• Nenhum resultado encontrado

Teorias do corpo

No documento O corpo re-tocado (páginas 47-51)

2. Arqueologias do corpo

2.2. Teorias do corpo

A fusão dos vocabulários greco-latinos permitiu definir e separar as palavras corpo e alma, pois antes disso todas as palavras antigas para alma, por exemplo, originalmente significavam ar ou respiração. A separação do significado de cada uma destas palavras atravessou os séculos até os dias de hoje (Dagognet, 2012). Interessante notar que a etimologia da palavra corpo tem origem no latim corpus, corporis, resultando na família corpulência, incorporar, encarnar. Esse corpus, no entanto, segundo Dagognet, se refere ao corpo morto, inerte, cadáver, em contraposição à Anima ou alma. Na versão grega de separação do corpo e da alma se admitem dois termos: Soma para o corpo morto e Demás para o que está vivo. Porém, a palavra Soma se aproxima muito de Sema (túmulo) e este jogo de palavras pode ter influenciado Platão a sentenciar que filosofar é morrer, pois ao filosofar nos afastamos do corpo que nos perturba (Dagognet et al., 2012, p.1-38).

De acordo com Le Breton (2011a: 13), uma tradição de suspeita ao corpo percorre o mundo ocidental desde os pré-socráticos. Nessa linha de pensamento, Platão afirma que a alma humana estava aprisionada dentro de um corpo, ou melhor, dentro de um túmulo da alma, imperfeito, perecível e fonte de perdição. É com Platão que o modelo gnóstico, situação onde seres puramente espirituais em sua origem encarnam em corpos limitados e escravizados pelos seus desejos, ganha entendimento. Para controlar tais desejos a que Platão se referia, era exigida a prática da ascese8, uma filosofia onde se propõe a austeridade e a comedição dos prazeres mundanos.

Entre os gregos a ascese era parte constitutiva da Paidéia do homem livre, e a dietética era parte fundamental da ascese grego-latina, pois estava subordinada ao

8 “Na antiguidade tardia, numa época na qual a política não consistia em programas e manifestos, os poetas e

pensadores da Paidéia antiga forneciam os modelos de comportamento moral e político, pois problemas morais e políticos eram resolvidos no contexto dos modelos clássicos de ação. Neste contexto, o papel político dos ascetas consistia em serem considerados exemplos paradigmáticos de conduta que incitavam imitação. Numa época em que as instituições e estruturas legais não satisfaziam as necessidades dos indivíduos, os ascetas preenchiam esse espaço exercendo o papel de mediadores, árbitros, exemplos e intercessores, estimulando o desejo de emulação e preparando o caminho para a cristianização do Império romano” – C.f. O corpo incerto (Ortega, 2008, p.27).

Figura 7. O corpo tripartido por Robert Fludd: a esfera dos sentidos (corpo inferior), a esfera da alma (região do peito), e a esfera do intelecto (cabeça)

princípio geral da estética da exigência, do cuidado de si, no qual o equilíbrio corporal é uma das condições principais da justa hierarquia da alma, que se reflete no equilíbrio da polis (Ortega et al., 2008, p.23-24). Em miúdos, a dietética reflete a ideia de que tudo o que é mantido dentro do corpo é mantido fora dele, algo como um microcosmo e um macrocosmo onde a liberdade política visa sempre o outro e a cidade:

A modificação ascética de si mesmo se depreende da vontade de exercer o poder político sobre os outros. É a presença dos outros e a esfera dos assuntos humanos que garantem a realização do cuidado de si. Constitui-se uma relação de reciprocidade, visto que cuidando de mim contribuo para a prosperidade e felicidade da cidade e dos outros cidadãos; prosperidade e felicidade da qual participo como membro da comunidade (Ortega, 2008, p.25). Le Breton (2011a) avisa que a gnose de Platão manifesta um dualismo rigoroso, onde de um lado temos o corpo, o tempo e a morte e do outro a plenitude, o conhecimento, a alma e o Bem.

O corpo, como mau elemento, só nos traz ilusões, sujeiras, erros, preocupações, decepções: ele nos enche, também, de amores, desejos, temores, quimeras de todo tipo, de inúmeras tolices... Guerras, discussões, batalhas, só o corpo e seus apetites são os causadores, pois só guerreamos para acumular riquezas e somos forçados a fazê-lo por causa do corpo, cujo serviço nos mantém escravizados. Assim, esse corporal provoca a perda, tanto do indivíduo quanto da cidade (Dagognet, 2012, p.10).

A sociedade, com Platão, foi igualmente encarada e entendida como o equivalente a nossa própria constituição antropológica. A tripartição do platonismo (ventre, peito, cabeça) – embora Platão a tivesse recebido de uma antiga tradição – reencontra-se na metáfora de proporções humanas (o pulsional, a coragem, a razão ou inteligência) e principalmente na estratificação social (os negociantes, os guardas e os dirigentes) (Dagognet et al., 2012, p.16). O corpo, no entendimento de Platão, propicia um modelo no qual se torna possível representar a sociedade, a política ou a

alma. A tripartição morfobiológica de Platão dá à fisiognomia9 ares de ciência ao propiciar a aplicação do princípio de correspondência entre os mundos vegetal e animal com o humano.

