contracapa)

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Este trabalho objetiva investigar, numa perspectiva sociocognitivo-interacional, no âmbito da Linguística Textual, estratégias de construção e reconstrução de referentes (objetos cognitivos e discursivos) em tiras cômicas, bem como averiguar, nesse gênero textual, o papel dos referentes na deflagração do humor. Os dados que constituem o corpus para realização desta pesquisa compõem-se de tiras de temática adulta, reunidas e publicadas no livro Gatão de

Meia-idade (1995), de autoria de Miguel Paiva. Os resultados demonstraram que os processos

referenciais são acionados não só por meio de pistas cotextuais, na inter-relação entre palavra-imagem, mas também pelo contexto sociocognitivo, exigindo participação ativa do leitor na construção dos sentidos e de novas referências. Também foi possível constatar que os referentes, ao serem recategorizados no modelo textual, contribuem para um desfecho ou situação inesperados, desencadeando o humor nas tiras analisadas.

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This work aims to investigate the process of (re) construction upon related objects (cognitive and discursive) in comic strips and determine the function of humor regarding the outbreak in this genre. From the social cognitivism perspective, in theoretical Linguistics Textual, we argue that the word-image overlapping referents are introduced, reproduced or modified not only by co-textual tracks, but also by the social cognitivism context-interactive, and that this process recategorisen referential action is an important strategy for production of humor as it brings out the unexpected, breaking with expectations enabled the reading frame of the first pictures of the strips. The data that form the corpus for this research consist of adult-themed strips, assembled and published the book Gatão de Meia-idade (1995), written by Miguel Paiva. The results showed that the referential processes are triggered not only by means of co-textual tracks, on the interrelationship between word-image, but also by the social cognitivism context, requiring active participation of the reader in the construction of senses and new references. It was also found that the relative, to be recategorisen in textual template, contribute to an outcome or unexpected situation, unleashing the humor in the strips.

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Figura 2: Protótipo de um médico --- 36

Figura 3: Microdicionário de gestos --- 37

Figura 4: Plano das figuras --- 37

Figura 5: Uso de imagens na experiência humana --- 39

Figura 6: Estrutura da sequência narrativa --- 44

Figura 7: Estrutura da sequência argumentativa --- 48

Figura 8: Gatão de meia-idade --- 49

Figura 9: Gatão de meia-idade --- 50

Figura 10: Gatão de meia-idade --- 50

Figura 11: Continuum oral-escrito --- 55

Figura 12: Quadrante de significação potencial em imagens ocidentais --- 116

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Tira 2: Gatão de meia-idade --- 22

Tira 3: Gatão de meia-idade --- 23

Tira 4: Gatão de meia-idade --- 23

Tira 5: Gatão de meia-idade --- 24

Tira 6: Gatão de meia-idade --- 42

Tira 7: Gatão de meia-idade --- 42

Tira 8: Gatão de meia-idade --- 43

Tira 9: Gatão de meia-idade --- 45

Tira 10: Gatão de meia-idade --- 46

Tira 11: Gatão de meia-idade --- 47

Tira 12: Gatão de meia-idade --- 50

Tira 13: Gatão de meia-idade --- 51

Tira 14: Gatão de meia-idade --- 51

Tira 15: Gatão de meia-idade --- 52

Tira 16: Gatão de meia-idade --- 53

Tira 17: Gatão de meia-idade --- 53

Tira 18: Gatão de meia-idade --- 54

Tira 19: Gatão de meia-idade --- 54

Tira 20: Gatão de meia-idade --- 56

Tira 21: Gatão de meia-idade --- 57

Tira 22: Gatão de meia-idade --- 57

Tira 23: Gatão de meia-idade --- 58

Tira 24: Gatão de meia-idade --- 58

Tira 25: Gatão de meia-idade --- 58

Tira 26: Gatão de meia-idade --- 59

Tira 27: Gatão de meia-idade --- 59

Tira 28: Gatão de meia-idade --- 59

Tira 29: Gatão de meia-idade --- 60

Tira 30: Gatão de meia-idade --- 60

Tira 31: Gatão de meia-idade --- 61

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Tira 35: Gatão de meia-idade --- 76

Tira 36: Gatão de meia-idade --- 77

Tira 37: Gatão de meia-idade --- 81

Tira 38: Gatão de meia-idade --- 85

Tira 39: Gatão de meia-idade --- 87

Tira 40: Gatão de meia-idade --- 87

Tira 41: Gatão de meia-idade --- 88

Tira 42: Gatão de meia-idade --- 88

Tira 43: Gatão de meia-idade --- 89

Tira 44: Gatão de meia-idade --- 89

Tira 45: Gatão de meia-idade --- 90

Tira 46: Gatão de meia-idade --- 90

Tira 47: Gatão de meia-idade --- 91

Tira 48: Gatão de meia-idade --- 91

Tira 49: Gatão de meia-idade --- 92

Tira 50: Gatão de meia-idade --- 92

Tira 51: Gatão de meia-idade --- 94

Tira 52: Gatão de meia-idade --- 95

Tira 53: Gatão de meia-idade --- 97

Tira 54: Gatão de meia-idade --- 98

Tira 55: Gatão de meia-idade --- 100

Tira 56: Gatão de meia-idade --- 103

Tira 57: Gatão de meia-idade --- 109

Tira 58: Gatão de meia-idade --- 110

Tira 59: Gatão de meia-idade --- 112

Tira 60: Gatão de meia-idade --- 114

Tira 61: Gatão de meia-idade --- 115

Tira 62: Gatão de meia-idade --- 117

Tira 63: Gatão de meia-idade --- 119

Tira 64: Gatão de meia-idade --- 120

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Tira 68: Gatão de meia-idade --- 126

Tira 69: Gatão de meia-idade --- 127

Tira 70: Gatão de meia-idade --- 128

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS --- 15

1 CORPUS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS --- 18

1.1 Seleção do corpus --- 18

1.1.1 Miguel Paiva e sua obra --- 1.1.1.1 Os personagens de Miguel Paiva --- 19 22 1.2 Metodologia de análise --- 24

2 GÊNERO TEXTUAL: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS --- 28

2.1 Os gêneros textuais na perspectiva sócio-histórica--- 28

2.2 A multimodalidade --- 32

2.3 Imagens: uma (re)construção sociocognitiva da realidade --- 35

2.4 Gênero textual tira cômica --- 38

2.4.1 As dimensões constitutivas do gênero tira cômica --- 41

2.4.1.1 Tema --- 41

2.4.1.2 Estrutura composicional --- 43

2.4.1.3 Estilo --- 55

3 HUMOR: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS --- 62

3.1 Teorias do humor --- 62

3.2 Noção interacional de frame --- 69

3.3 Teoria da face --- 72

3.4 Linguagem e gênero --- 74

3.5 O humor em tiras do Gatão de meia-idade --- 75

4 REFERENCIAÇÃO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS --- 79

4.1 O tratamento do texto no quadro dos estudos sociocognitivos --- 79

4.2 Pressupostos da referenciação --- 82

4.2.1 Referenciação e instabilidade dos referentes --- 84

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5 REFERENCIAÇÃO E HUMOR EM TIRAS DO GATÃO DE

MEIA-IDADE: UMA ANÁLISE 108

5.1 Temática 1: Na cama com o Gatão --- 109

5.2 Temática 2: Universo masculino X universo feminino --- 117

5. 3 Temática 3: Crises da meia-idade --- 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS --- 130

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS --- 133

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho se insere na linha de pesquisa “Texto e discurso nas modalidades oral e escrita” do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da PUC-SP, e busca, numa perspectiva sociocognitivo-interacional, no âmbito da Linguística Textual (doravante LT), contribuir para o estudo da referenciação em gênero multimodal.

