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Tempo e aspecto caráter episódico vs não-episódico do predicado

Sentenças Universalmente Quantificadas Fatores de Interação

3.3.2. Tempo e aspecto caráter episódico vs não-episódico do predicado

N esta seção, vamos nos deter em outros aspectos do predicado que, por sua importância, não poderiam deixar de ser considerados aqui: faremos um passeio m uito breve pelos campos do tempo e aspecto verbais. N ão vamos esgotar estes pontos, pois, como se verifica na literatura, a expressão do tempo e aspecto é extremamente complexa, e mereceria

muito mais do que uma simples seção de um trabalho. Por ora, o que podemos apresentar são alguns comentários em torno de algumas poucas sentenças, com entários estes que devem, futuramente, ser melhor apurados, teórica e empiricamente.

Acabamos de ver que as sentenças universalmente quantificadas que são a própria expressão de leis compõem-se com predicados EL e SL não-episódico, não aceitando os predicados SL que expressam episódios, conforme vemos em (23);

(23) a. Todo tigre é mamífero. (IL)

b. Todo cavalo come aveia. (SL n-episódico)

c. Toda criança andava de patinete naquela época. (SL n-episódico) d. '‘Todo tigre fugiu do zoológico. (SL episódico)

e. ■'Toda criança saiu mais cedo do colégio ontem (SL episódico)

Já as sentenças universais do tipo G2 (com ‘to d o s’) aceitam todos esses tipos de predicado. Veja:

(24) a. Todos os tigres são mamíferos. b. Todos os cavalos comem aveia.

c. Todas as crianças andavam de patinete naquela época. d. Todos os tigres fugiram do zoológico.

e. Todas as crianças saíram mais cedo do colégio ontem.

O primeiro tipo de sentenças universais (em (23)) se compõe, então, com tem pos verbais como o presente (‘é’, ‘com e’) e o pretérito imperfeito ( ‘andava’) mas não aceita o pretérito perfeito ( ‘fugiu’, ‘saiu’). O segundo tipo de sentenças com quantificação universal, contudo, não sofre restrições: aceita qualquer um dos três tem pos verbais mencionados, inclusive o futuro:

(25) a. Todos os cavalos vão comer aveia.

b. Todas as crianças vão andar de patinete (no ílituro). c. Todos os tigres vão fiigir do zoológico.

d. Todas as crianças vão sair mais cedo do colégio amanhã. e. Todos os homens vão ser sempre canalhas.

A pergunta que nos colocamos é: po r que o tipo G1 de sentenças universais (as

lawlike por excelência, como temos argumentado) não aceita o tempo pretérito perfeito,

mas combina-se muito bem com o presente e o pretérito imperfeito? A resposta para essa questão pode estar relacionada a uma categoria: o aspecto verbal que, via de regra, refere-se aos “ ‘diferentes modos de ver a constituição temporal interna de uma situação’, [modos estes] representados pelos aspectos perfectivo e imperfectivo” (Coan, 1997:56).

Segundo Coan (1997:46), “o pretérito perfeito, no português, codifica via de regra um tempo passado vinculado ao tempo de fala, sendo portanto um tempo absoluto” . A autora continua dizendo que “situações seqüenciais normalmente são codificadas por esse tem po” . Assim, temos:

(26) Eu acordei às sete horas, daí troquei de roupa, escovei os dentes, tomei café e fui pra UFSC.

--- acordei---troquei--- escovei---tom ei--- fui--- TF--- (TF = tempo de fala)

Olhando para (26) e seu diagrama, atentamos para uma questão: qual o esquema temporal subjacente aos predicados no pretérito perfeito ( ‘acordei’, ‘troquei’, etc.)? Estamos nos referindo à expressão aspectual da duração nos predicados, e queremos saber “que forma assume a pergunta sobre duração - que em certos casos é “por quanto tem po?” e

Como contraponto, Coan nos apresenta o pretérito perfeito anterior e o pretérito mais-que-perfeito como tempos relativos-absolutos. Isso porque eles estão vinculados a um ponto de referência que não o tempo de fala, mas o próprio pretérito perfeito. Para maiores detalhes ver p. 46

em outros “em quanto tempo?” (Ilari, 1997:39). Para responder a essa questão, recorremos a Ilari (1997) que cita Vendler (1967).

