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Temas per se e seu potencial de negociação

CAPÍTULO 5. ANÁLISE DOS RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.3 Síntese e análise comparativa do potencial argumentativo dos temas de re dação

5.3.1 Temas per se e seu potencial de negociação

Baseados na análise descritiva que fizemos no capítulo anterior, optamos por concentrar na Tabela 1 a natureza do tema. É pertinente identificar, nos temas isola- dos, se há abertura ou não para o contraditório, para o debate, se o tema se mostra flexível para a negociação ou, pelo contrário, conduz coercitivamente os candidatos à

justificação de uma tese maior já implícita. Esse entendimento poderá se modificar,

como veremos mais adiante, de acordo com a leitura e a classificação dos textos mo- tivadores (seções 5.3.2 e 5.3.3).

Tabela 1. Temas e seu potencial de escolha de perspectiva/ponto de vista na produção dis- sertativa-argumentativa, por ano e por sistema de exame vestibular

Ano do exame (Enem- Fuvest)

Enem Fuvest

Tema Discutibilidade Tema Discutibilidade

2009-10 O indivíduo frente à

ética nacional 1

Substituição do real pe-

las imagens 1 2010-11 O trabalho na cons- trução da dignidade humana 0 O altruísmo e o pensa- mento a longo prazo

ainda têm lugar no mundo contemporâneo?

1

2011-12

Viver em rede no sé- culo XXI: os limites entre o público e o

privado

1

Participação política: in- dispensável ou supe-

rada?

2012-13

O movimento imigra- tório para o Brasil no

século XXI

1

Imagem de shopping center e mensagem: “Aproveite o melhor que o mundo tem a oferecer com o cartão de crédito

X”.

1

2013-14

Efeitos da implanta- ção da Lei Seca no

Brasil 0 Novas gerações e os idosos 1 2014-15 Publicidade infantil em questão no Brasil 1 “Camarotização” da so- ciedade brasileira: a se- gregação das classes sociais e a democracia

0

2015-16

A persistência da vio- lência contra a mulher

na sociedade brasi- leira

0 As utopias: indispensá-

veis, inúteis ou nocivas? 1

2016-17

Caminhos para com- bater a intolerância religiosa no Brasil

0 O homem saiu de sua

menoridade? 1

2017-18

Desafios para a for- mação educacional de surdos no Brasil

0 Devem existir limites

para a arte? 1

2018-19

Manipulação do com- portamento do usuá-

rio pelo controle de dados na internet

0

De que maneira o pas- sado contribui para a compreensão do pre-

sente

0

Soma 4 8

No Enem, os temas por si próprios, em 60% dos exames analisados, estabe- leciam uma direção única de argumentação. Uma vez que os candidatos não podem ferir os direitos humanos em sua argumentação, determinados temas tornam-se im- periosamente direcionados por sua própria enunciação. Ainda que seja importante sinalizar para os estudantes ingressantes no ensino superior a opção por valorizar os direitos humanos como uma premissa de entrada, ao tomar temas que remetem a essa adoção inexorável, limita-se a oportunidade de se deixar ver na produção textual o uso mais pleno das operações argumentativas. Em “O trabalho na construção da dignidade humana” (2010), por exemplo, está expressa a direção do que se deve de- fender uma vez que há nesse tema valores transmitidos dos examinadores para os candidatos – o trabalho deve construir a dignidade humana. Recorrendo novamente

às reflexões de Golder (1992c, p. 105) abordadas no capítulo 1 sobre a compartilha- bilidade: um tema proposto para a redação leva os candidatos a efetuar uma escolha, que não pode ser inteiramente subjetiva. Ele não deve apenas sustentar uma posição, mas também atentar para as regras admitidas nesse vestibular. Para que haja aceita- ção dos examinadores, os argumentos devem apelar para os valores e as experiências compatíveis com o manual do Enem – relação escritores-leitores (candidatos-leitores). Vejamos outro caso ainda no Enem. “Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil” (2013) conteria uma orientação para a defesa da lei em questão. Trata-se de uma regulamentação (Lei 11.705), inicialmente de 2008, concebida para inibir – pu- nindo severamente – o consumo de álcool pelos motoristas e proibir a consumo de bebidas alcoólicas em estabelecimentos próximos a rodovias federais, entre outras providências. O objetivo final da lei é diminuir o número de acidentes, os fatais sobre- tudo. Ora, é muito provável que esse conjunto de implicações seja do domínio cotidi- ano dos candidatos e, portanto, altamente esperado também que se orientem para valorizar a Lei Seca apoiados em seus efeitos.

