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2. Ser adulto: o que isso significa?

2.2.4 Terri Apter

Entre os mais recentes estudos publicados sobre o ingresso no mundo adulto, encontra-se o de Terri Apter 101, psicóloga americana, radicada na Inglaterra. A partir de extensa pesquisa com seiscentos jovens, coordenada pelo Economic and Social Research Council da Grã-Bretanha, em 1997, e de trinta e duas entrevistas individuais realizadas por ela própria, de 1994 a 2000, Apter levantou importantes informações sobre os problemas, as angústias e os sofrimentos de indivíduos entre 18 e 24 anos.

Nessa fase limiar entre um estágio de desenvolvimento e outro, todo jovem vê-se diante de questões desafiantes, para as quais ele não encontra soluções facilmente. “Como vou me sair como um deles – um dos adultos?”, “Estarei à altura de enfrentar um mundo mais amplo?”, “Serei capaz de aprender o que eu preciso saber?”, “Quem serão meus amigos?” são perguntas que os jovens se fazem e que, se perquiridas atenciosamente pelos adultos, revelam as carências e inseguranças típicas da faixa etária. Segundo Apter 102, os adultos – pais, professores, patrões – em vez de serem recipientes seguros para as ansiedades dos jovens, ao contrário, com freqüência escutam muito mal seus pedidos de socorro.

De acordo com as entrevistas realizadas pela psicóloga, as crianças estão entrando muito depressa na puberdade e demorando mais para atingirem a idade adulta. A constatação permite concluir que a fase de moratória, conforme descrita por Erikson e retomada por Calligaris, esteja cada vez mais extensa, intensificando

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Idem, ibidem, p. 62.

101 APTER, Terri. O mito da maturidade: o que os adolescentes precisam para se tornarem

adultos. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro, Rocco, 2004.

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os problemas relacionados ao desenvolvimento durante a adolescência e postergando as tarefas específicas de cada fase do desenvolvimento. O processo de preparação para a vida adulta, hoje em dia, é muito mais longo, haja vista as exigências de treinamento e formação educacionais impostas pela sociedade como pré-requisitos para a ocupação profissional em diversas áreas. Dessa forma, sair da casa dos pais atualmente tem-se tornado tarefa muito mais complicada do que já foi no passado. Os próprios estudos de Apter 103 revelam esse fato objetivamente:

Quarenta por cento das mulheres jovens que saem de casa, e cinqüenta por cento dos homens jovens, retornam em seguida. Sair de casa é uma transição intermitente e não marca a verdadeira independência dos pais, seja emocional ou financeira. [...] Estabelecer-se como um adulto numa casa independente era um dos sintomas de maturidade considerados como coisa normal. Hoje, devido ao seu alto custo, essa é uma meta distante, facilmente frustrada. É cada vez maior o número de jovens que voltam a morar com os pais depois de formados, fazendo da casa deles a base para seus primeiros passos na carreira: cinqüenta e oito por cento dos jovens entre vinte e dois e vinte e quatro anos estão vivendo agora com os pais, e trinta por cento daqueles entre vinte e quatro e trinta anos moram com os pais. Hoje, um jovem, homem ou mulher, leva de cinco a dez anos para trocar de base, totalmente, da casa dos pais para a sua própria casa.

Ao contrário do que se passava até as décadas de 1950 e 1960, quando os jovens, então considerados rebeldes, criticavam e negavam os valores tão fortemente esquematizados e previsíveis da maturidade, atualmente, eles sentem-se perdidos justamente pela falta de parâmetros e pela confusão de conceitos divergentes relacionados com o que significa ser adulto hoje em dia. Não há na sociedade contemporânea padrões claramente definidos que possam servir como referência para um indivíduo certificar-se de que esteja ingressando de maneira adequada na vida adulta. A entrada nessa fase da vida está relacionada na atualidade mais às atitudes individuais do que a um conjunto de normas universalmente aceito.