Pelos critérios de Vendler, o português pode assumir a seguinte classificação quanto ao esquema temporal subjacente (a constituição temporal interna, mencionada anteriormente): (i) processos pontuais; (ii) processos duráveis, que evocam a idéia de “tempo gasto”, “tempo empregado” ; e (iii) processos duráveis que evocam a idéia de “tempo escoado” e, entre estes últimos, os que indicam estados (como ‘ser brasileiro’) e os que indicam atividade (como ‘correr’, ‘ler’) (cf. Ilari, 1997:39).

São processos pontuais, segundo a lição de Vendler, aqueles expressos no perfeito do indicativo e que se submetem a certos testes sintáticos-semânticos como a aplicação de adjuntos do tipo ‘naquele exato instante’, sem que, no entanto, deixem de ser considerados em seu todo. Segundo Ilari (1997:39-40), são seguramente pontuais: ‘a luz apagou-se’, ‘Pedro notou que havia mais uma pessoa na sala’, ‘assinou a carta’, ‘alcançou o topo do pau-de-sebo’, ‘matou a charada’, ‘empurrou Jo ão ’, ‘deu um empurrão no carro ’; enquanto que ‘empurrou o carro’, ‘acreditou em minhas palavras’, ‘correu’, ‘amou M aria’, ‘Pedro traçou o círculo’ e ‘escreveu a carta’ ou são não-pontuais, ou casos de dupla análise ou, ainda, casos em que provavelmente o critério não se aplica."’

E são processos não-pontuais ou duráveis aqueles que evocam idéia de tempo empregado (‘fiz os trabalhos de quatro matérias em uma semana’), ou evocam idéia de tem po escoado: ‘X andou de barco pela baia por várias horas’.

Segundo Ilari, “tanto o imperfeito quanto o perfeito se aplicam a predicados durativos, mas com uma diferença (...): usando o imperfeito, sugere-se que o estado de

Para maiores detalhes, ver Ilari. 1997:40-41. Os exemplos são de Ilari, p.42.

coisas descrito pelo predicado tem limites abertos (...); usando o perfeito sugere-se o contrário” (p. 44).^^ Por exemplo;

(27) Em 1962, Zequinha jogava para o palmeiras. (28) Em 1962, Zequinha jogou para o Palmeiras.^'*

Assim, para a sentença em (27) (com o imperfeito), o esquema associado seria o em (29), ao passo que para a sentença em (28) (com o perfeito), o esquema seria como o em (30):

(29) imperfeito

a b c d

I

I

I

I

Onde: a-d é o ano de 1962; b-c é o segmento visado pelo adjunto ‘em 1962’ (que pode ser um periodo mais curto do que o ano de 1962, no limite de um momento); e ,f são o momento inicial e final do contrato de Zeqinha, aquém e além dos limites visados pelo adjunto, e possivelmente transbordando a-d.

Coan (1997:56, citando Conrie, 1981) diria, quanto ao aspecto, que o “ ‘imperfectivo presta especial atenção à estrutura temporal interna da situação', esta (a situação) separada em fases e vista em toda a sua complexidade". Já a “ ‘perfectividade indica a \dsão de uma situação como um todo único'”, (o negrito é nosso)

(30) perfeito

a d

I_________ I____ I__________ L

I____ I___________ ^

I

I

i

I

_k_____

i

____________

Onde: a-d é o ano de 1962; b-c é o segmento visado pelo predicado, indicando uma

situação localizada nos limites de 1962. (cf. Ilari, 1997:45 - o negrito é nosso).

A diferença entre esses dois tem pos do passado é capturada em mais estes exemplos:

(31) Em 1850 o Brasil era uma monarquia. (32) Em 1850 o Brasil foi uma monarquia.

