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Teoria e práticas da representação pictórica

“Suponhamos (pois) agora que estamos a dormir e que todas essas particularidades, a saber, que nós abrimos os olhos, que abanamos a cabeça, que esticamos as mãos e outras coisas deste género, não são senão falsas ilusões; & pensemos que, talvez, nem as nossas mãos, nem o nosso corpo, sejam tais como os vemos. Contudo, temos pelo menos de confessar que as coisas que nos são representadas no sono são como quadros ou pinturas, as quais só podem formar-se à semelhança de qualquer coisa de real e verdadeiro; e que assim, pelo menos as coisas gerais, a saber, os olhos, uma cabeça, mãos & todo o resto do corpo não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se aplicam, com grande talento, a representar sereias e sátiros, com formas bizarras e extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas absolutamente novas, mas apenas uma certa mistura & composição de membros de diversos animais; ou então, se eventualmente a sua imaginação for suficientemente extravagante para inventar qualquer coisa de tão novo que nunca ninguém tenha visto nada de semelhante & que desse modo a sua obra nos represente uma coisa puramente fictícia & absolutamente falsa, é certo que pelo menos as cores de que ela é composta devem ser verdadeiras.” (Descartes, AT, ix:19-20)373

373 Cf. Descartes, Œuvres de Descartes – IX – Méditations et Principes, op. cit, p. 15 : «Supposons donc

maintenant que nous sommes endormis, & que toutes ces particularitez-cy, à sçauoir, que nous ouurons les yeux, que nous remuons la teste, que nous estendons les mains, & choses semblables, ne sont que de fausses illusions ; & pensons que peut-estre nos mains, ny tout nostre corps, ne sont pas tels que nous les voyons. Toutesfois il faut au moins auouer que les choses qui nous sont representées dans le sommeil, sont comme des tableaux & des peintures, qui ne peuuent estre formées qu'à la ressemblance de quelque chose de réel & de véritable; & qu'ainsi, pour le moins, ces choses générales, à sçauoir, des yeux, vne teste, des mains, & tout le reste du corps, ne sont pas choses imaginaires, mais vrayes & existantes. Car de vray les peintres, lors mesme qu'ils s'estudient auec le plus d'artifice à représenter des Syrenes & des Satyres par des formes bijarres & extraordinaires, ne leur peuuent pas toutesfois attribuer des formes & des natures entièrement nouuelles, mais sont seulement vn certain mélange & composition des membres de diuers animaux ; ou bien, si peut-estre leur imagination est assez extrauagante pour inuenter quelque chose de si nouueau, que iamais nous n'ayons rien veu de semblable, & qu'ainsi leur ouurage nous represente vne chose purement feinte & absoluëment fausse, certes à tout le moins les couleurs dont ils le composent doiuent-elles estre véritables.

«Et par la mesme raison, encore que ces choses générales, à sçauoir, des yeux, vne teste, des mains, & autres semblables, peussent estre imaginaires, il faut toutesfois auouer qu'il y a des choses encore plus simples & plus vniuerselles, qui sont vrayes & existantes; du mélange desquelles, ne plus ne moins que de celuy de quelques véritables couleurs, toutes ces images des choses qui resident en nostre pensée, soit vrayes & réelles, soit feintes & fantastiques, sont formées. De ce genre de choses est la nature corporelle en general, & son estenduë ; ensemble la figure des choses estenduës, leur quantité ou grandeur, & leur nombre ; comme aussi le lieu où elles sont, le temps qui mesure leur durée, & autres semblables.»

