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Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005

3.4.1 Teorias acerca do desenvolvimento do embrião e o início de proteção do

3.4.1.1 Teorias da singamia e da cariogamia

Segundo Rocha (2008, pp. 75-79), as teorias da singamia e da cariogamia sustentam que os momentos iniciais da formação do embrião caracterizam o início da vida humana, possuindo o embrião um estatuto moral semelhante ao de um ser humano adulto.

A assertiva de que o embrião humano, desde os momentos iniciais de sua formação, é um indivíduo autônomo que inicia seu ciclo vital, de acordo com Palazzani (2005, p.172), fundamenta-se na argumentação de que tal embrião, desde o estágio unicelular, já é um ser vivo (organismo humano) com um sistema único, integrado e organizado que contém intrinsecamente toda informação genética (individual e específica) dotada de orientação autônoma para que ocorra o desenvolvimento pleno do corpo, de modo gradual, contínuo e coordenado.

A teoria da singamia161 menciona que a vida inicia-se na fertilização (momento em que o espermatozóide consegue atravessar a zona pelúcida do óvulo, ou seja, no instante em que ele penetra no óvulo), sendo irrelevante a não ocorrência, ainda, da fusão dos pronúcleos das células germinativas (isto é, a fusão dos gametas masculino e feminino – cada um contendo, de regra, em seus pronúcleos, 23 cromossomos – formando o zigoto – com 46 cromossomos).(ROCHA, 2008, p. 77). 162

A esse respeito, Vasconcelos (2006, p. 38-39) explica que a teoria da singamia defende que o início do processo irreversível de formação de um novo ser humano começa no exato momento em que o espermatozóide penetra no óvulo (iniciando a fusão dos gametas feminino e masculino), denominado fertilização.

Já a teoria da cariogamia sustenta que a vida inicia-se somente após um lapso temporal de aproximadamente 12 horas após o início da fertilização, quando ocorre a concepção (ou seja, quando os pronúcleos dos gametas masculino e feminino – cada um, de regra, com 23 cromossomos - perdem suas membranas e se fundem, passando a possuir 46 cromossomos, formando assim o zigoto).

161

Anote-se, no entanto, que Almeida (2000, p. 134), utiliza-se do termo singamia de modo diverso, como “completa fusão de todos os cromossomos das células germinais”, indicando sua ocorrência para depois do 14º dia da fecundação.

162

Descrevendo esse momento, R. G. P. Ramos (2006, p. 67): “Na espécie humana, como em todos os organismos multicelulares apresentando reprodução sexuada, a fusão dos pronúcleos masculino e feminino, com a consequente restauração do número diplóide de cromossomos, é convencionalmente tomada como o ponto zero do desenvolvimento embrionário.”

Para tal corrente, somente após essa fusão ocorrerá a formação de um novo ser, com identidade genética individualizada, pois a partir da junção dos pronúcleos dos gametas inicia-se uma nova célula, constituída de uma estrutura única, a qual apresenta condições de desenvolver-se de modo autônomo, gradual e coordenado por informações contidas no seu próprio código genético (VASCONCELOS, 2006, pp. 38-39).

Explicando a teoria da cariogamia, Vasconcelos (2006, p. 39)163 menciona que o início da vida humana somente é reconhecido após a fusão pronuclear, em virtude de após esse momento ocorrer o intercâmbio entre as informações contidas em cada uma das

parcialidades caracteristicamente distintas (pronúcleos), resultando na formação de um

todo novo. O indivíduo singular, com genoma único e diferenciado dos demais seres humanos, portanto, surgiria efetivamente somente a partir desse momento.

Essa autora traz, ainda, quatro argumentos fundamentais da teoria da cariogamia, segundo ordenação de Angelo Serra:

“a) com a fusão dos pronúcleos, feminino e masculino, começa a existência de uma nova célula, constituída de uma estrutura única, diferente de qualquer outra existente;

b) essa célula começa a desenvolver-se de forma autônoma a partir das informações contidas no seu próprio código genético, de forma contínua, complexa, gradual e altamente coordenada;

c) a força que a impulsiona é interna e intrínseca ao organismo singular e continua até tornar-se completo;

d) de sorte que o zigoto, resultado da fusão pronuclear, representa um ser humano estruturalmente original, no alvorecer de seu ciclo vital.”