Partindo, então, do entendimento de que as atividades humanas, cognitivas e linguísticas são estruturadas e dão um sentido ao mundo, estudiosos europeus, como Francis (2003 [1994]); Apothéloz (2003 [1995]); Mondada & Dubois (2003 [1995]); Conte (2003 [1996]), e estudiosos brasileiros, como Koch & Marcuschi (1998); Koch (2002, 2004); Marcuschi (2005, 2007); Cavalcante (2000, 2003, 2011), entendem a referenciação como um processo dinâmico de construção negociada de referentes (objetos de discurso). Adotam, para isso, critérios de análise pautados em formas linguísticas referenciais, que promovem a introdução, a manutenção e a transformação de referentes.

Se, por um lado, essas pesquisas muito avançaram nos estudos sobre referenciação, ao postularem a elaboração cognitivo-discursiva do referente (objeto de discurso) e a não pontualidade entre uma determinada expressão referencial e outras porções da materialidade linguística; por outro lado, o desenvolvimento de trabalhos que promovam novas discussões e procedimentos analíticos às postulações já empreendidas por pesquisadores europeus e brasileiros no estudo da referenciação se torna necessário.

Nesse cenário, encontram-se estudos como os de Apothéloz (2001) e Mondada (2005), ao chamarem a atenção para os aspectos paraverbais, as práticas gestuais, o movimento no espaço e a orientação no olhar como direcionadores da atividade referencial em situações de interação oral síncrona, muito contribuem para uma visão mais integradora entre o verbal e o não verbal.

A integração entre o verbal e o não verbal também vem sendo discutida por Ramos (2007, 2009, 2011), que, ao descrever as estratégias textuais de construção de sentido em tiras cômicas, evidencia a função de objetos de discurso visuais em processos coesivos. Em seu estudo, o autor muito contribuiu para os estudos em referenciação, uma vez que atribuiu aos recursos não verbais o mesmo status dado às expressões nominais na introdução e na transformação de referentes.

A fim de contribuir para essa discussão, propomos, nesta tese, analisar a referenciação em tiras cômicas, tendo em vista que referentes, construções sociocognitivo-interacionais, podem

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ser acionados, introduzidos e modificados na e pela complementaridade entre componentes verbais e visuais. As questões que norteiam a nossa investigação são as seguintes:

a) Como se constroem os processos referenciais nem tiras cômicas, considerando que se trata de um gênero textual constituído por signos verbais e imagéticos?

b) De que forma processos referenciais, na assunção de elementos verbais e não verbais, contribuem para a construção de efeitos de humor sem cômicas?

Nossa hipótese é a de que, no gênero textual tira cômica, a constituição de referentes se dá, sociocognitivamente, na e pela imbricação palavra/imagem. Dessa forma, diferentes modalidades de linguagem constitutivas desse gênero, tais como palavra, imagem, linhas de contorno, tipo de fonte, ângulos de visão etc, coatuam nesse processo, servindo-lhe de âncoras. Além disso, os referentes, ao serem recategorizados ao longo do texto, contribuem para uma possível quebra de expectativa, produzindo o humor.

Assim, neste estudo, temos como propósito, numa abordagem qualitativa, analisar o processo referenciação em tiras cômicas e verificar, na interface palavra-imagem, o papel dos referentes na construção do humor. Nosso corpus é constituído por tiras de temática adulta, reunidas e publicadas no livro Gatão de meia-idade (1995), de autoria de Miguel Paiva.

Para a análise efetiva de processos referenciais e, consequentemente, de efeitos de humor, as tiras selecionadas foram agrupadas nas seguintes temáticas: a) “Na cama com o Gatão”, tiras que retratam situações de fracasso no desempenho sexual do personagem Gatão, o que constitui uma ameaça à face (GOFFMAN, 1980 [1967]) de homem viril desse personagem; b) “Universos masculinos e universos femininos”, tiras voltadas para questões sobre a representação sociocultural do homem em sociedade são apresentadas, uma vez que o Gatão vivencia um contexto cultural em que a mulher busca redefinir seu papel em sociedade. Dessa forma, o Gatão, em suas interações com personagens femininas, experiencia novos comportamentos em que papéis sociais masculinos, como ter domínio, poder, prestígio social, são constantemente reavaliados; c) “Crises da meia-idade”, tiras em que a idade se constitui numa ameaça à face de um homem decidido, jovem, boa aparência física, que o personagem-título busca construir.

Essas temáticas revelam, de modo geral, o frame do personagem título, Ser Gatão de

meia-idade, tema que dá origem à obra de Paiva, conforme Lins (2004). Nesse sentido, os

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anos 1990, lida não só com dilemas de uma masculinidade heterossexual, mas também com sua crise de meia-idade, estado em que esse personagem busca negar o próprio envelhecimento, manter-se viril e administrar suas angústias e inseguranças.

Para procedermos ao exame dos processos referenciais em tiras cômicas, buscamos, respaldados na perspectiva bakhtiniana do estudo de gêneros textuais, compreendê-las como fenômenos históricos e sociais e caracterizar seus elementos constitutivos: conteúdo, composição e estilo. Além disso, recorremos a estudos sobre a multimodalidade (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006 [1996]; KRESS; LEITE-GARCÍA; VAN LEEUWEN, 2008 [1997]; KRESS, 2010; DESCARDESI, 2002; DIONISIO, 2005) como o propósito de melhor entender a referenciação na inter-relação verbal-não verbal; bem como a estudos sobre o humor (BERGSON, 1983 [1900]; RASKIN, 1985; CHARAUDEAU, 2006; TRAVAGLIA, 1990, 1992; POSSENTI, 1998; LINS, 2002; RAMOS, 2007, 2011).

Nosso estudo sobre referenciação e humor em tiras do Gatão de meia-idade está organizado em cinco capítulos. No capítulo 1, apresentamos o corpus e descrevemos os procedimentos de análise. No capítulo 2, tratamos da concepção de gênero textual e de multimodalidade. No capítulo 3, apresentamos um quadro teórico de estudos sobre o humor a fim de fundamentar a análise sobre a relação entre processos referenciais e produção do humor em tiras cômicas. No capítulo 4, discutimos teoricamente a referenciação, ressaltando como o verbal e o não verbalatuam na introdução, manutenção e transformação de referentes nas tiras cômicas. No capítulo 5, com base nos estudos realizados nos capítulos anteriores, analisamos processos referenciais e produção do humor em tiras cômicas. Além desses capítulos e destas considerações iniciais, apresentamos as considerações finais e as referências bibliográficas.

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1 CORPUS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

1.1 Seleção do corpus

As tiras cômicas, além de proporcionarem entretenimento, constituem interessantes objetos de estudo seja do ponto de vista artístico, seja do ponto de vista da imbricação linguagem-cognição e sociedade. De modo geral, pesquisas sobre quadrinhos (e tiras) parecem se voltar ora para o estudo das características do funcionamento de sua linguagem (perspectiva em que se situa esta pesquisa), ora para questões didático-pedagógicas (RAMOS, 2009).

Neste trabalho, buscamos averiguar, do ponto de vista de estudos do texto situados no campo da LT, processos referenciais em tiras do Gatão de meia-idade, de Miguel Paiva, bem como o papel desses referentes na geração do humor. Para isso, recorremos, na análise dos efeitos de humor, principalmente, a pressupostos da Sociolinguística Interacional e da teoria sobre linguagem e gênero.