149 Por mais do que uma vez, Descartes recorreu à pintura como analogia para os seus argumentos374. Nesta passagem - que pertence evidentemente à 1ª Meditação, no momento em que, querendo destruir as falsas opiniões, o autor desenvolve e testa a sua hipótese céptica de que tudo aquilo que vimos, que sentimos e experimentamos, tudo aquilo que pensamos conhecer a partir das nossas sensações, seja simplesmente sonhado -, ele compara as imagens que nos aparecem nos sonhos às figuras dos quadros e pinturas, na medida em que elas parecem representar, por semelhança, objectos do mundo exterior, como se estes fossem os modelos verdadeiros e existentes das imagens que povoam a nossa mente. Mesmo quando a imaginação fantástica dos pintores (e dos sonhadores) cria novas formas e figuras bizarras, estas serão meras composições de experiências perceptivas reais de um mundo fora do quadro e da nossa mente. Hiperbolizando a sua hipótese, Descartes considera que ainda que as representações fossem totalmente fictícias e “absolutamente falsas”, pelo menos as suas cores seriam verdadeiras, assumindo assim que a cor não é um fenómeno puramente subjectivo, que resulte simplesmente da imaginação, mas algo que depende da existência de um mundo real e objectivo. Na continuação do raciocínio, conclui para além disso que mesmo que essas “coisas gerais” (a saber: os olhos, cabeças, mãos, i. e., imagens reconhecíveis de objectos do mundo) pudessem ser imaginárias, elas seriam sempre formadas de coisas mais simples e mais universais, tal como as cores, “verdadeiras e existentes”: a sua extensão, a sua figura, a sua quantidade e grandeza ou o tempo que mede a sua duração. [Se invertêssemos a analogia, descobriríamos em Descartes como que uma ontologia da pintura!]

Independentemente do mérito lógico e do sucesso metafísico da argumentação de Descartes para refutar a hipótese céptica, a analogia revela uma intuição fundamental sobre a relação de representação, seja ela considerada no âmbito ontológico, epistemológico, psicológico ou estético (pictórico): a de que o representante [as imagens no sonho e as figuras pintadas] dá a ver o representado375 [os objectos do mundo exterior] (ainda que este “dar a

ver” ou mostrar tenha um carácter metafórico e possa ser também um “dar a escutar”, um “dar a sentir” ou um “dar a pensar”). Ou seja, que a representação traz à presença, - “convoca e revoca”, diria Fernando Gil376 - consigo (ou seja, ao mesmo tempo que o representante se apresenta), aquilo que é ausente.

374 Veja-se na secção 1 do capítulo II, quando a propósito da Dióptrica e mais exactamente do funcionamento da

visão, Descartes a compara a uma pintura obtida pelo processo de projecção numa câmara obscura. 375

Ao mesmo tempo que se dá a ver a si mesmo, ou seja, o representante apresenta o representado e apresenta-se também a si mesmo.

376 «Em todas as formas de representação uma coisa se encontra no lugar da outra, representar significa ser o

outro dum outro que a representação, num mesmo movimento, convoca e revoca.» (sublinhado nosso), cf. Gil, F., Mimésis e Negação, op. cit., p. 39.

150 Mas o retorno, numa investigação sobre filosofia do conhecimento, à analogia da pintura não se encontra legitimado apenas por ela ter já ocorrido algumas vezes no pensamento de René Descartes e recorrentemente ao longo da história da filosofia (desde Platão até Wittgenstein377), antes, o seu persistente ressurgimento é significativamente sintomático de uma intimidade, de um grau de parentesco, entre o acto de representar o mundo com “linhas e cores” numa tela e o acto de conhecer. Não quer isto dizer, obviamente, que a pintura é conhecimento, no sentido em que seja uma fonte de conteúdos proposicionais, nem sequer, necessariamente, um discurso pictórico sobre os objectos que apresenta/representa, mas que ela é, sem dúvida, um modo de conhecer, um modo de pensar a realidade do mundo. Isto não seria porém ainda suficiente para justificar a sua presença na economia desta investigação, pois, na verdade, todas as artes terão essa virtude cognitiva e potência filosófica. A “escolha” da pintura deve-se antes a uma forte intuição daquilo que parece ser a partilha de uma matriz visual dominante, de problemas e de esquemas perceptivos entre as teorias do conhecimento e da percepção e as teorias e práticas da pintura no século XVII, que se cruzaram e se comunicaram nos dois sentidos, por comungarem de ambições próximas e angústias comuns. Não terá sido por acaso que as analogias e as metáforas da pintura foram tão comuns nos textos de filosofia de Descartes, de Arnauld e Nicole ou de Pascal – não só em sede epistemológica, mas também moral e metafísica – ou que tantas vezes a pintura da época reflectiu problemas e questões filosóficas. Não significa que esse século tenha sido exclusivo quanto a essa relação íntima entre filosofia e pintura, mas que, de facto, foi aí particularmente evidente na medida em que a questão da própria representação, da possibilidade de representar e conhecer o mundo, da legitimidade e verdade da representação relativamente ao mundo exterior foi presença persistente em muitos pensadores e artistas. Para além disso a interrogação sobre o próprio problema da representação pictórica revela outros aspectos da mera questão da representação em sede epistemológica e metafísica378 que permitem por isso uma compreensão mais alargada.

