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A tessitura sociopolítico-conceitual entre estado neoliberal, políticas e avaliação

Capítulo 2 A INTERLOCUÇÃO ENTRE O CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO

2.1 A tessitura sociopolítico-conceitual entre estado neoliberal, políticas e avaliação

Para empreendermos uma investigação sobre as políticas de formação de professores e da avaliação e sobre a interlocução entre esses dois campos, objeto do presente estudo, torna-se imprescindível refletirmos sobre a função e o papel do Estado. Como afirma Höfling (2001, p. 30), ―para melhor compreensão e avaliação das políticas públicas sociais implementadas por um governo, é fundamental a compreensão da concepção de Estado e de política social [...]‖.

Tal compreensão é reforçada por Lipovetsky (2011) em estudo recente, ao argumentar quanto à necessidade de se compreender o papel das políticas públicas, principalmente as da educação, para o real entendimento da natureza do Estado Moderno na sociedade contemporânea. A autora parte da premissa de que estamos vivendo uma crise estrutural, o que é reforçado por Mészáros (2005, p. 2) ao denunciar que ―estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, não como as vividas no passado, mas a uma crise estrutural, profunda, do próprio sistema do capital‖.

Historicamente, segundo Cicco e Gonzaga (2009), a primeira discussão sobre o Estado advém da obra de Maquiavel (1469-1527) denominada O Príncipe21, publicada em

1513, na qual já se buscava uma abordagem racional do exercício do poder político por meio do Estado. No entanto, ―a ideia de Estado Absoluto tornou-se realidade, somente, a partir do início chamada Idade Moderna (séculos XV-XVIII)‖ (OLIVEIRA, 2010, p. 26).

O Estado moderno culmina exatamente, segundo Marx e Engels (1989), com a ascensão do Absolutismo, cuja origem se situa no advento do capitalismo mercantilista, em um período de grandes modificações político-econômicas, de superação do modo feudal de produção e de reflexão teórica sobre a função do próprio Estado. Nesse novo cenário, o Estado precisou tornar-se forte e centralizado, o que deu origem ao Estado Absolutista e, posteriormente, ao Estado Neoliberal.

21 Maquiavel não formulou um conceito ou teoria sobre o Estado, mas podemos inferir que ele o percebeu como

uma forma de poder centralizado e mantido pelo soberano, por meio da regularização das relações da coletividade humana (OLIVEIRA, 2010, p. 26).

A perspectiva absolutista tem como grandes representantes Thomas Hobbes (1588 -1679) e John Locke (1632-1704), e como característica a defesa do Estado como uma instituição fundamental para regular as relações humanas, significando em si a máxima representatividade de uma sociedade racional e civilizada. A obra Leviatã, escrita por Hobbes, expõe o poder e a força do Estado, considerados por ele como o próprio Leviatã22. À

constituição do Estado acrescenta-se ainda a teoria da concepção democrática da sociedade civil de Rousseau (1712-1778), que entende o Estado como um órgão limitado pelo povo, submisso à vontade da população. Dessa forma, é nos princípios gerais defendidos por Hobbes, Locke e Rousseau – tais como a defesa da ampla liberdade do indivíduo perante a sociedade e o Estado, o livre uso da propriedade privada e a igualdade entre os homens – que se estruturam posteriormente as teorias consideradas liberais. Tais teorias se caracterizam pela defesa da redução do papel do Estado na economia, a autorregulação do mercado, a liberdade e o individualismo.

A corrente liberal e seu ideário vigoraram até o século XIX, quando começou a debilitar-se em virtude da diversos fatores, tais como a ―crescente organização do mundo do trabalho; a veiculação do ideário socialista; o progresso técnico e científico; a crise de 1870; a revolução de 1917; a recessão de 1930; as duas grandes guerras; os reordenamentos políticos e sociais; a redefinição do espaço internacional‖ (AZEVEDO, 2003, p. 10). De fato, os primeiros sintomas da crise de capitalismo manifestaram-se no final do século XIX e início do século XX. Tal diagnóstico aponta algumas causas históricas relevantes nesse processo, como a Grande Depressão (1929-1932), período conhecido como o da maior crise econômica mundial, e a deflagração da Segunda Guerra (1939-1945).