Como recorte para a análise dos processos de referenciação e das funções que os referentes assumem na construção do humor, selecionamos 65 tiras cômicas. Na comprovação de aspectos teórico-analíticos, julgamos pertinente proceder à repetição de 6 tiras. Com isso, optamos por manter uma numeração sequencial de 1 a 71.

A opção pelas tiras de Paiva se fez pelo fato de elas desenvolverem temática adulta e de apresentarem elas um personagem-título que encarna estereótipos da condição do homem dos anos 1990, que, pressionado por mudanças do seu tempo, busca entender o papel da mulher na sociedade, negar o envelhecimento e reafirmar sua virilidade. Nesse sentido, a quebra desses estereótipos funciona como gatilho (RASKIN, 1985; POSSENTI, 1991) para a produção do humor.

Partimos, então, da hipótese de que a integração de semioses, na materialidade textual, atua, sociocognitivamente, na introdução, na manutenção e na transformação de referentes nas tiras analisadas. Esses referentes, categorias cognitivo-discursivas, contribuem para a construção de estruturas de expectativas, as quais, em tiras cômicas, são rompidas, gerando o humor.

Nesse sentido, em se tratando da construção de referentes em um texto, numa perspectiva sociocognitiva e interacional, partimos das seguintes premissas: a) não há, necessariamente, uma relação entre um antecedente e sua retomada anafórica; b) a introdução

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de referentes pode ser construída sem menção referencial cotextual explícita, haja vista o fato de o processo de referenciação implicar a produção de inferências, geradas por ativação de modelos cognitivos social e culturalmente compartilhados.

Nesse processo, pressupomos o papel responsivo do leitor, que, estrategicamente, mobiliza sistemas de conhecimentos diversos, opiniões, crenças e atitudes, para construir um sentido para o texto. Pautando-se em um conjunto de instruções pragmático-cognitivas e guiando-se em pistas multissemióticas deixadas pelo produtor, esse leitor, dialogicamente, num processo de (re)negociação de sentidos, (re)constrói referentes, objetos de discurso. Portanto, analisar processos referenciais e a construção do humor no corpus selecionado implica levarmos em consideração a natureza estratégica e sociointeracional do processamento textual.

1.1.1 Miguel Paiva e sua obra

O multimídia Miguel Paiva, carioca, nascido em 1950, é cartunista desde os dezessete anos. Atuou como diretor de arte, ilustrador, roteirista, publicitário, jornalista. Começou a escrever aos dezesseis anos para o Jornal dos Sports. Trabalhou no jornal de humor carioca O

Pasquim. Além disso, publicou vários livros, entre os quais, Memórias de Casanova, cinco

livros com o detetive Ed Mort, em parceria com Luis Fernando Veríssimo, três livros com a Radical Chic, dois com o Gatão de meia-idade em 1995 e 1996, além de livros de História do Brasil. Viveu na Itália em meados da década de 1970 até início da década de 1980, criando e publicando seus personagens (PAIVA, 2001, Contracapa).

Na TV Globo, inspirou o programa juvenil Game-show da Radical Chic (1993), assinou a abertura da novela Perigosas Peruas (1992) e supervisionou os textos de Malhação. No SBT, atuou como colaborador de novelas. Ao lado de Tiago Santiago, nesta emissora de televisão, escreveu Uma rosa com amor (2010) e Amor & revolução (2011-2012).

No teatro, foi autor e coautor das seguintes peças: Band-Age (1983); Heleno, um

homem chamado Gilda (1996); A presença de Guedes, uma comédia sob suspeita (2003); Lavanderia Brasil (2006).

Em seu trabalho como cartunista, é criador de muitos personagens como Chiquinha, personagem infantil, cujas histórias foram publicadas em O Globo, no suplemento Globinho, e Bebel, a Top–Top Model, personagem juvenil, cujas histórias foram, inicialmente, publicadas na revista Contigo; mas seus personagens mais conhecidos são a Radical Chic e o Gatão de meia-idade.

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Em 1982, Paiva mostrou-se conhecedor da alma feminina ao dar vida, na última página da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, à personagem Radical Chic, mulher emancipada, de cabelos ruivos e curtos, corpo magro e sensual. Por meio da Radical, Paiva aborda temas do universo feminino como sexo, dietas, futilidades, esportes e envelhecimento. Essa personagem ganha, no mercado editorial brasileiro, sete publicações: Radical

Chic volume 1 (1988) e volume 2 (1989), pela L± Almanaque da Radical Chic (1995),

pela Objetiva; Livro de pensamentos da Radical Chic (2001), pela Record; Radical Chic: mulheres que pensam (2008), Radical Chic: corpo de delito (2008), Radical Chic: sexo à deriva (2008), pela Cia. Editora Nacional.

Em 1994, Paiva, em tiras diárias, publicadas inicialmente no Jornal do Brasil, traz a público um personagem que retrata o universo masculino, o Gatão de meia-idade, homem quarentão, inseguro, ambíguo, urbano, de classe média, designer, que vive alguns conflitos com a própria idade, mas é, ao mesmo tempo, capaz de mostrar sua irreverência, seu charme para com as mulheres. Ele mesmo se apresenta, no uso da metalinguagem, na tira 1:

TIRA 1 – Gatão de meia-idade Fonte: PAIVA (1995)

Paiva (1995), na contracapa de seu livro, traça da seguinte forma o perfil de seu personagem:

Mutante, ambíguo, moderno, ele vive alguns terríveis conflitos com a própria idade – mas é capaz de se divertir como um adolescente quando sai com os amigos. Amou os Beatles e os Rolling Stones, e, no entanto, exibe agora, sem o menor constrangimento, vícios yuppies e namoradas tão jovens. Assim é nosso herói, o Gatão de meia idade: retrato precioso e bem humorado das contradições do nosso tempo (PAIVA, 1995, Contracapa).

Esse personagem, segundo Paiva, surge de um projeto de retratar a identidade masculina, os sucessos, os fracassos e as manias do homem moderno e quarentão. Não é

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autobiográfico, mas revela muito do que pensa esse autor sobre o universo masculino. Nesse sentido, afirma Paiva: “O Gatão bateu não só no vazio do mercado, que não discutia esse assunto, como também no meu vazio interno, que estava ávido por uma reflexão sobre o assunto” (Paiva, 2008, Apresentação).

As atitudes e posturas de seu personagem-título retratam a mudança no comportamento e na sexualidade do homem maduro, traduzindo o perfil do homem dos anos 1990: “o Gatão saiu da realidade para a ficção, onde se tornou espelho desses famosos anos 90”. 1

O Gatão personifica a crise do homem brasileiro dos anos 1990, que, de um lado, busca compreender as mudanças ocorridas no comportamento feminino e, de outro, busca reafirmar e redefinir sua posição de macho-dominador.Mais que um personagem fictício, é uma representação de um homem comum, como se pode ler na contracapa do livro:

Você conhece (o Gatão), ou até mesmo pode ser um deles – com seu eterno rabo de cavalo e uma discreta angústia por chegar nos tais quarenta e poucos anos. Criação mais recente do cartunista Miguel Paiva, o Gatão saiu da realidade para a ficção, onde se tornou espelho desses já famosos anos 90 (Paiva, 1995, Contracapa).

Perdido diante das transformações que a emancipação feminina causou, o Gatão busca compreender o novo papel da mulher na sociedade. Suas crises, as angústias e os prazeres são retratados de forma irônica e com muito humor nas tiras de Miguel Paiva. Lins (2004) traça o seguinte perfil desse personagem:

a) identificação: quarentão em crise; cabelo longo, amarrado em rabo de cavalo; descasado; moderno;

b) cenário em que atua: em casa; nos bares;

c) características atitudinais: angustiado por causa da idade; descontraído, charmoso, irreverente com as mulheres; ocupado em entender o universo feminino; perplexo perante os novos tempos.

