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CAPÍTULO 2: EDUCAÇÃO INFANTIL E A CRIANÇA

4.4 Tensão entre visibilidade e invisibilidade: a importância do multiculturalismo

Orientar professores para lidarem com a diversidade cultural tem sido ressaltado nos documentos curriculares oficiais e um dos principais é o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. O RCNEI propõe aos profissionais de educação, um olhar mais atencioso e cuidadoso para a diversidade cultural.

Estes volumes pretendem contribuir para o planejamento, desenvolvimento e avaliação de práticas educativas que considerem a pluralidade e diversidade ética, religiosa, de gênero, social e cultural das crianças brasileiras, favorecendo a construção de propostas educativas que respondam às demandas das crianças e seus familiares nas diferentes regiões do país (Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil, 1998,Vol.1,2 e 3, p.7).

O trabalho com a diversidade e o convívio com a diferença possibilitam a ampliação de horizontes tanto para o professor quanto para a criança. Isto porque permite a conscientização de que a realidade de cada um é apenas parte de um universo maior que oferece múltiplas escolhas. .Assumir um trabalho de acolhimento às diferentes expressões e manifestações das crianças e suas famílias significa valorizar e respeitar a diversidade, não implicando a adesão incondicional aos valores do outro. Cada família e suas

108 crianças são portadoras de um vasto repertório que se constitui em material rico e farto para o exercício do diálogo aprendizagem com a diferença, a não discriminação e as atitudes não preconceituosas. (Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil,1998, volume 1, p. 77)

Apesar de existirem documentos que determinam tais práticas, nem sempre elas são desenvolvidas nas escolas. A ausência de discussões como esta na escola, desencadeia problemas crescentes de todos os tipos, já que pode vir a acontecer a não motivação para o desenvolvimento por uma cultura de aceitação de si, como parte de um grupo de valor, sem rotulações.

Estudos realizados sobre o tema (CAVALLEIRO, 2000; COSTA, 2011; BISCHOFF 2013; GOUVEIA, 2005) têm mostrado a existência crescente de trabalhos que abordam aspectos como o silenciamento, o discurso racista, o preconceito e a discriminação enraizados na nossa cultura e que passam despercebidos em nossas escolas. Os mesmos se manifestam de forma implícita no ambiente escolar, marcados por imagens estereotipadas.

Para um melhor entendimento sobre as questões levantadas, este subcapítulo se organiza da seguinte forma: primeiramente destaca o conceito de multiculturalismo, abordando as suas polissemias e perspectivas na visão de alguns autores da área, além de apresentar ao leitor a escolha da perspectiva que irá orientar esta pesquisa e em seguida reflete a importância da contação de história e a sua possível contribuição para a valorização da identidade negra.

4.1.1 O multiculturalismo em questão: suas polissemias e perspectivas.

O multiculturalismo vem se apresentando como um termo comum na fala dos educadores e dos atores pedagógicos, mostrando diversas facetas, sentidos e significados ao termo. Esta pluralidade acaba evidenciando críticas negativas ao multiculturalismo e a exaltação da pluralidade cultural. Tal aspecto fica mais claro com o argumento de Canen (2012) que aponta,

O multiculturalismo é um termo que tem sido empregado com frequência, porém com diferentes significados [...] Críticos e defensores do mesmo travam, muitas vezes, lutas e discussões em torno de um conceito que, na verdade, pode estar sendo entendido de formas diferentes para os envolvidos em tais disputas. ( p. 237)

109 Canen & Xavier (2012) argumentam que é importante reconhecer a polissemia existente do termo multiculturalismo, as autoras alertam que muitos estudiosos englobam desde perspectivas mais liberais ou folclóricas, até visões mais críticas.

Para orientar as visões citadas é importante mostrar os caminhos que as mesmas realizam, principalmente no contexto escolar. A concepção do multiculturalismo folclórico apresenta práticas que mostram as festas, os credos, as formas de cultura estereotipada de diversos povos, raças, religiões, entre outros. Isto acontece, por exemplo, quando se “festeja” o dia do índio, de Zumbi de palmares, da mulher, entre outras festividades. Canen (2012) apresenta que o currículo valoriza a pluralidade cultural, porém reduz as estratégias de trabalho a aspectos exóticos, folclóricos e pontuais, como receitas típicas, festas, dias especiais- dia do índio, por exemplo. (CANEN, 2012, p.237)

Já a perspectiva crítica traz os questionamentos sobre a construção dos preconceitos e das diferenças. Nesse sentido, o multiculturalismo crítico é mais avançado do que o folclórico, pois ele vai além do reconhecimento da diversidade cultural trabalhada pelas tradições. O mesmo é capaz de possibilitar o desvelamento das relações desiguais desse jogo de poder entre as culturas.

