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Teoria do Apego e os processos de construção de vínculos afetivos

2 REVISÃO DE LITERATURA

2.2 PRODUÇÃO CIENTÍFICA SOBRE O PROCESSO DE ADOÇÃO

2.3.1 Teoria do Apego e os processos de construção de vínculos afetivos

As teorias do desenvolvimento e do apego caracterizam-se como possibilidades de investigar as relações familiares na Psicologia e constituíram referencial importante para a compreensão dos processos de adoção de crianças e jovens com deficiência, objeto desta pesquisa. Sendo

assim, pretende-se descrever aqui alguns aspectos destes campos de estudo que darão sustentação à constituição dos vínculos afetivos nas famílias adotivas. Como observado por Otuka, Scorsolini-Comin e Santos (2009) o estabelecimento de vínculos afetivos nos processos de adoção caracteriza-se como uma temática que necessita de maiores investigações.

A fim de delinear os pressupostos acima descritos e subsidiar as narrativas das famílias participantes da pesquisa, resgatam-se as principais contribuições da psicologia do desenvolvimento e da teoria do apego que oferecem subsídios às problematizações sobre o processo de vinculação na adoção de crianças ou jovens com deficiência. Não é a pretensão deste texto reproduzir, de forma completa e aprofundada, a historicidade das mudanças conceituais da teoria do apego, mas resgatar elementos que, a partir da apresentação de alguns autores contemporâneos, situem as discussões nesta área e permitam problematizar os resultados da pesquisa.

Inicia-se esta problematização com o trabalho de Brum e Schermann (2004) que, com a intenção de contribuir para o entendimento do desenvolvimento nos primeiros anos de vida da criança, contrapõem elementos e conceitos da teoria psicanalítica e da teoria das relações objetais em uma perspectiva histórica. As autoras assinalam que, embora seja unânime a importância, para a psicanálise, das primeiras relações na vida de um bebê, há divergências quanto ao desenvolvimento destas relações e suas vicissitudes.

Brum e Schermann (2004) descrevem que o estudo das primeiras relações são marcadas, inicialmente pelo trabalho de Freud, para quem a vinculação da criança com a figura materna configurava-se como um impulso secundário, uma vez que a criança se interessa por esta mãe ao reconhecer nela a fonte de satisfação de suas necessidades fisiológicas básicas, principalmente de alimento e conforto. O psicanalista René Spitz, por sua vez, por meio de um trabalho realizado em um orfanato, observou que aqueles bebês que não recebiam afeto, nem eram segurados no colo ou embalados, apesar de terem suas necessidades fisiológicas básicas supridas, apresentavam dificuldades no desenvolvimento, o que foi nomeado por Spitz de “síndrome do hospitalismo” (BRUM; SCHERMANN, 2004).

Para Erik Erikson que, além de psicanalista, foi um teórico de grande influência sobre o estudo do desenvolvimento, o comportamento do principal cuidador para com a criança influencia na formulação de uma identidade básica, em uma relação de confiança ou desconfiança, que terá implicações ao longo do desenvolvimento infantil. Erikson descentraliza suas formulações da teoria instintiva freudiana ao descrever o surgimento

deste senso de identidade como decorrente da interação do sujeito com o meio ambiente (BRUM; SCHERMANN, 2004).

Brum e Schermann (2004) descrevem ainda o trabalho de Winnicott, psicanalista e teórico das relações objetais, que propõe que o desenvolvimento emocional primitivo se daria pelo atravessamento de três categorias: da dependência absoluta, passando pela dependência relativa, à autonomia relativa, esta última marcada pela presença constante de alguma forma de dependência. Na fase de dependência absoluta, na qual mãe e bebê constituem-se como uma unidade, a mãe experimentaria o que Winnicott denominou como “preocupação materna primária”. Para o autor, é por meio deste estado particular que a mãe é capaz de compreender o bebê, identificar-se com ele e auxiliá-lo a se integrar. É ainda neste estágio que aconteceriam as falhas primitivas no desenvolvimento que, por sua vez, acarretariam o surgimento de transtornos mentais.

Surgem então os trabalhos de Bowlby, psicanalista e teórico das relações objetais, responsável pela formulação da teoria do apego. Para Bowlby, “[...] a formação do apego não é uma consequência da satisfação das necessidades fisiológicas básicas como postula Freud” (BRUM; SCHERMANN, 2004, p. 459), mas sim resultado de um processo evolutivo que levou a espécie humana a adotar estratégias comportamentais peculiares na relação com o cuidador, que costumeiramente é a mãe. Estas estratégias, dentre as quais estariam comportamentos como sorrir, chorar, seguir com os olhos, têm como função formar vínculo com os cuidadores, de forma a manter a proximidade do bebê com a figura de cuidado, denominada por Bowlby de “figura de apego” (BRUM; SCHERMANN, 2004; PONTES et al., 2007).