Para identificar o indivíduo que se encontra na passagem entre a adolescência e a idade adulta, entre 18 e 24 anos, Apter 104 utiliza o termo

103 Idem, ibidem, p.18. 104

“thresholder” 105, como referência a esse momento da vida em que se está simultaneamente na infância e na maturidade. É justamente por sentirem-se não- pertencentes a um período nem a outro que os jovens sofrem de instabilidade emocional e falham diante de questões em que autoconfiança, discernimento e controle são exigidos. Constitui-se motivo de sofrimento para eles o fato de constatarem, nessa fase, que os contextos nos quais se desenvolvem – família, vizinhança, escola, emprego – não funcionam em conjunto, obrigando-os a transitarem entre o desempenho de diferentes papéis sociais, sem que disponham de versatilidade para tanto. Nesse momento, eles necessitam de orientadores, que são procurados na figura dos próprios pais ou de adultos ligados às mais diferentes instituições sociais: professores, religiosos, terapeutas, entre outros. Mesmo assim, na maior parte das vezes, esse auxílio é interpretado como insatisfatório, uma vez que é característica dos jovens a sensação de falta de apoio generalizada e a de que ninguém é capaz de ajudá-los a compreenderem-se a si mesmos. Em conseqüência dessa situação, é normal lançarem mão de mecanismos de defesa, tais como hábitos de distração e negação, que podem cristalizar-se em padrões de comportamento para a vida toda.

Mesmo quando os jovens transitam por essas encruzilhadas com ar de que “está tudo bem”, eles vivem uma silenciosa tragédia de sofrimentos desnecessários, que poderia – e deveria – ser aliviada. Porque esse sofrimento gera inseguranças e reduz a motivação numa época de momentos decisivos em potencial, quando as escolhas podem mudar para sempre o curso da adaptação e do sucesso na vida adulta. 106

Grande parte da responsabilidade dessa conjuntura, Apter 107 atribui ao que ela chama de “mito da maturidade”, segundo o qual a idéia de ser maduro significa ser independente, no sentido de estar separado ou ser autônomo. Ao acreditarem nesse mito – e, por conseguinte, fazerem os jovens acreditarem também –, os adultos estariam, no entender da psicóloga, prejudicando a passagem dos adolescentes para a idade adulta, pela idealização exagerada da independência e

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Neologismo em língua inglesa criado pela autora a partir do termo “threshold”, que em Português, de acordo com o contexto, poderia ser traduzido por “limiar”, “soleira de porta”, “começo”, “princípio”.

106 APTER, Terri. O mito da maturidade: o que os adolescentes precisam para se tornarem

adultos. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro, Rocco, 2004, p.22.

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da autoconfiança. A crença de que a maturidade tenha como marca a separação dos amores e necessidades infantis faz com que a dependência, ainda perfeitamente normal nesse período, seja compreendida como fraqueza. Dessa forma, muitos pais, professores, mentores, patrões e demais adultos, em nome do amor e daquilo que julgam ser o melhor para o desenvolvimento, retiram o apoio emocional, prático ou financeiro, deixando que os jovens solucionem os próprios problemas ou até mesmo que eles sofram sozinhos as conseqüências de erros e falsos julgamentos.

Ocorre, porém, ainda de acordo com o pensamento de Apter 108, que o desenvolvimento humano é relacional, ou seja, as pessoas nascem e são criadas em relacionamentos de dependência e amor. Por mais que os indivíduos se transformem durante o processo de crescimento, por mais que os seres amados e as relações com eles se modifiquem com o passar dos anos, a união e certo grau de dependência mútua permanecem pela vida inteira. Portanto, acreditar no mito da maturidade significaria um desserviço ao equilíbrio necessário para o ingresso na vida adulta.

