• Nenhum resultado encontrado

Território e fronteira: o poder do Estado/Capital e os territórios de resistência

Fotos 98 e 99 – Camponesa assentada tecendo uma rede PA Padre Ezequiel – Mirante da

3.6 Território e fronteira: o poder do Estado/Capital e os territórios de resistência

grande amplitude, causando, na opinião de Souza (2009), uma hipertrofia da capacidade explicativa do conceito, assim como uma fadiga devido ao modismo em sua utilização, o que poderia levar, a longo prazo, a um momento de ressaca conceitual. É importante, nesse sentido, que tal conceito seja utilizado com critérios objetivamente definidos, para que seu poder explicativo da realidade investigada forneça resultados relevantes em termos científicos e práticos para os sujeitos da pesquisa.

Para o presente estudo, em específico, o conceito de território é importante. Pois, foi a partir dessa idéia que buscamos compreender o processo de formação e a dinâmica social, econômica e política estabelecidas no estado rondoniense, especificamente no que tange à inserção do campesinato e da agricultura camponesa, constituídos no âmbito da luta pela terra

na Mesorregião Geográfica do Leste Rondoniense. Tendo em vista tal relevância, entendemos ser importante respondermos e elucidarmos algumas questões. Entre elas, destacamos: qual o conceito de território assumido para a compreensão da luta pela terra e da territorialização camponesa nos assentamentos rurais da Mesorregião Geográfica do Leste Rondoniense? De que território (ou territórios) podemos falar em um espaço produzido sob o signo da fronteira agrícola? Qual o território (ou territórios) construído pelos camponeses na área de pesquisa delimitada neste trabalho?

Para, inicialmente, situarmos o conceito de território aqui assumido, ressaltamos que “o que define o território é, em primeiríssimo lugar, o poder – e, nesse sentido, a dimensão política é aquela que antes de qualquer outra, lhe define o perfil” (SOUZA, 2009, p. 59). O debate do conceito de território a partir da idéia de poder foi apresentado, de forma mais sólida, por Claude Raffestin. O autor situou o poder, basicamente, manifestado por ocasião da

relação. O poder seria, assim, “[...] um processo de troca ou de comunicação quando, na

relação que se estabelece, os dois pólos fazem face um ao outro ou se confrontam”

(RAFFESTIN, 1993, p. 53). Saquet (2007) esclarece e resume a concepção da seguinte forma:

O poder é inerente às relações sociais, que substantivam o campo de poder. O poder está presente nas ações do Estado, das instituições, das empresas..., enfim, em relações sociais que se efetivam na vida cotidiana, visando ao controle e à dominação sobre os homens e as coisas, ou seja, o que Claude Raffestin denomina de trunfos de poder. É uma abordagem também multidimensional das relações de poder que se traduz numa compreensão múltipla do território e da territorialidade. (SAQUET, 2007, p. 33).

É importante destacar, ainda, que, nessa concepção, a relação de poder se efetivaria a partir de diferentes amplitudes de energia e informação. Nas palavras de Raffestin (1993, p. 54): “[...] a energia e a informação sempre estão presentes simultaneamente em toda relação”. Assim, cada território seria constituído a partir, principalmente, da correlação entre esses dois elementos (energia e informação). As diferentes sociedades organizariam seu espaço combinando esses elementos e, dessa forma, modelariam seu território, estando cada um desses constituídos por diferentes proporções de energia e informação.

É necessário explicar, também, que o poder ou as relações de poder que, projetadas no espaço, constituem os diferentes territórios, devem ser entendidos em toda sua amplitude de significado e abrangência. Pois o poder se traduz pelas relações políticas estabelecidas por um Estado Nacional e pelas subdivisões deste Estado, mas também está presente nas relações políticas cotidianas dos camponeses de um assentamento rural. Da mesma forma, esse poder

se traduz nas relações econômicas, sejam em nível internacional ou na simples comercialização dos excedentes produtivos de uma comunidade camponesa. A partir daí, das relações de poder, podemos dizer que os territórios são construídos e desconstruídos em uma diversidade de dimensões analíticas e concretas, ocasionando processos históricos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.