É por isso que passaremos agora a interrogarmo-nos sobre a expressão do paradigma representativo na pintura da época e no sentido e alcance da questão da representação pictórica.

377 Veja-se, por exemplo, em Platão, nos diálogos Crátilo, 424d-425ª, Sofista, 266c, Timeu, 26c ou Teeteto, 208e

e em Wittgenstein, no Tractatus Logico-Philosophicus, 2.12 e ss. e 2.2 e ss. (não exactamente a analogia com a pintura mas da proposição lógica com a imagem pictórica) ou nas Investigações Filosóficas, §§ 295, 401 e 518 da 1ª parte ou vi, xi e xii da 2ª parte (na 2ª edição, Blackwell, 1958).

378 Incluímos nesta sede epistemológica e metafísica não apenas a questão do cepticismo (gnoseológico) e do

niilismo (ontológico) como aquelas questões que contemporaneamente se incluem na filosofia da mente, mas que evidentemente não constituíam nenhum disciplina separada nos estudos filosóficos do século XVII.

151

Secção 1.

Sistema clássico da Representação pictórica

Quando na secção 2 do capítulo 1, analisámos a “teoria do signo” na Lógica de Port-

Royal, encontrámos a seguinte afirmação:

“…quando olhamos um certo objecto apenas enquanto representa um outro, a ideia que dele temos é uma ideia de signo; (...) É assim que normalmente olhamos para os mapas & para os quadros.” (Cap. IV)

Segundo ela, conclui-se rapidamente que os quadros são signos, na medida [“apenas”] em que olhamos “normalmente” para eles como objectos que representam outros objectos. Nesse sentido, aliás, os quadros são coisas-signo, tal como outras coisas que representam coisas diferentes de si, sejam os mapas ou os espelhos (referidos no mesmo cap. IV da Lógica), mas também – acrescentamos nós – as gravuras, as estátuas, as pautas de música, as cartas de tarot, os livros de histórias, as peças de teatro, de entre muitos outros exemplos que poderíamos elencar. Recordamo-nos também que a Lógica distinguia signos naturais – os que «não dependem da fantasia dos homens» - dos signos de instituição – que requerem uma convenção (a maior parte das vezes tácita) que permita a sua interpretação. E no capítulo XIV da 2ª parte, acrescentavam algo à explicação desta distinção, dizendo que os signos naturais têm uma ligação visível com as coisas que representam, de tal modo que ao olharmos para um retrato de César, dizemos, «sem preparação e sem hesitar», que é César, como quando olhamos para um mapa de Itália dizemos que é Itália!379 Ora, se reflectirmos com cuidado sobre o que aqui é dito, podemos questionar-nos sobre o rigor desta distinção, pois o facto de haver uma relação “natural” visível entre a coisa que representa e a coisa representada (figurada) não impede que haja um certo grau de convencionalidade ou, pelo menos, de cultura visual, que nos permita interpretá-la correctamente. Será que sem um mínimo de educação poderíamos olhar para um mapa e ali reconhecer a representação de um território, ainda que não soubéssemos de que território se tratasse? E mesmo quando olhamos para um retrato, uma paisagem ou um quadro de história, não será que necessitamos pelo menos de uma formação prévia, uma educação perceptiva que nos permita ali ver a pessoa retratada, o

379

Cf. Arnauld & Nicole, op. cit., p. 156: «Et ainsi l’on dira sans préparation & sans façon d’un portrait de Cesar, que c’est Cesar ; & d’une carte d’Italie, que c’est l’Italie.»