A conclusão a que muitos de nos chegam, porque continuamos a sentir que temos vínculos muito fortes (tanto positivos quanto negativos) com nossos pais, é que em parte continuamos presos à adolescência. Sentimos que existe algo errado em nós se não tivermos “conquistado” a separação psicológica de nossos pais. Paralelamente, reprimimos o impulso de continuarmos perto de nossos filhos. Acreditamos que continuar apegados a eles é uma atitude egoísta e pouco saudável. 109

Apter defende a necessidade de os pais de hoje estarem presentes na vida dos filhos por um período muito mais longo do que aquele normalmente observado no processo de formação educacional das gerações anteriores. Isso não significa dizer que a passagem da adolescência para a vida adulta no passado fosse mais fácil no passado. Os desafios dessa transição sempre existiram. Porém, com as mudanças verificadas na sociedade contemporânea, em que juventude passou a ser um valor até mesmo para os mais idosos, em que os avanços tecnológicos revolucionaram radicalmente os meios de produção e os conceitos sobre o que seja trilhar uma carreira profissional; os jovens estão mais do que nunca perdidos diante

108 Idem, ibidem, p.244. 109

da quantidade de conhecimentos que precisam acumular, se quiserem ocupar postos de trabalho que lhes garantam as condições mínimas de uma vida digna de qualidade e segurança.

Se, no passado, as crianças entravam de maneira razoavelmente rápida na vida adulta, assumindo papéis sociais definidos, ganhando salários condizentes e casando-se relativamente jovens, hoje em dia, as oportunidades estão cada vez mais exíguas. A partir de seus estudos, constata Apter 110:

Mesmo nos meados do século XX, havia muitas oportunidades para encontrar um nicho seguro, com um emprego, uma família e uma comunidade. Hoje, os jovens adultos atingem diferentes estágios da idade adulta em várias épocas. Alguns ganharão salários altíssimos antes mesmo de pensarem em ter uma família. Outros terão filhos enquanto ainda são sustentados pelos pais. Alguns terão diplomas de nível superior, mas serão forçados por economia a morar com os pais. Alguns serão mimados no colégio e depois enfrentarão grandes responsabilidades no emprego. Hoje não existem mais marcos nítidos nesta estrada.

Apoiada nessas razões, Apter insiste em desmitificar a entrada na maturidade como um momento de rupturas com o passado e de conquista da independência com relação aos pais. A autora acredita que, se os genitores estiverem atentos às diferentes formas que a solidão, as perdas e as confusões emocionais assumem nas manifestações comportamentais dos filhos, eles aprenderão a localizar os sinais de perigo e estarão aptos para ajudar a corrigir os problemas característicos da transição para a idade adulta.

A abordagem de Apter sobre transição para a vida adulta difere da dos demais estudiosos naquilo que ela traz de recomendação, tanto para os jovens quanto para os adultos responsáveis, sobre as possíveis maneiras vivenciar o período, tendo em vista a minimização dos conflitos. Referentemente às condutas típicas dos jovens nessa fase, o trabalho da psicóloga ratifica as observações de importantes pesquisadores do passado. Utilizando estudos de caso como referência e ilustração, a autora discorre sobre: 1) transtornos alimentares, motivados pela transformação do corpo; 2) busca por identificação e formação de identidade; 3) necessidade de fazer escolhas relacionadas à carreira profissional, incluindo-se aí o

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ingresso na universidade; 4) relacionamento com mentores; 5) atração sexual e descoberta da paixão; 6) necessidade de aprender a lidar com mágoas e ressentimentos, relativamente tanto ao amor quanto às amizades; 7) necessidade de sair-se vencedor em contraposição com o medo do sucesso; 8) necessidade de encontrar estabilidade e estabelecer pares no mundo adulto; 9) angústia com relação ao tempo; 10) aprendizagem com relação a limites próprios e impostos pelo mundo externo; 11) casamento como atalho para a maturidade; 12) experiência no mundo material, com destaque para a administração do dinheiro, e 13) casos de autoflagelação e suicídio.

Ao argumentar a respeito da inadequação do mito da maturidade para processo de desenvolvimento dos jovens, Apter investe contra os contos de fadas. Segundo a psicóloga, esse gênero literário é responsável pela presença no imaginário da humanidade da idéia de que o aprendizado e o crescimento devem-se dar longe da família. Diz ela 111:

Este modelo fixou-se na imaginação: sozinho, expulso de casa pelo pai, o menino mostra o seu valor e se torna um homem digno. O seu rito de passagem é através de uma floresta ou deserto para onde ele é lançado por uma família que o deprecia. Ainda mantemos este modelo de sair de casa e seguir o próprio caminho. Ele molda as reações dos pais diante dos próprios filhos e filhas. Ele molda as expectativas que os jovens têm quanto a si mesmos.