A compreensão do território a partir das relações de poder é importante, a princípio, para a análise do processo de ocupação da fronteira rondoniense. Nas áreas de fronteira, os elementos energia e informação, propostos por Raffestin (1993), são dispostos de maneira mais clara e declarada. A formação do território na fronteira rondoniense teria ocorrido a partir de alto índice de energia, já que esta ocupação foi realizada de forma autoritária e dirigida por um Estado militar, além da violência exercida diretamente pelo latifúndio. Mas, ao mesmo tempo, não podemos negligenciar a carga do elemento informação para a ocupação da fronteira amazônica expressa, por exemplo, na perspectiva do integrar para não entregar ou mesmo na idéia de uma terra sem homens para homens sem terra. Propagandas essas que foram baseadas em ações, técnicas e conhecimentos construídos sobre a fronteira que, de alguma forma, impulsionaram os camponeses a migrarem em busca de terra.

Assim, no processo de ocupação da fronteira, é importante refletir também sobre os fluxos migratórios que seguiram intensamente para o estado rondoniense, por exemplo. Raffestin (1993) fala sobre a função do processo migratório na conformação de diferentes territórios. Utiliza, para isto, a noção de mobilidade autônoma, quando resulta de uma escolha deliberada de quem migra, e mobilidade heteronômica, quando resulta de uma coerção. É interessante analisar, a partir destas idéias, a forma como ocorreu a ocupação da fronteira rondoniense. Poderíamos dizer que todo o fluxo migratório para o estado de Rondônia ocorreu por uma mobilidade autônoma, o que indicaria um processo de colonização espontânea, por sua vez.

Por outro lado, o próprio Raffestin (1993) sinaliza que ainda que alguns movimentos migratórios ocorram de forma espontânea, eles resultam verdadeiramente de outros tipos de coerção, o que entendemos aqui como uma coerção ideológica. Para o período de ocupação mais efetiva da fronteira amazônica esta lógica teve relevância para os movimentos de migração camponesa. A partir dessa lógica coercitiva, foi constituído, autoritariamente, o território refletido no xadrez da terra, durante o processo de colonização agrícola no estado rondoniense, como apresentou Cunha (1985). Em verdade, o processo de avanço sobre a fronteira acabou por se consolidar, a um só tempo, como causa e conseqüência de um

constante processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização camponesa em todo o país. Esse processo, por sua vez, foi levado a cabo por fatores políticos e, principalmente, pelo poder econômico.

É importante ressaltar que, no avanço sobre a fronteira agrícola, mantém-se também uma correlação de forças (e, principalmente, de acordos) entre o Estado e o Capital que, muitas vezes se confundem em um só elemento. Foi essa correlação que, a cada momento, determinou a construção do território na fronteira rondoniense. Em maior proporção, foi a aliança entre Estado e Capital que proporcionou a possibilidade de ocupação da fronteira de forma geral. Foi a partir dessa aliança que a estrutura física para avanço massivo sobre a fronteira foi possibilitada, com a construção de estradas e criação de infra-estrutura social e produtiva. A relação Estado-Capital se revela de várias formas. Na fronteira, inicialmente, essa relação ocorreu pela apropriação das terras livres que, por sua vez, foram disponibilizadas na forma de latifúndios.

É importante destacarmos que o território brasileiro foi historicamente formado nas bases do latifúndio sob controle de uma pequena elite dominante. O território de fronteira, especialmente na Amazônia, tornou-se espaço privilegiado para a consolidação de territórios dominados pelo latifúndio, isso com base nas relações de poder coercitivas. Em Rondônia, a partir da década de 1970, o Estado em sua aliança com o grande capital, teve papel importante na conformação do território, pois, no âmbito do processo de regularização fundiária, desterritorializou indígenas, seringueiros e posseiros para consolidar o território do latifúndio e da grande empresa agropecuária.

Nesse contexto, devemos ressaltar que durante o período de controle militar estatal sobre o estado rondoniense, o território foi construído, basicamente, a partir das necessidades de apropriação do capital legitimadas pelo Estado. O INCRA teve, nesse contexto, papel de destaque, pois sendo Rondônia, legalmente, um Território Federal até 1981, quem de fato governou esse espaço foram os responsáveis pelo planejamento e execução das políticas fundiárias, diretores daquele instituto. Portanto, nas relações de poder estabelecidas na conformação do território rondoniense durante os anos 1970 e parte dos anos 1980, quem deu as cartas foram os militares e quem se privilegiou e territorializou foram os latifúndios e as grandes empresas agropecuárias. Ou seja, territorializou-se o capitalismo pelas mãos do Estado autoritário.