152 conjunto de árvores, montanhas ou casas que se organizam no espaço do quadro ou as acções que desempenham as figuras da história representada? E, contudo, penso que estaremos prontos a conceder que, com maior “naturalidade”, reconhecemos numa superfície manchada de cores o desenho do rosto dos nossos pais quando olhamos para um retrato deles pintado numa tela, do que conseguimos assobiar uma melodia ao olhar para uma pauta que contenha a sua notação musical. Pelo que deverá haver algo de “natural”, isto é, algo que se prende com a nossa experiência perceptiva de uma imagem, para nela reconhecermos quase espontaneamente a figura ou figuras nela representadas. Mas, por outro lado, essa experiência também não parece dispensar a “fantasia dos homens”, na medida em que o que os olhos objectivamente vêem na superfície de uma tela ou ecrã são os meros efeitos coloridos da mistura de substâncias químicas ou da projecção luminosa de outras imagens transformadas por lentes ou outros dispositivos tecnológicos. Para além disso, muitas das vezes, as figuras reconhecidas numa representação pictórica não parecem corresponder (assemelhar-se) a nada que exista fora dela – no que poderíamos chamar “mundo real”. Nesse caso, como e porque poderemos ainda falar de representação? Verificamos, pois, que há uma série de problemas que a distinção de Port-Royal não resolve, antes pelo contrário, parece acrescentar novos problemas. Porém, alguns desses problemas talvez possam ajudar a colocar as questões que importam para se compreender o sentido e o alcance da expressão “representação pictórica”.

Devemos esclarecer, no entanto, que quando consideramos, neste capítulo, a

representação pictórica, temos em mente um tipo de representação específica, que é próprio

das imagens de pintura. Poremos de lado outros modos de representação visual – assumindo que a pintura o é -, mas teremos de tentar estabelecer a sua especificidade. Perguntar-se-á: como é que a pintura representa? O que significa a pintura representar? O que a distingue de outras formas de representação? Será a pintura simplesmente representação? [O que faz de um quadro uma pintura?] Partiremos para esta reflexão do contexto teórico-prático do século XVII, pelo que nos socorreremos, por um lado, de alguns textos – tratados, conferências ou correspondência – escritos pelos próprios pintores da época, por outro, daquilo que para o que nos interessa será ainda mais interessante e revelador, os próprios quadros que na época foram produzidos, os quais, apesar de não falarem, dirão talvez mais sobre o que é a pintura do que os textos dos seus autores. Mas, como não poderia deixar de ser, fazemos uma reflexão no século XXI e por isso não deixaremos de discutir o problema nos seus aspectos pertinentes para a nossa realidade hodierna nem de discutir, numa perspectiva crítica, algumas soluções filosóficas contemporâneas para estes problemas da representação pictórica. De outro modo,

153 não faria sentido, já que o propósito desta investigação não é fazer uma mera história das ideias.

Comecemos com as palavras de um pintor.

A pintura é uma imitação…

Numa carta escrita pelo pintor francês Nicolas Poussin a um outro pintor, Roland Fréart de Chambray, em 1 de Março de 1665380, encontramos a seguinte definição de pintura:

“Definição

É uma imitação feita com linhas e cores, em qualquer superfície, de tudo aquilo que se vê debaixo do sol, o seu fim é a deleitação.”381

Tal definição, simples e concisa, podia encontrar-se por diferentes palavras ou palavras semelhantes em muitos tratados da época382, ecoando, aliás, já as dos tratados do século XVI e até do anterior. Mas é evidente que o atributo principal da pintura que sobressai nestas definições é a “imitação”. Este termo, porém, entendido, tantas vezes, de maneira simplista e carregada de preconceito, esconde uma complexidade semântica, entretecida ao longo de séculos e cheia de desvios, equívocos, sobreposições e contaminações que foram sendo perpetuados por sucessivas interpretações e diferentes usos. Pelo menos, desde o Renascimento, ele foi – neste âmbito da teoria da pintura – permutado com outros termos e

