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2.3 Preferência pela liquidez

2.3.1 Teoria da demanda por moeda

De acordo com Keynes (1973a), os motivos que determinam a demanda por moeda também governam a preferência pela liquidez. São eles: transação, precaução, especulação e finance. Este último foi introduzido pelo autor um ano depois da publicação da Teoria Geral16.

No motivo transação, a moeda é retida para cobrir o período entre o dia do pagamento e o do recebimento. Não tem qualquer conexão com incerteza, existindo porque os agentes sabem com precisão tanto as datas, quanto os valores envolvidos em cada situação.

O segundo, o terceiro e o quarto motivos, por sua vez, dependem da incerteza. Shackle (1974) e Dequech (2000b) argumentaram que, nesse contexto, a liquidez é valorizada por conferir aos agentes flexibilidade para redefinir seus planos econômicos e alterar a composição de seus

portfólios, na medida em que o futuro se aproxima, se mostra e se faz história.

O desejo de reter moeda por precaução é consequência direta da incerteza do indivíduo em relação à necessidade de fazer frente a despesas inesperadas – motivo contingencial – ou de aproveitar oportunidades não previstas de compras/negócios – motivo oportunidade. Aqui o agente retém moeda por algum tempo, sem saber ao certo se vai gastá-la ou não. Depende menos das expectativas em si e mais do estado de confiança nessas expectativas. Refere-se ao grau de ignorância sobre o futuro. Este motivo insere um componente instável na demanda por moeda, uma vez que, como lembra Carvalho (1992), os diferentes graus de incerteza sentidos pelos agentes levam a mudanças imprevistas na preferência pela liquidez.

Considerando-se as expectativas, pode-se argumentar com Dequech (1999 e 2000b) que, quanto maior a percepção da incerteza e maior a aversão à mesma, mais forte será a inclinação dos indivíduos para não agir. Em muitas decisões econômicas, a tendência de inação corresponde exatamente à preferência pela liquidez. A liquidez permite ao agente adiar uma decisão até que surjam mais informações – e daí a confiança nas estimativas pode ser alta o suficiente para justificar uma ação –, ou até que uma oportunidade de lucro, não percebida antes, apareça e o agente se sinta satisfatoriamente confiante sobre isso.

No caso do motivo especulação, a demanda por moeda serve para o atendimento das oportunidades que o indivíduo espera que ocorram. A sua retenção acontece em função da antecipação dos movimentos no preço dos diferentes ativos. Assim, o que mais interessa é a expectativa dos agentes em relação à trajetória futura desses preços. Se, por exemplo, se acredita que os preços vão aumentar, os indivíduos irão optar por tornar-se menos líquidos hoje –

comprarão mais títulos – de forma a beneficiar-se dos ganhos de capital antecipados. Em contraste, se os especuladores esperam a queda dos preços, eles terão incentivo para aumentar a liquidez dos seus portfólios, através da venda de títulos (BELL, 2003).

De acordo com Lachmann (1937), nesse caso, o agente espera obter lucro por acreditar que sabe melhor do que o mercado o que o futuro irá trazer. A ênfase de Keynes na incerteza visa estabelecer uma pré-condição para a existência da diversidade de opiniões sobre a trajetória futura da taxa de juros (RUNDE, 1994).

Conforme apontado por Dequech (2000b), o motivo especulativo não tem a ver com a espera para se obter mais informações. Ele existe quando o agente já acredita que o preço dos ativos irá se mover em uma direção específica e tem suficiente confiança para agir, embasado nesta crença.

O quarto motivo para se demandar moeda, o finance, relaciona-se às despesas não-rotineiras, inesperadas e vultosas, tais como investimentos, para as quais é necessária alguma preparação ex- ante pelos agentes (CARVALHO, 1992). Keynes usou o termo finance para definir o recurso requerido no intervalo entre o planejamento e a execução do investimento (WEINTRAUB, 1980). De acordo com Monvoisin e Pastoret (2003), este tipo de demanda por moeda não gera, na verdade, nenhum montante adicional de recurso ocioso. Diferentemente dos outros três motivos – transação, precaução e especulação – que induzem ao entesouramento, a demanda por finance não leva propriamente à retenção de moeda pelos indivíduos. Entretanto, ela explica sozinha a demanda por crédito – que é a base para a criação de moeda – e a relação entre firmas e bancos. Aí reside a sua importância para a economia. Para os pós-keynesianos, os outros três motivos citados anteriormente não oferecem nenhuma justificativa sobre a criação de moeda e o processo produtivo.