Com Aristóteles, o corpo será encarado sob o ponto de vista ontológico, no qual a simbiose entre a ideia e os substratos serão valorizados conforme possibilitam a animação do corpo. O filósofo distingue as partes homeomeras e não homeomeras com base nos quatro elementos primitivos (água, terra, fogo e ar) e nos acoplamentos apropriados, a partir do quente, do frio, do seco e do úmido. De acordo com Dagognet (2012:19), Aristóteles não limita o tecido ou o órgão a um papel de simples suporte ou de sustentáculo ao qual se deve inscrever a animação, pois ele acredita numa organização estruturada para seu funcionamento e privilegia o conjunto e não as partes. Aristóteles confirma a ideia de que o homem se reconhece por fora e que basta sua simples aparência (morfologia) para assinalar sua especificidade. Dagognet ainda nós diz que o filósofo estabelece uma escala de configurações onde, em primeiro lugar, se situa a planta, em seguida o animal rudimentar, depois o quadrúpede e por fim a criança e o adulto. Aristóteles julga separar-se aí da interpretação de Anaxágoras ao afirmar que o homem é o mais inteligente dos animais porque conquistou a posição ereta, qualidade de bípede, porque possui um rosto e por fim porque tem mãos10 e destreza manual para execução de tarefas, além do ajuste dos meios aos respectivos fins (Dagognet et al., 2012, p.22-24).

Ninguém pode duvidar do valor do filósofo para a cultura ocidental ao perceber, pelo simples ritmo e morfologia do corpo, sua estrutura e funcionalidade. No entanto, Aristóteles parece ter cometido um erro ao dar ao coração status de principal órgão do corpo por estar protegido por costelas e por ser quente, em oposição ao cérebro que era frio e sem água, o filósofo concluiu:

9

Segundo o Universal-Lexikon, enciclopédia do século XVIII publicada por Johann Heinrich Zedler (1731- 1754), com 64 volumes e mais quatro suplementos, a fisiognomonia é definida como a arte que a partir da configuração exterior dos membros do corpo um indivíduo revela a sua natureza e temperamento emotivo. Durante muito tempo esse estudo fez parte do repertório das ciências ocultas como astrologia e quiromancia. Giovan Battista della Porta, que fundou em Nápoles, em 1560, a Academia para o Estudo dos Segredos da Natureza, insere seus conhecimentos sobre fisiognomonia em seu tratado “Magia Naturalis” (Roob et. Al., 1997, 574).

10 “A mão do homem (arranha, aperta, lança, serve da espada, etc.) desempenha todos esses papéis: sua

mobilidade acompanha a engenhosidade e a inteligência que ela provoca; deixou de ficar presa a um único uso” – C.f. O corpo (Dagognet, 2012, p.24).

Tudo concorria para isto: é o primeiro órgão a se por em movimento, o último a morrer, ocupa o “foco” do organismo, ocupa quase o meio, como se todo o resto (costelas, a caixa torácica) servisse para protegê-lo. Sabemos, também, quanto os gregos valorizavam a circunferência e a esfera, ipso facto, seu centro. Nele, o calor também se intensifica: ora, o ígneo, o fogo, constitui o primeiro dos componentes homeômeros (Dagognet, 2012, p.24). Apesar de não questionar a cooperação entre cérebro e coração, suas observações eram inspiradas pelos princípios da natureza, das regras que ele vira atuar, em especial pela manutenção do meio11. Como suas observações se apoiavam no visível, seu método de compreensão e conhecimento do corpo era pautado pela sua aparência (Dagognet et al., 2012, p.26-27). Após Platão e Aristóteles, entramos na filosofia do organismo humano preconizada pelo epicurismo através de Lucrécio. Ele nos propõe, a esse respeito, uma questão que será classificada nem de moral nem de ontológica, mas psicológica e desmistificadora (Dagognet et al., 2012, p.28-38).

Para Lucrécio, nosso corpo deixa de ser um instrumento a ser dominado ou entendido para ser uma unidade-identidade, algo que se realiza no corpo porque é corporal. Ele rejeita igualmente qualquer teoria filosófica ou metafísica e formula que a alma e o corpo formam um só conjunto ou mais exatamente, um basta para dar conta do outro. O filósofo acredita que tudo é corpo, inclusive a alma, ainda que ele entenda que ela nasça de um composto mais etéreo. A unidade entre corpo e alma, para Lucrécio, é explicada através do escalonamento entre o interior sensível e frágil, enquanto por fora se acumula o pesado e protetor. “É por isso que a maioria dos seres tem envoltórios de couros, de conchas, de membranas calosas ou de cascas” (Lucrécio, livro IV, vers. 935 apud Dagognet, 2012, p.32).

O reconhecimento desse materialismo leva Lucrécio a entender que assimilamos um corpo que já existia e que passamos a fazer uso de suas partes e habilidades. Com ares de pré-darwinismo, ele acredita que os mais bem equipados irão prevalecer, e que os mal dispostos se auto-eliminem (Dagognet et. Al., 2012, p.29). No entanto, talvez a melhor contribuição do filósofo seja a constatação da delicada capacidade sensorial do

11

Aristóteles acredita na absorção de um ser pelo outro: o animal incorpora o vegetal, em seguida o homem se enxerta nesse animal elevando-o. Mas isso não significa que o filósofo caia na tripartição de Platão que ele combateu abertamente (Dagognet et. al., 2012, p.27).

homem, que pode variar de pessoa para pessoa, característica que sinaliza para o aspecto da individualização que é tão importante para o ocidental.

No documento O corpo re-tocado (páginas 47-51)