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1.5 A VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.5.1 A teoria da eficácia direta

Já durante a vigência da Lei Fundamental de Bonn na Alemanha, Hans Carl Nipperdey83 formulou teoria segundo a qual as normas de direitos fundamentais seriam imediata – ou diretamente – aplicáveis às relações privadas (unmittelbare Drittwirkung ou direkte Drittwirkung), provocando tal posicionamento na Câmara Primeira Tribunal Federal do Trabalho da Alemanha (Bundesarbeitsgerich), no qual foi seu primeiro presidente (exercício de 1954 a 1963).84 Segundo esta teoria, os direitos fundamentais são direitos subjetivos imediata ou diretamente (ex constitutione) oponíveis nas relações jurídicas entre particulares, não dependendo, necessariamente, da vigência de regulações concretizadoras específicas, nem de interpretação e de aplicações judiciais de textos de normas imperativas de direito privado, de modo especial, de textos portadores de cláusulas gerais. Em suma, os direitos fundamentais não necessitam da prévia ponderação legislativa, administrativa ou jurisdicional para incidir no espaço privado.85

Segundo Wilson Steinmetz, a teoria da eficácia imediata tem como premissas básicas: (i) as normas de direitos fundamentais conferem ao particular (indivíduo, cidadão) uma posição jurídica oponível não so ao Estado, mas também os demais particulares. Trata-se do status socialis de que falava Nipperdey, uma posição jurídica que

83 Acerca da dogmática constitucional, Guilherme Dray afirma: “a questão foi colocada pela primeira vez pela

doutrina alemã, designadamente por Ipsen, Leisner e Nipperdey, sob o título de Drittwirkung der Grundrechte”. (DRAY, Guilherme Machado. O princípio da igualdade no Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 94-95).

84 Gilmar Mendes aponta que o Tribunal Federal do Trabalho da Alemanha (Bundesarbeitsgerich) assim justificou

o seu entendimento: “(...) em verdade, nem todos, mas uma série de direitos fundamentais destinam-se não apenas a garantir os direitos de liberdade em face do Estado, mas também a estabelecer as bases da vida social. Isso significa que disposições relativas a direitos fundamentais devem ter aplicação direta nas relações privadas entre os indivíduos. Assim, os acordos de direito privado, os negócios e atos jurídicos não podem contrariar aquilo que se convencionou chamar ordem básica ou ordem pública”. (MENDES, Gilmar Ferreira. Eficácia das garantias constitucionais nas relações privadas: uma análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. In: ALVIM, Eduardo Arruda; LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; NERY JR., Nelson (coords.). Jurisdição e hermenêutica constitucional – em homenagem a Lenio Streck. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2017, p. 415).

85 “Postula-se por uma eficácia não condicionada à mediação concretizadora dos poderes públicos, isto é, o

conteúdo, a forma e o alcance da eficácia jurídica não dependem de regulações legislativas específicas nem de interpretação e de aplicações judiciais, conforme aos direitos fundamentais, de textos e normas imperativas de direito privado, de modo especial, daqueles portadores de cláusulas gerais.” (STEINMETZ, Wilson Antônio.

autoriza a participar e elevar uma pretensão de respeito contra todos.

(ii) os direitos fundamentais são e atuam como direitos subjetivos constitucionais independentemente de serem públicos ou privados.

(iii) Como direitos subjetivos constitucionais, a não ser que o Poder Constituinte tenha disposto o contrário, operam eficácia independentemente da existência de regulações legislativas específicas ou do recurso interpretativo-aplicativo das cláusulas gerais do direito privado.

Para Konrad Hesse, defensor da aplicabilidade mediata,86 a aplicação direta é inviável por quatro motivos: (1) a clareza e a certeza jurídica necessárias para o tráfico jurídico-privados resultariam afetadas sensivelmente; (2) nos conflitos privados todos os interessados gozam da proteção dos direitos fundamentais, diversamente do que ocorre nas relações entre os administrados e o Estado; (3) a aplicação imediata poria em risco o princípio fundamental da autonomia privada; (4) ela converteria o Tribunal Constitucional num tribunal de conflitos jurídico-civis. Cabe, então, ao legislativo estabelecer a influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado,87 devendo valer-se das cláusulas gerais para tanto. O juiz, segundo Hesse, “ha de interpretar el Derecho aplicable de conformidad com la Constitución, y debe observar los derechos fundamentales como principios objetivos em la precisión de conceptos indeterminados o em la interpretación de cláusulas generales”.88

A tese da eficácia direta ignora a diferença qualitativa entre o Estado e o particular, bem como entre direitos público e privado que disciplinam duas relações jurídicas de natureza também muito diversas. Ela torna a aplicabilidade dos direitos fundamentais uma tarefa impossível, porque os direitos fundamentais tendem, por sua abrangência, a colidir em vários setores da realidade social. A regra hermenêutica de ouro pode ser traduzida pela seguinte fórmula: o titular do direito não precisa justificar seu exercício. Já o Estado, por ser o destinatário imediato das normas de direito fundamental, deve sempre justificar sua ação quando ela representar uma intervenção na liberdade. Para Leonardo Martins, dizer que os direitos fundamentais têm eficácia horizontal imediata é suspender essa diferença fundamental,

86 Admite que, apenas excepcionalmente, para “proteção de âmbitos particularmente ameaçados da liberdade

humana” haja aplicação direta. (HESSE, Konrad. Derecho Constitucional e Derecho Privado. Madri: Civitas, 2001, pp. 67).

87 “Al legislador del Derecho Privado corresponde constitucionalmente la tarea de transformar el contenido de

los derechos fundamentales, de modo diferenciado y concreto, em Derecho inmediatamente vinculante para los participantes em una relación jurídico-privada”. (HESSE, Konrad. Derecho Constitucional e Derecho Privado. Madri: Civitas, 2001, p. 56)

gerando incertezas jurídicas insuportáveis, a politização dos direitos fundamentais e seu consequente esvaziamento dogmático-normativo.89