No entanto, Canen (2012) defende que as críticas negativas que o multiculturalismo sofre são em relação à perspectiva folclórica, porém muitas críticas acabam sendo direcionadas ao termo multiculturalismo e não a uma perspectiva somente. Outra perspectiva tem tido destaque nas discussões sobre o termo: o multiculturalismo pós-colonial. Canen (2012) apresenta que esta perspectiva tem tensionado o crítico, que cada vez tem buscado articular as visões folclóricas às discussões sobre as hierarquias existentes entre as culturas, mostrando a construção histórica desses emaranhados de preconceitos e discriminação. O multiculturalismo pós- colonial aponta para um “ir além” do desafio a preconceitos, o mesmo “busca identificar, na própria linguagem e na construção dos discursos curriculares, as formas pelas quais as diferenças são construídas.” (CANEN, 2012, p, 238)

Para o diálogo realizado na presente qualificação, a perspectiva pós-colonial é a escolhida, pois a mesma não direciona apenas o foco à questão da diversidade cultural e identitária, ela analisa os processos discursivos pelos quais as identidades são formadas. Canen (2012) aponta

110 [...] tal visão de multiculturalismo não se limita a constatar a pluralidade de identidades e os preconceitos construídos nas relações de poder entre as mesmas. Vai, isto sim, analisar criticamente os discursos que “fabricam” essas identidades e essas diferenças, buscando interpretar a identidade como uma construção, ela própria múltipla e plural. Dessa maneira, a própria identidade é o objeto de análise curricular a partir do multiculturalismo pós- moderno ou pós-colonial. ( p.239)

Um dos conceitos chave para a discussão de identidade dentro desta perspectiva multicultural é o de hibridização ou hibridismo. O conceito argumenta que “a construção da identidade implica em que as múltiplas camadas que a perfazem a tornem híbrida, isto é, formada na multiplicidade de marcas, construídas nos choques e entrechoques culturais”. (CANEN, 2012, p, 239)

Ainda discutindo sobre identidade, Canen (2012) propõe três níveis pelos quais as identidades podem ser trabalhadas, inclusive no ambiente escolar: identidade individual, coletiva e organizacional. A primeira visualiza as hibridizações presentes nas formas pelas quais as identidades são produzidas nos indivíduos. Na segunda, a mesma autora fala de uma suspensão “temporária” na construção identitária que é realizada em prol de algum marcador mestre que confere o sentimento de pertencimento das identidades e dos grupos coletivos específicos, de modo a garantir seus direitos à representação nos espaços sociais e culturais. Em relação a identidade organizacional, podemos compreender que ela se caracteriza pela articulação com a pluralidade cultural, étnica, racial e outras dos sujeitos pertencentes a tal local, na busca de um clima institucional positivo.

Portanto, acredito que a perspectiva pós-colonial possa ser um caminho de contribuição para o desafio à essencialização da categoria identidade, pois ela possui um caráter provisório de algo em construção, uma visão que possibilita vias didática- pedagógicas para os docentes darem caminhos efetivos para as hibridizações culturais presentes nas construções identitárias que encontrarão em suas práticas pedagógicas, desafiando discursos que constroem preconceituosamente a identidade do outro.

Além das perspectivas citadas, os nomes dados ao termo multiculturalismo também sofrem embates. Alguns autores apontam que o melhor nome a ser dado é o interculturalismo. Canen (2012) nos mostra que estes autores acreditam que o prefixo “inter” apresenta uma visão de culturas em relação, afirmando que o termo multiculturalismo apenas informa que a sociedade é composta por múltiplas culturas, não colocando em destaque as relações de conflitos advindas das interações entre as

111 culturas.

No entanto, nesta pesquisa, escolhemos o termo multiculturalismo, pois acreditamos que ele envolve um posicionamento claro a favor da luta contra a opressão e a discriminação a que certos grupos ditos minoritários têm, historicamente, sido submetidos por grupos mais privilegiados, além disso, envolve estudos, pesquisas e ações politicamente comprometidas.

Canen (2012) aponta que o multiculturalismo lida com o múltiplo, com o diverso e o plural, encarando as identidades plurais como a base da constituição das sociedades, sejam elas pluralidades de raças, gêneros, religiões, saberes, culturas, linguagens e outras. Assim, esta pesquisa engloba o multiculturalismo na educação, trazendo para discussão uma preocupação com o discente e com o docente e com as ações pedagógicas, pois entendemos que somos construídos socialmente, sob redes de poder, configurados pelos significados diversificados que nos rodeiam, pelas múltiplas culturas que nos atravessam e se os sentidos que estão a nossa volta são construções, eles podem ser refeitos ou reinventados, possibilitando as experiências de outros modos de ser, pensar e desejar.