Defendendo a adoção dessa teoria, R. P. Silva (2002, p. 86) sustenta que a célula em estado de pronúcleos não contém ainda uma identidade completa e própria, pois é a soma de duas identidades parciais e alheias (a do espermatozóide e do óvulo), sendo que é a partir da fusão dos pronúcleos materno e paterno que se inicia o ciclo vital humano.

Assim, nota-se que, para ambas as teorias, o zigoto é um ser individualizado, dotado de vida. A diferença é que, para a primeira (singamia), a vida inicia-se alguns momentos antes da formação do zigoto: quando do início da fertilização, no momento em que o espermatozóide penetra no óvulo.

A relevância de tal distinção, na seara jurídica, pode ser encontrada, dentre outros aspectos, na possibilidade de definir com maior precisão o momento exato em que se inicia a proteção do direito à vida, evitando-se que os legisladores, doutrinadores e operadores jurídicos utilizem-se de terminologia ambígua e ensejem equívocos em relação ao real sentido dos termos utilizados.

163

A esse respeito, Vasconcelos (2006, p. 38) menciona que apesar de grande parte dos juristas tratar como idênticos os termos “fertilização” e “concepção”, esses conceitos, embora intimamente ligados, expressam realidades distintas, pois consistem em fases sucessivas no processo de geração de um ser humano.

Na verdade, embora seja ideal a utilização dos termos “fertilização” e “concepção” nos sentidos aqui apontados, o que importa é que os legisladores, a doutrina e os operadores do direito em geral tenham conhecimento e identifiquem esses dois momentos diversos, a fim de evitar ambiguidades e imprecisões.

Na Convenção Americana de Direitos Humanos164, por exemplo, está estabelecido no artigo 4, 1, que toda pessoa tem direito que se respeite sua vida e que “esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde a concepção”. Com isso, em tese, o texto está a indicar a adoção da teoria da cariogamia, devendo o direito à vida ser protegido, em geral, a partir da formação do zigoto, a menos que se tome o termo “concepção” em sentido amplo, levando a proteção do direito à vida iniciar-se alguns momentos antes, ou seja, desde o início da fertilização (isto é, a partir do momento em que o espermatozóide penetra no óvulo)165.

Ainda em relação a esse dispositivo, uma outra interpretação possível é considerar o termo “concepção” de modo restrito, limitado a significar a formação de um zigoto que se encontre no interior do corpo materno (no útero)166, levando em conta o fato de que, na época da elaboração do Pacto de San Jose, não havia ainda ocorrido experiência de sucesso de fecundação extracorpórea167.

Todavia, isso implicaria em ignorar a realidade atual, na qual o desenvolvimento científico propiciou a disseminação da formação do zigoto in vitro, embora ainda seja imprescindível sua introdução no corpo materno para que seu desenvolvimento prossiga.

É necessário, portanto, que a interpretação de tal dispositivo, embora fiel ao seu sentido quando de sua criação (ou seja, proteção do direito à vida, em geral, desde a concepção), acompanhe a mutação da realidade (considerando abrangida em seu âmbito de proteção, por isso, a concepção quer in vitro, quer in utero), sob pena de se criar, no caso de um entendimento mais restritivo, uma norma obsoleta e apartada da realidade fática.

A esse respeito, aliás, Bastos e Meyer-Pflug (2005, pp. 155-156):

164

Incorporada ao direito brasileiro, conforme mencionado neste capítulo, em tópico anterior.

165

Esse foi o entendimento, aliás, do Ministro Lewandowski, em seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510-0-DF.

166

Esse é um dos sentidos, por exemplo, que constam do Dicionário Novo Aurélio (FERREIRA, 1999, p. 519): “ato ou efeito de conceber ou de gerar (no útero); geração.”

167

“Há que se considerar que é próprio da vida social o estar em constante processo de desenvolvimento, de mutação. Nesse sentido, resta claro que as normas jurídicas que visam a regular a vida social também sofrem alterações. Em face deste fato, tem-se que, mesmo não havendo condições de as normas jurídicas anteciparem, preverem ou até propiciarem essa evolução, elas devem ao menos acompanhá-la, sob pena de ficarem apartadas da realidade fática e se tornarem obsoletas.”