O conto original de separação e triunfo surgiu numa sociedade muito diferente. O ideal de partir e retornar como um rito de passagem nasceu numa época de maior coesão e controle familiar. A transição de criança – com suas associações de necessidade e dependência – a adulto – com suas associações de conhecimento e poder – mudou com o tempo.

Ante essas afirmações, é de se crer que Apter tenha desconsiderado o caráter simbólico dos contos de fadas e desprezado importantes e consagradas análises psicológicas das narrativas maravilhosas que compõem o acervo do que conhecemos hoje como Literatura Infantil Clássica. Nessas, o percurso do herói que abandona o lar, seja por que motivo for, simboliza uma “viagem” às profundezas do inconsciente de onde emerge com a consciência fortalecida para enfrentar as

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vicissitudes do tornar-se adulto. Em nenhum momento, o lançar-se na floresta desconhecida é compreendido como um apelo à saída real da casa dos pais. A visão simbólica dos contos de fadas é coincidente tanto entre os adeptos da psicologia do ego quanto entre os que professam a psicologia do self. Apenas para citar um pensamento de cada corrente, reproduz-se, como representante da primeira, trecho do que fala Bettelheim 112:

Através dos séculos (quando não dos milênios) durante os quais os contos de fadas, sendo recontados, foram-se tornando cada vez mais refinados, e passaram a transmitir ao mesmo tempo significados manifestos e encobertos – passaram a falar simultaneamente a todos os níveis da personalidade humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da criança tanto quanto a do adulto sofisticado. Aplicando o modelo psicanalítico da personalidade humana, os contos de fadas transmitem importantes mensagens à mente consciente, à pré-consciente, e à inconsciente, em qualquer nível que esteja funcionando no momento.

Como representativo do pensamento da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, selecionou-se o seguinte trecho retirado de Franz 113:

Apesar de terem características muito humanas, esses heróis de contos de fadas não são, pois, inteiramente humanos. Isso porque não são apenas tipos de seres humanos, mas arquétipos, não podendo, por conseguinte, ser diretamente comparados com o ego humano.

Os depoimentos de Bettelheim e Franz não autorizam, portanto, compactuar com o pensamento de Apter no que diz respeito à invalidade dos contos de fadas para os dias atuais. Pode-se concordar com a defesa que a psicóloga de Chicago faz da necessidade de os pais estarem próximos de seus filhos, oferecendo apoio emocional e material, durante todo o processo de transição para a vida adulta, mas

112

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlene Caetano. 10.reimp., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 14.

113 FRANZ, Marie-Louise von. O significado psicológico dos motivos de redenção nos contos de

daí a comungar com sua idéia a respeito das narrativas maravilhosas vai uma distância muito grande. Em apoio ao que aqui se defende, testemunha Coelho 114:

[...] estamos vivendo um momento propício à volta do maravilhoso, em cuja esfera o homem tenta reencontrar o sentido último da vida e responder à perguntas-chave de sua existência: Quem sou eu? Por que estou aqui? Para onde vou? É no sentido dessa inquietação existencial que vemos o atual fascínio pela redescoberta dos tempos inaugurais / míticos, nos quais a aventura humana teria começado. [...] O onírico, o fantástico, o imaginário deixaram de ser vistos como pura fantasia, para serem pressentidos como portas que se abrem para verdades humanas ocultas.

É no sentido da percepção de Coelho que, neste trabalho, buscou-se descrever psicologicamente o processo de transição para vida adulta da personagem Casemiro, de O relógio do mundo, narrativa de Lino de Albergaria pertencente ao gênero do conto maravilhoso.

114 COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo, DCL, 2003,

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