O livro, lançado em 1995, com a série de aventuras do Gatão, foi tão bem aceito que, em 1996, surgiu pela editora Objetiva o Gatão de meia-idade 2. Anos mais tarde, em 2008, mais três publicações ganharam o mercado editorial: Gatão de meia-idade: primeiras tiras;

Gatão de meia-idade: vida em cores; e Gatão de meia-idade: enquadrado, todos publicados

pela Companhia Editora Nacional.

Em 2004, o personagem Gatão protagoniza crônicas humorísticas no livro Cama de

gato: histórias de cama do gatão de meia-idade, publicado pela editora Globo. No livro,

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narram-se as histórias amorosas do Gatão com diferentes mulheres, com as quais divide, na cama, seus prazeres e crises.

Em 2006, o Gatão é protagonista da cartilha educativa quadrinizada (MENDONÇA, 2010) sobre AIDS, do Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Esse manual, intitulado De homem para homem, é voltado, segundo Mendonça, para homens de mais de 30 anos, de classe média.

O personagem criado por Miguel Paiva é levado, ainda em 2006, às telas de cinema, num filme dirigido por Antônio Carlos da Fontoura e estruturado com base nas narrativas das tiras. No longa-metragem, cuja narrativa se mantém fiel às características dos personagens, o ator Alexandre Borges dá vida ao Gatão: designer, separado, sedutor e angustiado pela crise da meia-idade. É nessa época que se conhece seu nome: Cláudio.

Os dilemas e as dificuldades do homem em lidar harmoniosamente com o sexo oposto, os filhos, as relações familiares são temáticas retratadas por Miguel Paiva no livro Sentimento

masculino: manual de sobrevivência na selva (2001), editora Record. Nele, Paiva convida o

leitor a descobrir que é possível sobreviver aos embates amorosos com inteligência e humor. Miguel Paiva, além de traduzir, por meio de sua personagem Radical Chic, anseios da alma feminina, busca (des)construir emoções masculinas e redefinir, no diálogo com seu personagem Gatão de meia-idade, a busca de fazer-se homem na sociedade atual.

1.1.1.1 Os personagens de Miguel Paiva

Dividindo o espaço das tiras com o Gatão, outros personagens, com suas características peculiares, protagonizam as histórias de Paiva. São eles:

Beth, a ex-mulher

TIRA 2 – Gatão de meia-idade Fonte: PAIVA (1995)

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Alta, magra, cabelo em franja cortado estilo chanel, foi casada com o personagem Gatão há dez anos. Com seus brincos de argolas, vestidos curtos ou justos, na maioria das vezes, protagoniza com o Gatão cenas de brigas, de ofensas. É uma mulher moderna, mas, no fundo, mostra-se carente, pois odeia ser desprezada ou incompreendida pelo Gatão.

Bia, a filha

TIRA 3 – Gatão de meia-idade Fonte: PAIVA (1995)

Ela é uma pré-adolescente. Deve ter uns 11 ou 12 anos, levando em conta que sua primeira menstruação só ocorre no livro Gatão de meia-idade 2, em 1996. De cabelos claros, amarrados em rabo de cavalo, adora ir ao shopping, cinema, conversar e dançar com as amigas. Mora com a mãe, mas passa os fins de semana com o pai.

Os amigos

TIRA 4 – Gatão de meia-idade Fonte: PAIVA (1995)

É com os amigos que o Gatão divide suas angústias e experiências amorosas nem sempre bem sucedidas. Estão, na maioria das vezes, em um bar. Conversam sobre futebol,

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política e, sobretudo, mulheres, sejam as que estejam no bar, sejam as que saíram em revistas masculinas.

Normalmente, nas interações com os amigos, o Gatão procurar manter a imagem de conquistador, de homem viril, na tentativa de reafirmar sua virilidade. Adota, para isso, um estilo interacional marcado pela independência, pelo prestígio. Raramente expressa sentimentos íntimos, o que poderia comprometer a imagem de durão. Entretanto, em outros cenários, como o passeio pela rua, o Gatão busca nos amigos consolo e cumplicidade. Fala sobre envelhecimento, aparência física e baixo desempenho sexual, dando vazão a suas lamentações.

Suas conquistas: as mulheres

TIRA 5 – Gatão de meia-idade Fonte: PAIVA (1995)

As personagens femininas são muitas: Malu, Maria Thereza, Eleonora, Maria Eduarda, Roberta, Érica, Adelina, Andreza, Martinha, entre outras. Dividem com o personagem-título uma tira, ou uma sequência delas.

Da tímida, passando pela companheira e compreensiva, à ousada e decidida, são elas que protagonizam histórias engraçadas com o personagem Gatão. Nas interações entre eles, fica evidente a dificuldade do Gatão de saber se comportar perante um novo tipo de mulher tão contundente, mas, ao mesmo tempo, insegura.

1.2 Metodologia de análise

A análise do corpus será realizada de acordo com os seguintes suportes teóricos:

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A linguagem é uma atividade sociocognitiva e interacional (MARCUSCHI, 2007). Isso implica considerá-la não como algo pronto de antemão, nem como um conjunto de sistemas apropriados pelos sujeitos, mas como algo que se constitui nos e pelos eventos comunicativos, que ocorrem em diferentes espaços sociais, em diferentes esferas de atividade humana nas quais os sujeitos, em ações conjuntas e coordenadas, agem sobre a linguagem, com o outro e sobre si mesmos. É heterogênea, opaca, histórica, variável e socialmente constituída, não servindo como mero instrumento de espelhamento da realidade. Isso implica dizer que, segundo essa visão, o texto não se reduz à sua materialidade. Dele são indissociáveis as práticas socioculturais e os processos cognitivos e intersubjetivos.

Sobre gêneros textuais

Os gêneros textuais, sendo produtos de uma atividade histórico-social, constituem-se em contexto sociointeracional, pois estão articulados à atividade humana (BAKHTIN, 2003 [192-1953]). Surgem face à necessidade, aos interesses e às condições de funcionamento de uma sociedade. São, nesse sentido, formas de atuação e de inserção sociocultural.

Sobre multimodalidade

Os textos são percebidos como constructos multimodais, isto é, em sua composição atuam de forma integrada vários modos de linguagem na construção de significados da comunicação social (KRESS, LEITE-GARCÍA, VAN LEEUWEN, 2008 [1997]; DESCARDESI, 2002; DIONISIO, 2005). Sob esse aspecto, constitui-se um desafio teórico-metodológico para a LT transpor o nível de análise do verbal e abarcar vários modos de representação de significação de um texto. Embora não seja tarefa da LT desenvolver uma metodologia de análise de imagens, cores, tipografias etc, defendemos, neste estudo, que a análise empreendida de processos referenciais deve abarcar elementos verbais e não verbais, vistos como parte de um todo, que é o texto.

No estudo de aspectos referenciais do texto das tiras de Miguel Paiva, o que importa é averiguar como a imbricação palavra-imagem atua na negociação de sentidos do texto e na (re)construção de referentes.

Sobre referenciação

A referenciação é um processo sociocognitivo e interacional, ancorado em indícios linguísticos e não linguísticos e desencadeado por inferências geradas por ativação de

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modelos cognitivos social e culturalmente compartilhados, num processo de estreita relação entre linguagem, texto e cognição.

A construção de referentes, nas tiras de Miguel Paiva que compõem nosso corpus, se dá via inferenciação gerada na e pela imbricação palavra-imagem, a qual atua como âncora para a produção de novos sentidos e de novas referências.