No âmbito deste território controlado e construído pelo Estado/Capital, foram desterritorializados e reterritorializados sujeitos sociais que representaram grupos de

resistência. As próprias sociedades indígenas representaram, historicamente, territórios de resistência ao avanço da apropriação capitalista sobre a fronteira amazônica. É certo também que foram, em sua maioria, violentamente desterritorializadas. Essa dinâmica territorial de controle sobre as terras do estado rondoniense teve como grupo de resistência também a grande quantidade de camponeses posseiros que, já desterritorializados no Sul do país procuraram fazer frente ao território do latifúndio, legitimado pelo Estado militar. É preciso destacar, nesse contexto, que o Estado/Capital estabelece seu território, mas, também os grupos camponeses de resistência disputam e produzem seus territórios. Certo é, contudo, que na constituição dos territórios existe um projeto hegemônico comandado pelos donos do poder, pelos proprietários dos meios de produção.

O capitalismo se estabelece com a consolidação de território capitalista. Dizer que as relações sociais capitalistas produzem relações sociais não capitalistas também é dizer que os territórios capitalistas produzem territórios não capitalistas. Esta produção ocorre de modo desigual e conflitante, gerando disputas territoriais permanentes. As disputas territoriais não se limitam à dimensão econômica. Pelo fato do território ser uma totalidade, multidimensional, as disputas territoriais se desdobram em todas as dimensões; portanto, as disputas ocorrem também no âmbito político, teórico e ideológico, o que nos possibilita compreender os territórios materiais e imateriais. As políticas de dominação e de resistência utilizam o conceito de território para delimitar tanto os espaços geográficos disputados, quanto de demarcar os pleiteados. (FERNANDES, 2009, p. 201).

Paulino (2008) procura entender este território a partir das concepções marxistas de que as configurações deste seriam resultado de forças complexas que, dialeticamente, determinariam os contornos sociais, políticos, econômicos e culturais de cada território. Para isto, a autora considera que tais territórios resultariam de rearranjos constantes.

Há que se considerar, assim, que o território é, ao mesmo tempo, um agente e um receptáculo do processo de produção capitalista, cuja lógica hegemônica inscreve os contornos dos arranjos existentes. Pensar em contorno é, assim, negar a idéia de arranjo acabado, tendo em vista a confluência de embates movidos por interesses divergentes, e que não estão restritos aos conflitos entre as classes, mas também intra-classes e que, ao fim, impedem a delimitação dos espaços de poder a gosto dos seus agentes, traduzindo-se sempre em rearranjos. (PAULINO, 2008, p. 215).

Isso quer dizer que a constituição de cada território está em constante disputa, entre projetos hegemônicos e projetos que procuram rearranjar este mesmo território. Estariam, assim, em constante disputa, diferentes propostas de territórios e territorialidades. Esse processo ocorreria, em conformidade com Fernandes (2009), de acordo com a idéia de conflitualidade. Seriam formadas, permanentemente, nesse contexto, conflitualidades de

disputa pelo território. “O âmago da conflitualidade é a disputa pelos modelos de desenvolvimento em que os territórios são marcados pela exclusão das políticas neoliberais, produtora de desigualdades, ameaçando a consolidação da democracia” (FERNANDES, 2009, p. 203).

No caso da fronteira rondoniense, especialmente até meados da década de 1980, podemos entender que a conflitualidade ocorreu de forma bastante desigual, pois, amplamente, não havia disputa entre diferentes modelos de desenvolvimento. O Estado autoritário em sua aliança com o capital foi bastante eficiente na conformação do território à sua maneira. Somente a partir daquele período, com a redemocratização do país e a gestação de movimentos organizados de luta pela terra, com destaque para o MST, é que foram consolidadas algumas disputas pelo território rondoniense. Isso decorre do fato de, apenas a partir daí, os camponeses terem se organizado como classe social definida, passando a realmente disputar o território. Antes disso, o Estado/Capital abarcava as melhores terras e direcionava o campesinato para áreas mais distantes e com as piores terras.