Registre-se que, nesse sentido, o Ministro Lewandowski, em seu voto na ação direta de inconstitucionalidade nº 3510-0-DF168, relevando o fato de que à época da aprovação da Convenção Americana de Direitos Humanos não se cogitava, ainda, da técnica da fertilização extra-corpórea para os efeitos legais, interpreta o respectivo art. 4º, 1, conforme a realidade contemporânea, afirmando que, para o Pacto de San Jose, “a vida começa na concepção, quer iniciada in utero, quer in vitro”, mesmo que a lei do Estado signatário da Convenção possa, eventualmente, deixar de protegê-la em situações excepcionais, caso outros valores estejam em jogo.

Importante mencionar, outrossim, que essas teorias – notadamente a teoria da cariogamia - foram a base da fundamentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510-0-DF, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal brasileiro, julgada improcedente em maio de 2008.

Segundo o autor da ação, dentre outros argumentos, diante da proteção constitucional do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, objetos respectivos do art. 5º, caput, e art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, seria inconstitucional a autorização, dada pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, no art. 5º e parágrafos, do uso, para fins de terapia e pesquisa, de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro. A petição inicial sustenta que “a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação: o zigoto, gerado pelo encontro dos 23 cromossomos masculinos com os 23 cromossomos femininos”169, levando a concluir que, na fundamentação jurídica da ação, o autor adotou a teoria da cariogamia.

Além disso, ainda no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade nº 3510-0-DF, a proteção do embrião desde a fertilização (singamia) pode ser encontrada na argumentação do Ministro Lewandowski, o qual, dentre diversas considerações, sustentou a proteção do direito à vida, do ponto de vista estritamente jurídico-positivo, desde a concepção, mas tomando tal vocábulo em sentido amplo, abrangendo o momento do encontro inicial do espermatozóide com o óvulo. Vejamos:

168

Vide mais adiante, ainda neste tópico, transcrição do trecho do voto do Ministro Lewandowski na ação direta de inconstitucionalidade nº 3510-0-DF cujo teor é comentado neste parágrafo.

169

“A se levar às últimas consequências tal raciocínio, qual seja, o da prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre as leis ordinárias, não há como deixar de concluir, concessa venia, que a vida, do ponto de vista estritamente legal, começa na concepção, ou seja, a partir do encontro do espermatozóide com o óvulo. Isso porque o art. 4, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, sem cuidar da implantação ou não do oócito fecundado em um útero humano – até porque à época de sua aprovação não se cogitava, ainda, da técnica da fertilização extra-corpórea, estabelece, tout court, o seguinte: ‘Toda pessoa tem direito que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde a concepção’.” (grifo no original).

E no voto do Ministro Carlos Britto nessa mesma ação direta de inconstitucionalidade, este entendeu, de modo semelhante ao preconizado pelas teorias da cariogamia e singamia (mas sem precisar o momento exato), que o início da vida humana só pode coincidir com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide (embora tenha se manifestado que a proteção constitucional do direito à vida somente ocorra com o nascimento com vida já que, dentre outras argumentações, esse início de vida é distinto da constituição jurídica da pessoa natural).

Anote-se, por fim, que não se firmou uma posição majoritária no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade nº 3510-0-DF que afirmasse ou negasse o início da vida a partir da concepção, pois o que se julgou improcedente foi a alegada ofensa ao direito à vida por parte do art. 5º da Lei nº 11.105/2005, que permitiu pesquisas com células-tronco embrionárias.

É possível sustentar, portanto, que no ordenamento jurídico brasileiro o art. 4º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos indica o início da proteção do direito à vida, em geral, desde a concepção, assim como que a exceção a essa proteção indicada no art. 5º da Lei nº 11.105/2005 é autorizada pela expressão “em geral” daquele dispositivo.

Após essas considerações, passa-se a expor as teorias denominadas genético- desenvolvimentistas, as quais indicam o início da vida humana em fases subsequentes do desenvolvimento embrionário e fetal.