Segundo Keynes (1937b e 1937c), normalmente, a demanda por finance – função da decisão de investir – é atendida pelos bancos, através da concessão de empréstimos de curto prazo. Para tanto, porém, não é necessário que haja disponibilidade prévia de poupança. De fato, por anteceder o investimento, antecede também a poupança que será gerada para financiar tal inversão.

A quantidade de moeda demandada para satisfazer esses quatro motivos reflete o grau de preferência pela liquidez dos agentes. Flutuações nesta podem ser atribuídas, essencialmente, a variações no nível de incerteza presente na economia. À exceção do motivo transação, os demais são afetados, em maior ou menor medida, por este fator.

Antes de passar ao item 2.3.2, cabe destacar que o sistema bancário, por ser o provedor de

finance, é o ponto de partida do processo produtivo. Keynes (1930) caracterizou a atividade

bancária como sendo determinante para o nível de atividade econômica17. Ele assim escreveu: “by the scale and the terms on which it is prepared to grant loans, the banking system is in

position… to determine – broadly speaking – the rate of investment by the business world.”18

(KEYNES, 1930, v.1, p.138)

Ressalte-se que, assim como os demais agentes da economia, os bancos também têm preferência pela liquidez determinada, em grande medida, pela incerteza, que reflete a sua disposição em manter-se mais ou menos líquidos19. Os bancos irão, pois, definir a sua estratégia de atuação (realização de operações de empréstimos, financiamentos e/ou aplicações em títulos), buscando adequar suas carteiras de ativos a uma relação entre rentabilidade e liquidez que julgam ser a melhor, frente à conjuntura econômica vigente e às expectativas que têm sobre o futuro, dado o ambiente institucional.

Esse fato confere aos bancos importância crucial no processo de crescimento da economia. Minsky (1982a) uma vez argumentou que a preferência pela liquidez que realmente importa em uma economia capitalista é a dos banqueiros e empresários. Keynes (1937c) também já havia reconhecido isso. Segundo ele,

It is the supply of available finance which, in practice, holds up from time to time the onrush of ‘new issues’. But if the banking system chooses to make the finance available and the investment projected by the new issues actually takes place, the appropriate

17 Apesar dessa ênfase no sistema bancário, Dymski (1988) afirma que Keynes escreveu muito pouco sobre o aspecto comportamental dos bancos.

18 Pela escala e termos em que estão preparados para conceder crédito, o sistema bancário está em posição... de determinar – de maneira geral – a taxa de investimento do mundo de negócios (tradução minha).

19 Em seu artigo publicado no Economic Journal, em dezembro de 1937, Keynes estendeu o conceito de preferência pela liquidez para os bancos (KEYNES, 1937c: 666-7). Esta é uma questão que remete à discussão de endogenia ou exogenia da oferta de moeda, como será visto mais adiante, no item 2.4.

level of incomes will be generated out of which there will necessarily remain over an amount of saving exactly sufficient to take care of the new investment. The control of finance is, indeed, a potent, though sometimes dangerous, method for regulating the rate of investment (though much more potent when used as a curb than as a stimulus). Yet this is only another way of expressing the power of the banks through their control over the supply of money – i.e. of liquidity. (KEYNES, 1937b: 248)20

Para os pós-keynesianos, o comportamento dos bancos no mercado de crédito é extremamente relevante, quando se considera uma economia monetária de produção. O aspecto será melhor detalhado no item 2.4. Entretanto, vale adiantar que, quando a oferta de moeda é endógena, o sistema bancário e a sua habilidade e disposição para conceder empréstimos são, portanto, o fator-chave para o aumento no nível de emprego e de produto (GRAZIANI, 2003; HEWITSON, 2003 e STUDART, 2003).