380 Nicolas Poussin (1594-1665) escreveu esta carta no seu último ano de vida para responder ao envio do livro

de Roland Fréart de Chambray, Idée de la perfection de la peinture (1662) [publicado no ano da primeira edição da Lógica de Port-Royal], pelo irmão deste e patrono de Poussin, Paul Fréart de Chantelou, três anos antes. A data desta carta é 1 de Março de 1665 nas edições das cartas de Poussin de Anthony Blunt [Poussin, Nicolas, Lettres et propos sur l'art, textes réunis et présentés par Anthony Blunt ; avant-propos de Jacques Thuillier. Réflexion sur Poussin / par Arikha, Ed. Hermann, Paris, 1989.] e de Pierre Colombier [Poussin, N. Lettres de Poussin, publiées avec une introduction par Pierre du Colombier, A la Cité des Livres, Paris, 1929.], mas na edição de Quatremère de Quincy de 1824, a data é 7 de Março de 1665 [Poussin, N. Collection de lettres de Nicolas Poussin, Publ. par les soins de Quatremère de Quincy, d'après Quérard, ed. F. Didot,Paris, 1824.]. Para a tradução completa desta carta de Poussin ao Sr. de Chambray, veja-se a o anexo T3.IV.

381 « DÉFINITION / C’est une imitation faite avec lignes et couleurs en quelque superficie de tout ce qui se voit

dessous le soleil, sa fin est la délectation.», cf. Poussin, N. Lettres et propos sur l’art, op. cit., p. 174. 382

O próprio Poussin diz nessa carta inspirar-se no que aprendeu com Franciscus Junius (1591-1677), autor do De Pictura Veterum (1637), o tratado sobre pintura que gozava de maior reputação na Roma de meados do século XVII, onde vivia Poussin. Nesse tratado, Junius refere uma série de ideias de pintura desde a Antiguidade Clássica, sempre insistindo na noção de imitatio ou µίµησις [da natureza].

Francisco Pacheco (1564-1644), o pintor espanhol que terá sido o primeiro mestre de Velásquez, escreveu também um tratado de pintura, Arte de la pintura, su antigüedad y su grandeza, publicado postumamente em 1649 e, no capítulo 1º do seu Livro I, encontramos a seguinte definição: «Pintura es Arte que enseña a imitar con lineas, Y colores. Esta es la difinicion.», Cf. Pacheco, F. Arte de la pintura, su antigüedad y su grandeza, Ed. Simon Faxardo, Sevilla, 1649, p. 2.

154 traduzido da sua dupla origem greco-latina, µίµησις e imitatio, para diferentes palavras nas línguas vernáculas que anunciavam outros sentidos e novos usos. Leon Battista Alberti (1404- 1472) que escreveu o seu tratado seminal De Pictura, em 1435, e o traduziu, ele mesmo, no ano seguinte para italiano, Della Pittura, ora transpunha, por vezes, imitari para fingere e

contraffare, ora o traduzia literalmente para imitare ou, interpretativamente, para ritrarre383;

repraesentare foi também usado, noutras partes do tratado, no mesmo sentido de imitari e

traduzido ora por ripresentare ora por imitare, na versão italiana384. Na sinonímia aparente destas palavras, escondem-se, porém, subtilmente, diferenças consideráveis que, ora podem significar a ideia de reprodução, por meio de linhas e cores, de uma realidade exterior à obra que a representa, que a imita ou que a retrata, e que pode ser reconhecida como um conteúdo representativo no quadro, pelos espectadores, ora podem implicar a invenção e criação de ficções sem paralelo na realidade objectiva, mas que de certa forma imitam princípios formais de ordem e congruência, semelhantes aos da natureza, ainda que, quiçá, mais perfeitos, por haver no génio do pintor uma centelha do espírito do Criador.

Note-se, no entanto, que já nas suas fontes clássicas, os termos µίµησις e imitatio carregavam consigo ambiguidades e diferentes sentidos que prejudicaram muitas vezes a sua correcta interpretação pelos tratadistas385. Desde logo, a noção de µίµησις fora, em alguns textos antigos, aplicada não só às artes visuais ou às artes consideradas miméticas ou representativas em geral, mas, por vezes, também às τέχναι humanas em geral (por exemplo, na Física de Aristóteles)386. Para além disso, foi usada a noção em contextos que

383 Cf. Alberti, Leon Battista, De Pictura/Della Pittura, I, 2 «Nam ea solum imitari studet pictor quae sub luce

videantur / Solo studia il pittore fingere quello si vede.»; II, 31 «Et nosti quam sit impossibile aliquid pingendo

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