Não negamos o domínio ainda exercido pelo capital no estado rondoniense, tanto na forma do latifúndio tradicional como da agricultura moderna mais recente neste espaço, mas entendemos que um território com base no modo de vida camponês tem ganhado espaço nas últimas décadas. Esse processo ganhou espaço a partir especialmente da década de 1990, com a ação dos movimentos de luta pela terra e, nos últimos anos, tem demonstrado um maior poder de disputa. Especialmente nas regiões menos urbanizadas, os assentamentos rurais têm representado largo percentual da produção agropecuária, como no caso dos assentamentos investigados neste trabalho. Ou seja, o território representado pelo xadrez da terra, passou a ser subvertido pela ação de resistência do campesinato como indicou Mesquita (2001).

Os camponeses do estado começaram, assim, a constituir, a partir da luta pela terra e da luta na terra, seus territórios de resistência. E, assim, estão inseridos os assentamentos rurais da Mesorregião Geográfica do Leste Rondoniense, aqui estudados. Esses foram conquistados e continuam sendo disputados e, a cada dia, expandidos. Baseado em um movimento difundido nacionalmente, os assentamentos estudados têm buscado, em formas cooperativas de produção e, especialmente, em um processo produtivo agroecológico, as sementes para a consolidação de um território camponês. Nos capítulos 4 e 5, buscamos analisar o processo de constituição desses territórios a partir de seus componentes históricos, assim como das condições atuais de territorialização camponesa nos assentamentos rurais.

4

4

LLUUTTAA

PPEELLAA

TTEERRRRAA

EEMM

RROONNDDÔÔNNIIAA::

eennffrreennttaammeennttooss

ee

ddeessaaffiiooss

c

caammppoonneesseess

Yo pregunto a los presentes Si no se han puesto a pensar Que esta tierra es de nosotros Y no del que tenga mas Yo pregunto si en la tierra Nunca habrá pensado usted Que si las manos son nuestras Es nuestro lo que nos den A desalambrar A desalambrar Que la tierra es nuestra Tuya y de aquel De pedro y maria De juan y jose Si molesto con mi canto Alguno que vienga a oír Le aseguro que es un gringo O un dueño de este país A desalambrar A desalambrar

Que la tierra es nuestra Tuya y de aquel De pedro y maria De juan y jose (A Desalambrar/Composição: Daniel Viglieti/Interpretação: Vitor Jara)

A luta pela terra é um capítulo importante do processo de formação do território brasileiro como um todo. Ela não se restringe ao processo estabelecido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) a partir de meados dos anos 1980. Assim como o latifúndio e a expropriação capitalista estão na base da constituição da sociedade brasileira, a luta pela terra é um elemento inseparável de nossa história. Desde a invasão européia, no século XVI, os povos autóctones passaram a lutar pela defesa de suas terras. Nessa mesma luta, algumas vezes para defender, outras para conquistar seu território, entraram escravos negros, migrantes europeus, entre vários outros grupos.

O processo de apropriação capitalista do espaço agrário brasileiro, no entanto, cercou a maioria das terras, excluindo, cada vez mais, os camponeses do acesso à terra e de construir seus territórios de produção e vida. E, por isso, dialeticamente, cresceu também a organização social e política dos camponeses sem-terra no embate pelo território, buscando desalambrar as cercas do latifúndio, como reflete a letra da canção citada acima sobre o Chile. Essa

organização não é resultado objetivo e positivista de um momento histórico, de um espaço geográfico ou da ação de um único grupo social. É resultado, ao contrário, do acúmulo dialético de forças, entre vitórias e derrotas ocorridas durante todo o processo de formação territorial do país.

Nessa perspectiva, entendemos ser importante para a compreensão da luta pela terra, travada em território rondoniense, resgatarmos, ainda que brevemente, momentos históricos da resistência camponesa no território brasileiro como um todo. Esse processo de resistência, dividido em diferentes momentos históricos e espaços geográficos, está ao mesmo tempo fortemente conectado, pois tiveram como fator unificador a luta contra a expropriação de seus territórios. Portanto, o conflito pela terra na região amazônica e, especificamente, em Rondônia, trazem elementos do problema agrário de outras regiões do país. Assim, sertanejos desterritorializados pelas secas e pelos coronéis no Nordeste, camponeses paranaenses expulsos pelo processo de modernização da agricultura no Sul, entre vários outros, compõem atualmente a luta pela terra no território rondoniense.

4.1 A luta pela terra no território brasileiro: notas históricas sobre a resistência e a