Na perspectiva de Bowlby, assim como para Spitz, a existência de uma relação de afeto entre pais e criança é necessária para um adequado desenvolvimento. Outro ponto a ser destacado é que, para Bowlby, estar apegado a uma figura materna é diferente de ser dependente dela, conceito desenvolvido por Winnicott. Enquanto a criança é dependente de um cuidador desde o nascimento, como forma de garantir a sua sobrevivência, o apego começa a se desenvolver com o passar do tempo, não estando presente, portanto, nesse primeiro momento e, ainda, só podendo ser identificado quando o bebê puder evidenciar não apenas o reconhecimento da mãe, mas comportamentos que objetivem manter a proximidade com ela (BRUM; SCHERMANN, 2004).

A conceituação de apego desenvolvida por Bowlby permitiu que outros autores pudessem aprofundar este conceito e investigar os fatores

que o influenciavam. Entre estes trabalhos está o instrumento formulado por Ainsworth, que ficou conhecido como “Situação Estranha”. Por meio deste, Ainsworth definiu padrões de apego que mensuravam a qualidade da relação estabelecida entre a mãe e a criança, por meio de um experimento que envolvia a separação entre elas. É também Ainsworth quem propõe o conceito de sensibilidade materna, utilizado para descrever a capacidade da mãe em interpretar e responder adequadamente às demandas e necessidades infantis (BRUM; SCHERMANN, 2004; PONTES et al., 2007).

Pontes et al. (2007), que também fazem uma análise sobre as mudanças do conceito de apego e buscam apontar as perspectivas e tendências contemporâneas, assinalam que o apego passa a ser compreendido, a partir das contribuições de colaboradores ao trabalho de Bowlby, como:

[...] o conjunto de comportamentos do bebê que se caracteriza não somente pela busca de proximidade física da mãe, mas também pela exploração do ambiente. As relações estabelecidas nestes contextos darão base à organização de modelos de funcionamento psicológico (working models) e a estilos de regulação de emoções, os quais, posteriormente, poderão ser generalizados para situações similares. (PONTES et al., 2007, p. 69). Conforme afirmação de Pontes et al. (2007), pode-se perceber a prevalência dos aspectos individuais do processo de vinculação, representados pelos modelos internos de funcionamento que seriam responsáveis por estruturar o modo como o sujeito passará a se relacionar em outros contextos. O conceito de sensibilidade materna, por sua vez, atribui à mãe e às suas características individuais a definição dos padrões de apego.

Para Pontes et al. (2007), um conjunto de trabalhos com novas proposições quanto à dinâmica do apego surge a partir da década de 80. Os padrões de apego passam a ser compreendidos como resultado de uma construção diádica, ou seja, tanto as características da mãe e sua sensibilidade em responder às necessidades da criança, quanto as características da criança, como gênero, temperamento, idade, ordem de nascimento e sua capacidade de sinalizar aos cuidadores suas necessidades, são determinantes na interação estabelecida (BRUM; SCHERMANN, 2004; PONTES et al., 2007).

Com relação às perspectivas contemporâneas sobre o apego, tem- se buscado um entendimento mais relacional e contextual sobre este processo, conforme evidenciado na afirmação de Pontes et al. (2007, p. 67):

As pesquisas recentes em apego destacam que não apenas os elementos individuais, isto é, as características dos sujeitos envolvidos na relação, mas também os fatores contextuais influenciam na formação dos vínculos afetivos. Assim, a dinâmica do apego está sujeita à ação de fatores de natureza individual, relacional e contextual. (PONTES et al., 2007, p. 67).

A aproximação desta perspectiva contextual e sistêmica com o modelo bioecológico proposto por Bronfenbrenner, tem contribuído com as pesquisas sobre apego, pois permite visualizar os diferentes níveis contextuais que atuam sobre o processo de apego e oferece “[...] uma estrutura organizacional para os fatores que podem explicar o processo de formação dos vínculos humanos.” (PONTES et al., 2007, p. 73). O modelo de Bronfenbrenner inclui os seguintes níveis: microssistemas, definidos pelas relações mais imediatas; macrossistemas, onde as relações são influenciadas por elementos culturais, como crenças e valores; mesossistema, constituído pelas trocas entre dois microssistemas; exossistema, contexto no qual “[...] o sujeito do desenvolvimento não se encontra diretamente envolvido, mas é influenciado pelas relações que aí se estabelecem.” (PONTES et al., 2007, p. 73); e o cronossistema, caracterizado pela passagem do tempo.