Sobre humor

De modo geral, a construção do humor em no gênero tiras cômicas se faz por meio de um desfecho imprevisto, de uma situação inesperada. Nesta pesquisa, para compreensão de efeitos humorísticos das tiras do Gatão de meia-idade, recorremos, a fim de fundamentar nossas descrições e análises, a uma abordagem interdisciplinar.

A noção de face, desenvolvida por Goffman (1980 [1967]) e entendida como um conceito construído e buscado pelos sujeitos, fornecerá subsídios para a análise de efeitos de humor nas tiras selecionadas. Nesse sentido, sua proposta de linhas de conduta em relação à face, como “face errada” ou “fora de face” (comportamento e atitudes que estão em desacordo com valores sociais), funciona como uma importante estratégia para deflagração do humor.

Como o humor nas tiras do Gatão de meia-idade envolve questões relacionadas à instabilidade identitária do homem em sociedade, buscamos apoio nos estudos de Nolasco (1993a; 1993b). Ainda nesse sentido, a fim de descrever os estilos interativos previstos no imaginário sociocultural para homens e mulheres, recorremos à teoria de linguagem e gênero (TANNEN, 1990, 1994; LAKOFF, [1973] 2010; COULTHARD, 1991), sobretudo, para explicar um padrão interacional estereotipado previsto para os diferentes gêneros.

A categorização e a recategorização de referentes (objetos de discurso) nas tiras analisadas neste trabalho desempenham importante papel na deflagração do humor, o qual advém da identificação de um objeto de discurso que emerge em torno de uma estrutura de expectativa gerada nos primeiros quadros, e que, ao ser recategorizado nos quadros seguintes, quebra com a expectativa gerada inicialmente.

Para a análise das tiras que compõem o corpus de nossa pesquisa, levaremos em conta, na imbricação dos planos verbal e visual, o papel de semioses na introdução, retomada e transformação de referentes. Na descrição de categorias de análise, consideraremos:

a) no plano verbal, as expressões referenciais introduzidas por sintagmas nominais, sintagmas pronominais e predicações (conteúdo linguístico mais amplo). Verificaremos, portanto, como elementos linguísticos de complexidade sintático-semântica variável, na inter-relação com elementos visuais, atuam no em processos referenciais;

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b) no plano visual, o desenho dos personagens, os tipos de balão, os tipos de plano etc. Ressaltamos, contudo, que o estabelecimento de categorias de análise para a imagem é complexo, visto não ser a imagem passível de subdivisões em partes funcionais significativas.

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2 GÊNERO TEXTUAL: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

2.1 Os gêneros textuais na perspectiva sócio-histórica

O estudo dos gêneros textuais2 teve origem na Antiguidade (BAKHTIN, [1952-1953] 2003, p 262-263). Entretanto, afirma Bakhtin que a questão dos gêneros nunca tinha sido verdadeiramente colocada, pois os estudos existentes, embora representassem padrões de categorização rigorosos, não levavam em conta a questão linguística geral do enunciado3 e dos seus tipos.4

A partir dos estudos de Bakhtin e de seu Círculo5, a noção de gênero textual foi redimensionada, e os estudos sobre essa questão ganharam uma nova rota, em que aspectos sócio-históricos e culturais foram enfatizados (MARCUSCHI, 2002). Para Bakhtin, toda prática social ou individual de linguagem se organiza em conformidade com um gênero do discurso: o querer dizer do locutor se realiza na escolha de um gênero.

Os gêneros textuais, na visão desse autor, constituem-se histórica e sociointeracionalmente. São enunciados relativamente estáveis6 e podem ser identificados por um conteúdo temático, uma forma composicional e um estilo. A noção “relativamente

2 Bakhtin e seu círculo adotam a expressão “gêneros do discurso”. Entretanto, neste trabalho, optou-se pelo uso

da expressão “gêneros textuais”, uma vez que, segundo a perspectiva de lingua(gem) aqui adotada, texto e discurso se imbricam. O texto não se reduz à sua materialidade, pois dele são indissociáveis as relações culturais, sócio-históricas, em processos intercognitivos (CAVALCANTE et al. 2010).

Portanto, texto e discurso, na perspectiva aqui adotada, são indissociáveis. Os textos, em sua circulação social, são constituídos por discursos, o que implica uma inter-relação.

3

Na concepção de Bakhtin, enunciado é uma unidade concreta e real da comunicação discursiva.

A distinção, segundo Rodrigues (2005), entre enunciado e texto se estabelece no recorte de análise. Texto é visto não só em sua dimensão linguística, mas também em dimensão do enunciado. O que determina texto como enunciado são as inter-relações entre seu projeto discursivo e sua realização. Com base na distinção discurso (língua-discurso) e língua (língua-sistema) proposta por Bakhtin, a autora propõe que se pode conceber o texto como texto-sistema ou texto-enunciado. Na primeira concepção, não se leva em consideração aspectos sociais como constitutivos. É um olhar para sua materialidade linguística. Por outro lado, na segunda concepção, considera-se a teoria sociodiscursiva, em que o texto se manifesta na situação, na sua totalidade comunicativa.

4

De acordo com Rodrigues (2005), a tipificação deve ser entendida como tipificação social dos enunciados, ou seja, situações de interação verbal típicas, e não como sequências estruturais (narração, descrição, injunção, etc.). Tipo não diz respeito à forma, mas aos enunciados que apresentam certos traços comuns (regularidades), construídos historicamente em situação de interação relativamente estável, reconhecida pelos sujeitos.

5

Segundo Rodrigues (2005, p. 152), Círculo de Bakhtin é a denominação atribuída pelos pesquisadores ao grupo de intelectuais russos (Bakhtin, Voloshinov e Medvedev) que se reunia regularmente no período de 1919 a 1974.

6 O gênero textual apresenta dupla face, em que forças centrípedas (concentração) e forças centrífugas

(expansão) (BAKHTIN, 1998 [1924]) atuam. A força de concentração garante estabilidade aos gêneros, a economia das relações e a intercompreensão entre os falantes; já a força de expansão possibilita a variabilidade genérica e estilística dos participantes da comunicação.

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estável” não diz respeito a aspecto formal, mas reflete a historicidade, a natureza social e dialógica dos gêneros textuais.

Cada esfera de atividade social, devido à sua função socioideológica, formula, na/pela interação verbal, determinados gêneros textuais. Como as possibilidades de atividade humana são inesgotáveis e como cada esfera tem seu repertório de gêneros, à medida que a própria esfera se desenvolve, surgem, também, diversos gêneros. Os gêneros, portanto, não são modelos estanques; ao contrário, são plásticos, maleáveis, pois se adaptam às necessidades socioculturais e históricas da ação humana.

Nessa visão fundamentada em pressupostos bakhtinianos, a linguagem pressupõe o princípio de dialogicidade da ação comunicativa. A natureza socioideológica da linguagem constitui a realidade dos gêneros textuais. Isso significa que o querer-dizer do locutor se realiza na escolha de um gênero textual, cuja estruturação se dá por meio de um enunciado concreto.

Essa posição estabelece uma relação estreita entre processos históricos de formação dos gêneros e as ações humanas (individuais e coletivas): uma penetra na outra, de tal modo que a escolha de um gênero não é um ato individual, mas, sim, uma forma de inserção social e de realização de um plano comunicativo.

Os gêneros, como produtos sociais, são variados, múltiplos e heterogêneos, traços que dificultam uma proposta de classificação. No entanto, Bakhtin, ao estudar a natureza dos enunciados nas diferentes esferas de comunicação, e numa releitura da noção de gêneros ligada à literatura e à retórica, agrupa-os em primários (simples) e secundários (complexos). De acordo com o teórico russo, os gêneros primários, como a conversação e a carta pessoal, “são constituídos em circunstâncias de comunicação verbal espontânea”; por sua vez, os

gêneros secundários, como o romance, o teatro, o discurso científico etc., “aparecem nas

circunstâncias de uma comunicação cultural (principalmente escrita), mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 281).