Os outros quatro temas categorizados na tabela 1 como não discutíveis dire- cionam ainda mais a justificação de uma tese que nos parece mais do que implícita. “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira” (2015) e “Mani- pulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet” (2018) con- têm termos norteadores da defesa de um ponto de vista: persistência e manipulação. Afirma-se que uma violência específica persiste no Brasil e que o usuário da internet é manipulado pelo controle de dados. Analisando-se isoladamente cada um desses dois temas, vemos a implicação dos candidatos em argumentar em favor das afirma- ções neles contidas. Algo semelhante se dá em dois anos consecutivos – 2016 (“Ca- minhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”) e 2017 (“Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”). Como se formassem um par de indica- dores de finalidade, “caminhos para” (2016) e “desafios para” (2017) sinalizam, expli- citamente neste caso, os objetivos dos textos a serem produzidos: defender o com- bate à intolerância religiosa e promover a educação de surdos no Brasil.

Note-se, por outro lado, que 40% dos temas per se – percentual significativo – poderiam promover o encaminhamento para uma argumentação com espaço para o contraditório e a contra-argumentação. Vejamos tais temas identificados no Enem: “O indivíduo frente à ética nacional” (2009), “Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado” (2011), “O movimento imigratório para o Brasil no século

XXI” (2012) e “Publicidade infantil em questão no Brasil” (2014). Foram classificados como discutíveis pela margem que, a priori, concederiam ao debate. Os segmentos “frente à ética nacional (2009), “entre o público e o privado” (2011) e “em questão” (2014) favorecem, ou melhor, parecem orientar para a abertura de perspectivas que sua significação enseja. Sobre o movimento imigratório para o Brasil (2012), parece- nos haver iguais ou até mais possibilidades de negociação, tamanho o número de implicações que o tema em si poderia sugerir.

Cabe neste momento detalhar a tendência da Fuvest. Dos temas per se em discussão, 80% apresentam-se como discutíveis. Os candidatos, diante apenas e so- mente desses temas, teriam mais de uma perspectiva para abordar e margem para argumentar e contra-argumentar sobre diferentes pontos de vista. Um procedimento recorrente na construção dessa abertura é constituir-se de frases interrogativas. Em 6 desses 8 temas discutíveis (75%), uma ou mais perguntas encaminham os vestibu- landos à negociação: “O altruísmo e o pensamento a longo prazo ainda têm lugar no mundo contemporâneo?” (2011), “Participação política: indispensável ou superada?” (2012), cinco questões sobre a posição de um ministro japonês acerca de idosos (2014), “As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas?” (2016), “O homem saiu de sua menoridade?” (2017), “Devem existir limites para a arte?” (2018). Filosofia, polí- tica, arte são campos do conhecimento ou da atividade humana que embasam esses questionamentos e não se apresentam aos candidatos de modo fechado ou pré-dire- cionado. Tornam-se, assim, propícios à reflexão própria de quem escreve e ao debate. Já os outros 2 temas discutíveis mostram-se igualmente abertos uma vez que apre- sentam oposições no próprio interior de seu enunciado. Em “Substituição do real pelas imagens” (2010), o candidato poderia se ver incentivado a argumentar sobre o mundo concreto e um mundo abstrato, não necessariamente orientado a eleger uma posição como mais adequada. Já o tema de 2013 não foi sequer expresso com exatidão, dei- xando-se a cargo dos candidatos seu entendimento e a criação de um debate (nego- ciação) acerca das sugestões de ideias trazidas por uma imagem de um anúncio pu- blicitário (pessoas transitando por um shopping center e, segundo a mensagem trans- mitida, aptas a usufruir do consumo possibilitado por um cartão de crédito).

Entre 2010 e 2019, um percentual de 20% dos temas per se da Fuvest impe- diriam o contraditório. “ ‘Camarotização’ da sociedade brasileira: a segregação das classes sociais e a democracia” (2015) determina a justificação do que se afirma: a segregação social é um tema sensível às disciplinas cursadas pelos candidatos da

Fuvest durante o ensino médio e deverá ser condenada, único caminho de argumen- tação aceitável se forem respeitados os valores compartilhados socialmente pela ins- tituição que seleciona os estudantes. Com “De que maneira o passado contribui para a compreensão do presente” (2019), há também de se seguir a orientação explícita no próprio tema.