Olhar para a vinculação humana em multiníveis ecologicamente situados e embutidos em um sistema dinâmico de rede de relações, ocasionou maior compreensão da complexidade do fenômeno do apego. (PONTES et al., 2007, p. 76).

A inclusão de todos estes elementos contextuais componentes da rede em que o apego encontra-se inserido tem sido considerada uma das maiores dificuldades teórico-metodológicas nas pesquisas envolvendo o apego no contexto familiar, uma vez que, apesar do reconhecimento do modelo sistêmico e da rede de relações das quais a família faz parte, os pesquisadores têm dificuldades em implementar os fatores externos e continuam dando ênfase às relações diádicas (PONTES et al, 2007). É

importante destacar também que a relevância da teoria do apego tem implicações não somente aos modos de fazer pesquisa e às formas de compreensão sobre o desenvolvimento humano, mas também tem repercussões na definição de políticas e práticas sociais. Sendo assim:

Ao enfatizar a importância do estabelecimento e manutenção de vínculos afetivos, sobretudo com uma figura materna, predizendo consequências desenvolvimentais adversas quando a criança não estabelece vínculos, sofre separações e rupturas do vínculo, a teoria do apego influenciou, tanto positiva como negativamente, as políticas e práticas sociais destinadas à infância. Estabeleceu também significações socialmente cristalizadas do que é necessário para um desenvolvimento saudável ou patológico, dentro de um modelo naturalizado de desenvolvimento. (ROSSETTI- FERREIRA et al., 2012, p. 397).

Ressalta-se, portanto, que o objetivo das análises articuladas nesta dissertação não é definir e enquadrar modos de desenvolvimento saudáveis ou não a partir das experiências de rupturas de vínculos com as famílias biológicas. Com base nas compreensões explicitadas por Rossetti-Ferreira et al. (2012) e Costa e Rossetti-Ferreira (2009), e também do que foi descrito por Pontes et al. (2007), parte-se do entendimento sobre a construção dos vínculos afetivos como um processo que se estende ao longo da vida dos sujeitos, nas e por meio das relações estabelecidas com diferentes sujeitos, embora num primeiro momento estes sejam, frequentemente, os cuidadores principais, pais e/ou mães.

É sabido que o ser humano precisa do outro(s), ao qual se vincula afetivamente, para sobreviver, desenvolver e se constituir como sujeito. É esse outro que o insere em contextos ou posições sociais, agindo como seu mediador para o mundo e do mundo para ele(a). Em nossa sociedade, esse outro, no início da vida, é usualmente a mãe e/ou pai, embora outras pessoas familiares possam assumir ou compartilhar esse lugar. (ROSSETTI- FERREIRA et al., 2012, p. 397).

Também compreende-se o processo de vinculação situado em determinado contexto cultural, cujas particularidades irão influenciar na

formação do apego e no desenvolvimento infantil. Sendo assim, a construção do apego não está restrita às famílias biológicas que, a partir da reprodução e do nascimento de um bebê passam a vincular-se com ele e a exercer práticas de cuidado. Entende-se que as práticas de cuidado configuram-se como um conhecimento histórica e socialmente construído, sendo compartilhado por homens e mulheres que, ao exercerem a parentalidade, podem resgatar suas experiências e vivências, além dos significados culturais transmitidos transgeracionalmente sobre cuidado, família e desenvolvimento infantil.

Com base neste entendimento, reitera-se a necessidade, defendida por Otuka, Scorsolini-Comin e Santos (2009), de ampliar a compreensão sobre apego e vínculo nas famílias constituídas pela adoção. Embora a produção nacional sobre a adoção tenha aumentado substancialmente nos últimos anos, há a necessidade de ampliar a compreensão sobre a construção de vínculos entre pais e filhos adotivos, uma vez que este tem sido um aspecto pouco explorado pelas pesquisas com famílias constituídas por adoção. Pode-se acrescentar, ainda, que as pesquisas sobre esta temática têm se dedicado majoritariamente às famílias biológicas e, mais especificamente, à díade cuidador e criança, conforme apontado por Pontes et al. (2007).