Bakhtin não formaliza tipologias. O agrupamento em gêneros primários e secundários está assentado em um princípio histórico-social. Essa distinção reflete o percurso teórico desse autor e seu Círculo, o que nos permite afirmar não ser essa classificação de ordem funcional. Segundo o pensamento bakhtiniano, gêneros secundários, em seu processo de formação, incorporam e reelaboram gêneros primários.

A ênfase ao aspecto histórico-social parece ser consensual entre as várias abordagens sobre gêneros. Schneuwly e Dolz (2004), inseridos na corrente do interacionismo social da Escola de Genebra, retomam pressupostos bakhtinianos e definem gêneros como instrumentos

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sócio-históricos, constituídos de subsistemas semióticos diferentes, que permitem a mediação e a materialização de uma atividade de linguagem. Essa abordagem contempla, ao incorporar as práticas de linguagem às atividades em sala de aula, o tratamento pedagógico da multimodalidade.

Na visão de Freedman e Medway (1994), os estudos tradicionais definiam gêneros, sobretudo os literários, por suas regularidades de forma e de conteúdo. Esses autores afirmam que as análises atuais, ao conceberem a noção de gênero textual, levam em conta os aspectos socioculturais de utilização da língua, o que muito se aproxima das ideias bakhtinianas.

Ainda os autores argumentam que o trabalho de Bakhtin muito influenciou os estudos de gênero nos Estados Unidos. Bakhtin, ao eleger o enunciado como verdadeira unidade de comunicação verbal, diferentemente da oração, unidade da língua, não só alicerçou as bases para os atuais estudos sobre gêneros, como também enfatizou o caráter dialógico e interativo da linguagem, uma vez que os enunciados se constituem e se definem em relação com outros enunciados de outros falantes; afinal todo enunciado é delimitado por um início e um fim absolutos, sendo precedido pelos enunciados de outros sujeitos e seguidos pelos enunciados-respostas.

De acordo ainda com Freedman e Medway, além de Bakhtin, outros teóricos, tais como Miller, Swales e os da Escola de Sidney, muito contribuíram para o alargamento e a reformulação do conceito de gêneros textuais, entendidos como formas culturais e cognitivas de ação social, corporificadas na linguagem. Essas diferentes escolas levantam questões pertinentes ao estudo de gêneros e apresentam pontos de vistas que nem sempre coincidem; embora, de certa forma, dialoguem com a teoria bakhtiniana, na medida em que a definição de gênero não está baseada em critérios linguísticos, mas enunciativos, ligados às condições sócio-históricas e ideológicas, marcadas por situações reais de uso da língua.

Nos postulados de Bakhtin e de seu Círculo (1995 [1929-1930]), considerando o caráter sócio-histórico, ideológico e semiótico da linguagem, podemos observar uma visão integradora entre a linguagem verbal e a não verbal:

Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica, todos os signos não-verbais, banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele. (BAKHTIN, 1995 [1929-1930], p. 37-38).

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Nessa citação, podemos depreender que a relação entre ideologia e signos é marcada por um viés sociossemiótico. O material sígnico-ideológico se vincula à práxis, o que inclui as várias formas de manifestação da linguagem, forjadas sócio-historicamente nas interações sociais.

Consequentemente, o texto não é entendido somente como realização verbal e, desse modo, estamos de acordo com o pensamento de Machado (1999), segundo o qual:

[...] Bakhtin manifesta uma postura radical: em nenhum momento texto é tão somente produção verbal. Texto é signo que se constitui na fronteira do dito e do não dito, do verbal e do não verbal. Texto se confunde com enunciação: logo, a apreciação linguística revela-se insuficiente para dar conta da cena enunciativa, onde atuam outros códigos da vida cultural (MACHADO, 1999, p. 47).

Tudo que é ideológico tem um modo de realização sígnica, o qual não só compreende uma mensagem, mas também responde a um diálogo, determinado pela estrutura sociopolítica da sociedade. Nesse sentido, afirma Bakhtin que "ignorar a especificidade do material semiótico-ideológico é reduzir o fenômeno ideológico, é tomar em consideração e explicar apenas seu valor denotativo racional" (BAKHTIN, [1929-1930] 1995, p. 40).

A noção de ideologia, na perspectiva da teoria bakhtiniana, corresponde às diferentes formas de cultura. É o que Bakhtin (1995 [1929-1930]) caracteriza como “ideologia oficial”, que se apresenta de forma relativamente estável e é entendida como relativamente dominante. Além da ideologia oficial, há o que Bakhtin chamou de “ideologia não oficial” (ou ideologia do cotidiano), que se dá na comunicação da vida cotidiana. Corresponde, na literatura marxista, ao que se denomina de “psicologia social” e se refere aos diferentes substratos da consciência individual. Em outras palavras, “é considerada como a que brota e é constituída nos encontros casuais e fortuitos, no lugar do nascedouro dos sistemas de referência, na proximidade social com as condições de produção e reprodução da vida” (MIOTELLO, 2005, p. 169).

Entendemos, então, ideologia, segundo a visão bahktiniana, não apenas como manifestações socioculturais, mas também como valores que se confrontam, determinados por conflitos de interesses sociais. Nessa acepção, todo signo é, por natureza, ideológico.

Em resumo, os gêneros textuais são determinados sócio-historicamente e estão intrinsecamente relacionados a situações sociais de uso efetivo da língua, o que permite aos sujeitos empregá-los (ou reconhecê-los) com desenvoltura.

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2.2 A multimodalidade

Em uma visão integradora entre as diferentes linguagens, torna-se imprescindível o conceito de multimodalidade (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006 [1996]; KRESS; LEITE-GARCÍA; VAN LEEUWEN, 2008 [1997]; KRESS, 2010; DIONÍSIO, 2005), entendido como coocorrência de vários modos de representação da linguagem (semioses), que se integram na construção de significados em interações sociais. De acordo com Descardesi,

[...] qualquer que seja o texto escrito, ele é multi-modal, isto é, composto por mais de um modo de representação. Em uma página, além do código escrito, outras formas de representação como a diagramação da página (layout), a cor e a qualidade do papel, o formato e a cor (ou cores) das letras, a formatação do parágrafo, etc., interferem na mensagem a ser comunicada. Decorre desse postulado teórico que nenhum sinal ou código pode ser entendido ou estudado com sucesso em isolamento, uma vez que se complementam na composição da mensagem (DESCARDESI, 2002, p. 20).

O termo multimodalidade é proposto nos trabalhos de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]); Kress, Leite-García e van Leeuwen (2008 [1997]) e Kress (2010) com o intuito de se levar em consideração os diferentes modos de representação da linguagem (palavras, sons, cores, imagens, layouts etc.) na construção de sentidos, resultante dessa inter-relação. Os autores propõem, então, uma visão integradora entre diferentes modos de linguagem, como defendem Kress e van Leeuwen no seguinte trecho:

[…] Procuramos não ver a imagem como uma ilustração do texto verbal, e, desse modo, deixamos não só de tratar o texto verbal como prioritário e mais importante, como também de tratar o texto visual e verbal como elementos totalmente discretos. Procuramos ser capazes de olhar para toda a página como um texto integrado. (KRESS; van LEEUWEN, 2006 [1996], p. 177).7

Os estudos sobre multimodalidade no Brasil (DESCARDESI, 2002; BALOCCO, 2005; DIONISIO, 2005; VIEIRA et al., 2007) se baseiam, sobretudo, na obra de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]), Reading images: the Grammar of visual design (doravante GDV). Essa obra se constitui num importante direcionamento de caráter crítico-analítico para a análise da composição imagética e de seus contextos de uso.