As sentenças acima declaram fatos distintos. A primeira afirma que o regime monárquico no Brasil se deu em todos os momentos de 1850, admitindo-se inclusive que o regime de governo possa ter iniciado antes e terminado após 1850. A segunda sentença, por outro lado, afirma (contrariamente à verdade histórica!) que o Brasil adotou e abandonou o regime monárquico nos limites do ano de 1850: os limites de tempo são fechados.

Esses exemplos, e seus esquemas (o imperfeito “transbordando” os limites do tem po e o perfeito mantendo-se nos limites do te m p o ), nos sugerem “que o perfeito trata os processos duráveis como pontuais. Haveria assim uma espécie de polarização: do perfeito no sentido de pontualização, e do imperfeito no sentido de realçar os valores propriamente durativos” (não-pontuais) da situação - c f Ilari, ] 997:46.

Por tudo isso é que uma sentença universal do tipo G1 (com ‘to d o ’) não com porta o perfeito do indicativo, pois a expressão mais canônica de lei (cujos individuais não precisam nem ao menos ser instanciados e que cujos predicados expressam propriedades de individuais ou estágios não-episódicos desses individuais) não poderia vir marcada por um tempo que expressa + pontualidade na linha do tempo. Quer dizer, para sentenças universais que podemos chamar de leis mais canônicas, fechar os limites do estado de coisas que o predicado descreve, isto é, fazer da lei mais “fato” (algo mais episódico), seria o mesmo que descaracterizá-la quanto ao fator: lawlikeness.

O mesmo ocorre com o presente (referência temporal coincidente com o tem po de fala, considerado, por sua vez, o ponto de referência universal - c f Coan, 1997:36) que, nas sentenças universais G l, não marca tempo mas aspecto (veja Ilari, 1997 e Silvério, 2001), Aqui também o processo é não-pontual ( ‘Todo cavalo come aveia’; ‘Todo homem é m ortal’), justamente para evidenciar a atemporalidade que existe quando se está falando de algo que não se remete a nenhum evento/episódio particular.

Mais tarde veremos que uma sentença universal com estrutura ‘todo N ’ pode expressar um episódio/situação particular, mais pontual (vir no pretérito perfeito), mas apenas quando explicitar leitura partitiva: “Todo cavalo do aras comeu aveia ontem ’. Além disso, lembremos do que já foi mencionado na nota 13: dissemos que o acréscimo do item ‘já ’ to m a uma sentença inaceitável como ‘^T odo menino jogou bola’ em um a sentença aceitável:

(33) Todo menino já jogou bola (um dia).

Segundo Negrão (no prelo: 16), Isso ocorre, porque “The adverb ‘já ’ (...) makes the past tense an indefmite tense” . Digamos que ele “recebe” um predicado que expressa um processo mais pontual e realça seus valores mais durativos (como do pretérito imperfeito ‘jogava’: ‘Todo menino jogava bola (naquela época)’). Assim é que se tomamos a sentença

como (23e) ( ‘''T oda criança saiu mais cedo do colégio (ontem)), acrescentamos o advérbio ‘já ’ e substituímos ‘ontem ’ por ‘um dia’ (que expressa menos pontualidade que ‘ontem ’)^^, a sentença torna-se aceitável, uma perfeita sentença universal do tipo G1 (com ‘to d o ’):

(34) Toda criança já saiu mais cedo do colégio um dia.

Em síntese, mais um fator distingue um tipo de sentença universal do outro. O tipo G1 (‘todo N pred’) assume um esquema temporal subjacente mais durativo, ou menos pontual e atemporal, por assim dizer, enquanto que o tipo G2 (‘todos detpi N pred ’) assume tanto esquemas temporais menos pontuais ( ‘Todos os tigres são mamíferos’; ‘Todos os homens são canalhas’; ‘Todas as crianças andavam de patinete naquela época’) como mais pontuais (‘Todos os tigres fugiram do zoológico’).