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Capítulo II – Contributos teórico-metodológicos da sociologia para o estudo da violência

2.2. Teorias microsociológicas

2.2.1 Teoria dos recursos

Este modelo sustenta as suas premissas com base em dois conceitos fundamentais, que são o conceito de poder e recursos. Para Dias (2010: 163), poder refere-se “à capacidade

potencial de um ator influenciar o comportamento do outro”, enquanto o conceito de recursos

diz respeito “a um bem raro que um dos parceiros pode por à disposição do outro e que é

suscetível de satisfazer as necessidades deste último ou de lhe permitir atingir os seus objetivos”. Isto quer dizer que quanto maior for o número de recursos que um individuo possua

e o seu grau de importância seja significativamente relevante, será traduzido na detenção de um maior poder de dominação e controlo sobre o outro, normalmente a mulher (Ibidem,2010). Esta situação de manutenção do poder por parte do homem para controlar e dominar a mulher, pode sofrer mutações quer pelo aumento ou diminuição dos recursos de cada membro, quer pela diminuição dos níveis de sujeição de um membro relativamente ao outro.

O conceito de poder foi inicialmente utilizado na explicação e compreensão da problemática da violência doméstica por Goode. Este autor referido por Dias (2010) identifica a família como um sistema social como muitos outros da sociedade, onde constantemente coexistem relações de poder, sendo que este autor utiliza o conceito de força para explicar e fundamentar o funcionamento das interações familiares, considerando “que é essencial para a

estabilidade da estrutura familiar” (Goode in (Dias 2010, 163)). A força física referida pelo

autor, utilizada sobretudo pelo homem para a manutenção da sua posição de superioridade, é apoiada e sustentada pelas estruturas sociais públicas, como a polícia ou a justiça, consolidando a legitimidade dos indivíduos que foram socializados a utilizar a força como forma de imposição da sua vontade (Ibidem, 2010). Quando se mencionam os recursos que cada um tem disponíveis, e que podem afetar os poderes exercidos referem-se essencialmente: prestígio, sucesso, nível de escolaridade, inteligência, grau de conhecimentos, idade, estatuto socioprofissional, rendimento, sociabilidade, amor, amizade, etc.

Apesar de a maior parte destes recursos apresentados possuírem um carácter subjetivo e de difícil quantificação, permitem-nos compreender que os episódios de violência ocorrem nas famílias quando alguns deles faltam ou são insuficientes. Esta dificuldade em aceder aos recursos a determinados estatutos sociais mais baixos, coloca os indivíduos numa situação de vulnerabilidade às situações de VD (Dias, 2010: 163).

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Existe ainda outra relação que importa discutir aquando da aplicação da teoria dos recursos, intitulada de inconsistência de status4. De acordo com esta tese observa-se um

desequilíbrio entre os membros da família quando as posições de status ocupadas pelos diversos membros não se situam na mesma localização hierárquica. Indicadores como o nível de escolaridade e rendimento, podem ajudar a colocar os indivíduos em posições diferenciadas, em que uns e umas são mais detentores de recursos que outros e outras. Historicamente as posições superiores sempre foram atribuídas ao homem. No entanto esta situação tem vindo a sofrer alterações, pois passou a estar disponível e acessível às mulheres uma maior possibilidade de ascensão social por via quer do nível de escolaridade adquirido, quer pela obtenção de determinado status devido à profissão. À medida que se verifica mais alterações, no desfasamento que existe ou existia entre os status de homem e mulher, maior é a probabilidade de ocorrerem situações de VD, pois cada vez mais “o homem se sente ameaçado no seu papel

tradicional pela mulher que passa a possuir recursos ocupacionais e de instrução superiores”

(Dias, 2010: 164). De acordo com vários estudos, nomeadamente os de O’Brien e Gelles in Dias (2010), as famílias onde se verifica um maior nível de inconsistência de status, são as que apresentam mais situações de VD entre os membros. Pelo contrário, nas famílias onde a inconsistência de status é mais baixa em que os membros mantêm níveis de rendimento, escolaridade, profissão mais semelhantes, há tendencialmente ambientes familiares mais calmos e menos propícios a situações de violência (Ibidem,2010).

Nos casos em que se verifica um défice de recursos e rendimentos do homem, estes tendem a utilizar com mais frequência a força física como meio de continuarem a manter o seu papel instrumental reconhecido pela sociedade.

Apesar de todos os aspetos enunciados sobre esta teoria no que diz respeito à sua conceptualização, este não é um modelo isento de lacunas e de aspetos menos operacionalizáveis, sendo sujeita a críticas por parte de outras correntes e interpretações. Szinovacz in Dias (2010) diz-nos que este é um modelo com pouca clareza nas suas formulações teóricas, sugerindo a aplicação de entrevistas aos membros com objetivo de se poderem comparar os resultados obtidos e assim obterem-se contributos mais valiosos e rigorosos da aplicação deste modelo teórico.

As abordagens feministas criticam a teoria dos recursos tendo em vista a sua tentativa de que os casais tendem a alcançar uma simetria para que as relações possam funcionar melhor. Para as feministas esta premissa não faz sentido, pois continuam a verificar-se desigualdades na distribuição do trabalho doméstico, desigualdade na satisfação sexual, bem como os abusos que as mulheres sofrem. As perspetivas feministas entendem ainda que mesmo para as

4 “Ocorre quando os indivíduos não são capazes de representar convenientemente os papéis de status;

quando face a determinadas situações, defraudam as expectativas de outros indivíduos por não corresponderem ao que supõem representar (…) (Giddens, 2009: 568)”.

37 mulheres que conseguiram uma mobilidade ascendente através da sua qualificação profissional, as posições de status de homem e mulher continuam ainda a ser encaradas de forma desigual. A teoria dos recursos é ainda criticada pela sua utilização excessiva da análise aos processos macrossociológicos, ignorando os condicionamentos que as estruturas societais podem causar aos comportamentos quer dos membros individualmente, quer da família enquanto grupo.

Autores de referência como Kellerhals, Troutot e Lazega in Dias (2010) optaram por reunir um conjunto das principais críticas a apontar à teoria dos recursos: “a perceção dos

cônjuges difere quer em matéria de tomada de decisões quer no status que é reconhecido a cada um; os recursos também devem ser ponderados pela importância das alternativas ao casamento; o valor comparado dos recursos e a (in) satisfação face à sua repartição depene muito da finalidade atribuída à troca familiar, ou seja, as representações sociais do casamento definem, pelo menos em parte, o valor dos recursos; os recursos devem ser relativizados em função do contexto cultural. Tal significa que são diferentemente valorizados em função de cada cultura com diferentes impactos sobre o poder dos membros” (Ibidem: 168).

De qualquer forma, e mesmo sujeita a diversas críticas, a teoria dos recursos forneceu importantes contributos para a análise dos processos familiares no que concerne à VD, principalmente na sua explicação do conceito de poder e como este interfere nas relações de dominação e controlo entre homem e mulher.

Para concluir importa realçar o desígnio defendido pela teoria dos recursos relativamente à VD, referindo que esta decorre aquando da necessidade que as famílias e os seus membros têm de manter o poder através da força. Esta manutenção é legitimada pelas instituições sociais que lhes são exógenas e interiorizadas pelos indivíduos através dos processos de socialização. No momento em que se verificar um desfasamento entre os recursos que os membros possuem, é nesta fase que a violência pode ocorrer, pois o agressor/a percebe que não consegue mais manter a sua posição de dominação e o uso da força passa a ser o único meio para alcançar a sua posição (Dias, 2010).