Descardesi (2002) e Dionísio (2005), respaldando-se em Kress e van Leeuwen, afirmam que toda manifestação de linguagem é inerentemente multimodal. Do ponto de vista

7 […] we do no seek to see the picture as an ‘illustration’ of the verbal text, thereby treating the verbal text as

prior and more important, nor treat visual and verbal text as entirely discrete elements. We seek to be able to look at the whole Page as an integrated text. Our insistence on drawing comparisons between language and visual communication stems from this objective.

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de nossa investigação, isso se constitui num importante pressuposto para a análise referencial no gênero textual tiras cômicas, haja vista serem os referentes desencadeados na e pela inter-relação entre o verbal e o não verbal.

Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) argumentam que não é suficiente estudar a linguagem sozinha como foco de atenção para os interessados na construção e reconstrução social do significado. Em decorrência disso, propõem uma gramática da linguagem visual, a fim de descrever o modo como as imagens se combinam em diversos tipos de composições visuais (pintura, layouts de revistas, gráficos etc.). Nas palavras dos autores:

Intencionamos fornecer descrições das principais estruturas composicionais, que se estabeleceram como convenções no curso da história ocidental da semiótica visual e analisar como elas estão para produzir significado pelos produtores de imagens”. (KRESS; van LEEUWEEN, 2006 [1996], p.1).8 Com esse intento, os autores tomam como referência os trabalhos de Michel Halliday. Para eles, as metafunções propostas por Halliday podem ser empregadas como categorias aplicáveis a toda semiose social e humana, não somente à linguagem verbal. Na releitura realizada pelos autores, as metafunções ideacional, interpessoal e textual são denominadas de significados representacionais, interativos e composicionais, respectivamente. Essas categorias objetivam a análise de imagens cujos significados são sociais, portanto permeados por ideologias e pelas relações de poder.

Os significados representacionais, que correspondem à metafunção ideacional, aludem às representações pictóricas, ou participantes (indivíduos, lugares ou coisas). Há os participantes interativos, pessoas reais que produzem e interpretam as imagens inseridas em instituições sociais que regulam como as imagens devem ser interpretadas, e há os participantes representados, ou seja, o assunto da comunicação.

Os significados interativos, que correspondem à metafunção interpessoal, instanciam a relação entre os participantes representados, os produtores e espectadores das imagens, participantes ativos (sujeitos que assumem papéis sociais definidos), o que corresponde à relação tríade entre produtor/texto/leitor.

Por fim, os significados composicionais, que correspondem à metafunção textual, combinam estruturas visuais de recursos representacionais e interativos, resultando em uma unidade de significação, o que diz respeito à organização e à combinação simbólica do texto.

8

We intend to provide usable descriptions of major compositional structures which have become established as conventions in the course of the history of Western visual semiotics, and to analyse how they are to produce mening by contemporary image-makers.

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Se, por um lado, a GDV fornece subsídios importantes para o tratamento de recursos visuais, vistos como formas de expressão do conteúdo expresso na materialidade textual, e, consequentemente, também orientadores da negociação de sentido(s), por outro lado, foge aos nossos objetivos a aplicação de categorias de análise e de procedimentos metodológicos propostos pelos autores para o tratamento desses recursos, uma vez que o interesse desta pesquisa consiste em averiguar como o verbal e o imagético interagem e se imbricam no acionamento e na transformação de referentes, bem como na produção de efeitos humorísticos. Ademais, Kress e van Leeuwen admitem que, embora relacionados, o verbal e o imagético podem trazer significados diferentes e independentes,9 o que foge aos interesses da visão integradora aqui defendida, visto que, em nosso corpus, não há um descompasso entre imagem e texto escrito.

Essa crítica à GDV também é, de certa forma, compartilhada por Biasi-Rodrigues e Nobre (2010). Segundo esses autores, não fica claro, no trabalho de Kress e van Leeuwen, se as imagens analisadas equivalem à oração ou ao texto. Afirmam Biasi-Rodrigues e Nobre:

À medida que as categorias são enumeradas e ilustradas, percebemos uma inclinação dos autores em tratar as imagens de forma equivalente às orações – principalmente no que se refere ao sistema de representação ideacional. No entanto, é possível verificar numa única imagem a coexistência pacífica de diferentes formas de representação experiencial, de modo que é mais oportuno, em decorrência disso, equipararmos uma imagem à unidade que, em linguagem verbal, seria reconhecida como um texto (BIASI-RODRIGUES; NOBRE, 2010, p. 99).

Para Biasi-Rodrigues e Nobre, outra limitação se evidencia na análise dos exemplos elencados, que se constituem de imagens estáticas, as quais, em algumas situações, parecem estar dissociadas do verbal. Segundo os autores,

[...] por vezes observa-se que as imagens foram extraídas dos gêneros textuais de origem e analisadas isoladamente [...] de forma que a análise da imagem é realizada dissociada do texto verbal que a acompanha [...] (BIASI-RODRIGUES; NOBRE, 2010, p. 100).

Entretanto, em relação ao corpus desta pesquisa, não se pode pensar em imagens dissociadas do verbal. Além disso, o estabelecimento de critérios para análise/segmentação

9

De acordo com esses estudiosos, nem sempre o que é dito pela imagem pode ser dito pela escrita e vice versa: “This is not to say that all the relations that can be realized linguistically can also be realized visually – or vice versa, that all the relations that can be realized visually can also be realized linguistically” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006 [1996], p. 46).

Tradução nossa: Isso não quer dizer que todas as relações que podem ser realizadas linguisticamente também podem ser realizadas visualmente – ou vice versa, que todas as relações que podem ser realizadas visualmente também podem ser realizadas linguisticamente.

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das imagens, estáticas ou não, foge ao quadro da LT, cuja proposta teórico-metodológica, na abordagem de fenômenos textuais, evidencia a natureza sociocognitiva e interacional do processamento textual, em uma visão integrada.

2.3 Imagens: uma (re)construção sociocognitiva da realidade

Partindo do pressuposto de que os signos são culturalmente motivados (BAKHTIN, 1995 [1929-1930]; KRESS, van LEEUWEN, 2006 [1996]; BLIKSTEIN, 200310), é preciso conceber a imagem não como uma mera reprodução da realidade. Sua escolha e disposição, assim como a linguagem verbal, são mediadas por ideologias. Entretanto, para uma melhor compreensão do papel das imagens, que, juntamente com o verbal, fornecem ao leitor pistas para negociação referencial, é preciso analisá-las em um contexto sociocognitivo interacional (RAMOS, 2007);11 afinal, seu processamento também implica a mobilização de fatores sociocultural-ideológicos, entre outros, como veremos no capítulo 4.

Cagnin (1975, p. 30) afirma serem as imagens (signos icônicos) caracterizadas por seu caráter analógico,12 pois guardam intíma relação de semelhança com o objeto representado, dando uma impressão de quase realidade. Trata-se, para Cagnin, de uma representação imitativo-figurativa, como cópia de alguma coisa.

Essa visão parece, também, ser compartilhada por Eisner (2005), para quem uma imagem “é a memória de um objeto ou experiência gravada pelo narrador, fazendo uso de um meio mecânico (fotografia) ou manual (desenho)” (EISNER, 2005, p. 19). Dessa forma, a imagem (desenho) se constitui como representação sociocultural, cujo sentido é sugerido pelo autor e interpretado pelo leitor. Nesse processo interpretativo, o quadrinista faz uso de imagens estereotipadas, que se tornam ícones e são usadas como parte da linguagem narrativa gráfica. Os desenhos são motivações sócio-histórico-culturais.

Existem, então, na memória coletiva, imagens estereotipadas, as quais, como parte da narrativa gráfica, aludem a conhecimentos partilhados pelos sujeitos. Eisner ilustra isso na sequência, figura 1, de personagens associados a uma ocupação.

10 Blikstein (2003), ao argumentar sobre a ilusão referencial, diz haver uma insuficiência entre signo e coisas.

Para ele, tanto a percepção da realidade quanto a linguagem estão indissoluvelmente ligadas à práxis social, o que faz com que o mundo seja fabricado pelos sujeitos por meio de “óculos sociais”.

11 Segundo Ramos (2007, v. 1, p. 56) “a imagem não é apenas um dado extratextual. Defendemos que seja parte

integrante do texto e, como tal, vista e analisada dentro de um contexto de uso sociocognitivo interacional”.

12 De acordo com Cagnin (1975, p. 32), analógico diz respeito à similaridade de forma da imagem com a forma

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FIGURA 1 – Ícones na narrativa gráfica Fonte: Eisner (2005, p. 22)

Como reproduções facilmente reconhecíveis da conduta humana, a criação de imagens estereotipadas resulta de uma experiência social, interferindo na forma como um personagem deveria aparecer para o leitor. Eisner exemplifica isso numa trama de quadrinhos em que o visual padronizado de um médico pode ser abandonado em favor de um tipo mais conveniente ao ambiente da história.

FIGURA 2 – Protótipo de um médico Fonte: Eisner (2005, p. 22)

Há uma relação de semelhança entre a imagem desenhada e o objeto representado, dando impressão de uma quase realidade. Como todo signo é ideológico (BAKHTIN, 1995 [1929-1930]), os modos de construção da realidade variam conforme as intenções dos sujeitos e seus interesses, numa dimensão sociocultural.

Eisner (2001) afirma, ainda, que, na compreensão das imagens, os gestos, as posições corporais e as feições dos personagens guardam relação com o verossímil, pois o artista, no traçar do desenho, se baseia em observações pessoais e no inventário de gestos comuns e compreensíveis para o leitor. Para exemplificar a recorrência de certos gestos, construídos a partir das experiências dos sujeitos, propõe o autor um microdicionário de gestos:

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FIGURA 3 – Microdicionário de gestos Fonte: EISNER (2001, p. 102)

McCloud (2005), ao tratar da representação de recursos visuais, propõe um triângulo pictórico a fim de evidenciar diferentes maneiras como um personagem pode ser desenhado:

FIGURA 4 – Plano das figuras Fonte: McCloud (2005, p. 51)

Na base, da esquerda para a direita, vai-se do real ao icônico; na vertical, do real ao abstrato. Os traços de um personagem podem ser, então, desenhados de maneira mais realista ou mais icônica.

A imagem, segundo os autores citados anteriormente, remete, de forma mais realista ou não, ao conceito de representação construída socioculturalmente. Entretanto, segundo o paradigma da sociocognição, essa visão não se sustenta. Não se nega a existência da realidade, mas não se pode, somente, conceber a imagem como uma representação

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extensional do mundo; afinal, segundo Marcuschi (2007), o cérebro não armazena representações do mundo, como um espelho da realidade, como se o mundo, as diferentes linguagens e a cognição estivessem relacionados diretamente. Assim sendo, o desenho de personagens não retrata, apenas, a forma de seres humanos, mas a maneira como o autor constrói essa forma e como o leitor a processa, em um processo de reelaboração interpretativa. A imagem (desenho e contorno dos personagens) é uma instrução pragmática, sociocognitiva e interativamente processada, que serve de ancoragem para negociação de sentidos e para (re)construção de referentes visuais (objetos de discurso). Assim, de acordo com Ramos (2007, v. 3, p. 67), a “presença de personagens fixos nas narrativas das tiras exige conhecimento compartilhado dos parceiros da interação, tanto para a produção do texto como para sua compreensão (e também do efeito de humor)”.

Embora admitamos ser a imagem uma construção sociocognitiva, não se constitui foco de análise desta pesquisa averiguar somente o papel de entidades visuais na emergência de referentes, levando em conta que, em nosso material de análise, a referenciação em tiras do Gatão de meia-idade se processa no e pelo imbricamento verbal-imagético. As considerações feitas sobre o processamento sociocognitivo de referentes visuais são de relevância fundamental para análise de tiras cuja composição textual é constituída apenas por signos visuais (icônico, plástico e de contorno, cf. RAMOS, 2007).

2.4 Gênero tira cômica

Ramos (2007, v. 2, p. 108-109) constatou que diferentes estudiosos se referem às tiras de várias maneiras: “tiras em quadrinhos” (INNOCENTE, 2005); “tira de jornal” (FRANCO, 2004), “tira diária” (CIRNE, 1975), “tira jornalística” (DISCINI, 2005), “tira de humor” (RAMOS, 2005), “tiras humorísticas” (MAGALHÃES, 2006), “tirinha” (KOCH; ELIAS, 2006) ou simplesmente tiras, como usa a maioria dos autores. Como as tiras que compõem o

corpus deste trabalho utilizam estratégias textual-discursivas semelhantes às das piadas,

adotamos a expressão tira cômica, em conformidade com Ramos (2007, 2009, 2011).

Segundo a teoria baktiniana, novos gêneros surgem numa espécie de transmutação de gêneros já existentes. Por conjugar o visual e o linguístico em sua composição, são atribuídos às tiras de quadrinhos vários antecedentes. Nesse sentido, historicamente (BIBE-LUYTEN, 1985, p.16), as tiras e as histórias em quadrinhos remontam à arte da Pré-História, época em que o homem narrava, por meio da linguagem gráfica nas pinturas das cavernas, os fatos que

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vivenciava. Posteriormente, foram os antigos egípcios que contavam, por meio de hieróglifos, as crenças e o dia a dia da cultura egípcia. Eisner (1999, p. 101) documenta essa evolução:

FIGURA 5 – Uso de imagens na experiência humana FONTE: Eisner (1999, p. 101)

Durante o processo civilizatório, várias manifestações, tais como tapeçarias antigas, mosaicos e afrescos, registram, por meio de imagens, a história (LUYTEN, 1985). Todavia, é no final do século XIX, com o surgimento de técnicas de reprodução gráfica, que a mistura entre textos e desenhos ganha projeção com a publicação de livros ilustrados.

As tiras cômicas, na arte de conjugar palavras e imagens, podem ser consideradas, bakhtianamente falando (2003 [1952-1953]), como um gênero de caráter secundário, pois, além de serem produzidas em esferas sociais formalizadas e especializadas (midiáticas), simulam uma conversação espontânea (LINS, 2004).

Iannone e Iannone (1994) afirmam que as tiras surgiram, inicialmente, em jornais impressos.13 Segundo esses autores, as histórias em quadrinhos (HQ’s), ou quadrinhos, eram publicadas nos jornais dominicais, na forma de tabloide e, inicialmente, tinham um conteúdo cômico (comics), pois combinavam piadas e situações engraçadas envolvendo crianças e suas

13 O jornal impresso ainda é o principal suporte das tiras, além de revistas. Há casos em que as tiras são reunidas

e publicadas em livro, como ocorreu com as tiras que formam o corpus desta pesquisa. Com o desenvolvimento de novas tecnologias digitais, as histórias em quadrinhos (HQ’s) e as tiras têm na internet um novo suporte, desencadeando novos processos interativos e de leitura (FRANCO, 2008 [2004]).

Referências

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