Ademais, historicamente, nos primeiros anos da década de 1970, o capitalismo apresenta visível esgotamento no modo de reprodução do capital taylorista/fordista e keynesiano. Com a associação de elementos como os movimentos operários, o acirramento da concorrência intercapitalista e a elevação dos preços das matérias-primas no mercado mundial, revelou-se nitidamente a fragilidade do sistema produtivo vigente (LIPOVETSKY, 2011). Soma-se aos fatos, segundo Antunes (s.d.), a partir do final dos anos setenta e as

22 O Leviatã é uma criatura mitológica, geralmente de grandes proporções, bastante comum no imaginário dos

navegantes europeus da Idade Moderna. Contudo, ao longo da história, há referências desse tipo de monstro, sendo um caso recente o do Monstro de Lago Ness.

primeiras décadas de 1980, a crise do Welfare State23. Em decorrência da crise, a

desregulamentação financeira torna-se a dimensão dominante, aquela que lastreia todas as demais. Pode ser caracterizada pelas alterações na ordenação do processo produtivo e na modificação das relações de trabalho e, sobretudo, pelo conjunto de esforços realizados para favorecer o crescimento, a acumulação e a concentração do capital, com vistass a uma nova roupagem do sistema capitalista.

Behring e Boschetti (2008) declaram que a fórmula neoliberal para sair da crise pode ser resumida nas seguintes proposições: (i) um Estado forte para romper o poder dos sindicatos e controlar a moeda; (ii) um Estado parco para os gastos sociais e regulamentações econômicas; (iii) a busca da estabilidade monetária como meta suprema; (iv) uma forte disciplina orçamentária, diga-se, contenção dos gastos sociais e restauração de uma taxa

natural de desemprego; (v) uma reforma fiscal, diminuindo os impostos sobre os rendimentos mais altos; (vi) o desmonte dos direitos sociais, implicando quebra da vinculação entre política social e esses direitos, que compunha o pacto político do período anterior.

Segundo Oliveira (2011), no Brasil a presença mais expressiva da ideologia24 neoliberal data do final da década de 1980, após a eleição presidencial de Fernando Collor de Mello (1989-1992) e se consolida nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002). Mais especificamente, no governo deste último, com base no argumento da falta de qualidade dos serviços prestados pelo Estado. Sob a coordenação de Bresser Pereira, publicizaram-se as propostas para a reforma do Estado, materializada no Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado (PDRE) 25. No entanto, Lipovetsky (2010) – apoiada em Saad Filho e Morais (2005), Antunes (2006), Novelli (2010) e outros – indica que mesmo com a eleição de Luiz Inácio da Silva (Lula) em 2002 (primeiro mandato) e em 2006

23 Estado de bem-estar social, conhecido como o Estado-providência. Pode ser considerado como um tipo de

sistema político-econômico em que o Estado é colocado como agente protetor e defensor dos aspectos sociais e como centro da organização econômica.

24 Para Mészáros (1996, p. 22-23), ―a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal

orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. (...) Assim, as ideologias conflitantes de qualquer período histórico constituem a consciência prática necessária através da qual as principais classes da sociedade se relacionam e até, de certa forma, se confrontam abertamente, articulando sua visão de ordem oscila, correta e apropriada como um todo abrangente‖.

25 Oliveira (2010) assevera, à luz dos estudos de Peroni (2003) e Silva; Souza (2008), que o Brasil, na elaboração

do PDRAE, contou com o apoio de organismos internacionais, tais como as Organizações das Nações Unidas (ONU), o Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (Clad) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

(segundo mandato), e de Dilma Rousseff em 2010, não ocorreu o rompimento com o modelo do Estado neoliberal.

Cabe destacarmos que, sob a égide da lógica neoliberal, o Estado torna-se limitado e reduzido em suas funções, mas forte em seu poder de regulação. Como resultado, diminui seu poder de intervenção e passa a creditar ao mercado a capacidade de regulação do capital. No decorrer do processo de redefinição de suas atribuições, categorias anteriormente usuais, tais como igualdade, justiça social, equidade são substituídas por novas categorias – eficiência, eficácia, regulação, livre iniciativa – que asseguram seu atrelamento ao mercado.

Por meio dessa suposta ressignificação conceitual, a proposta neoliberal vai tecendo paulatinamente as mudanças de natureza estrutural, necessárias tanto para alcançar seus objetivos, como também para legitimar e assegurar a perpetuação de sua ideologia. Para Azevedo (2003),

os fundamentos da liberdade e do individualismo são tomados aqui para justificar o mercado como regulador e distribuidor da riqueza e de renda, compreendendo-se que, na medida em que potencializa as habilidades e competitividade individual, possibilitando a busca limitada de ganhos, o mercado produz, inexoravelmente, o bem-estar social (AZEVEDO, 2003, p. 10).

Prevalece, portanto, a lógica de ―menos Estado e mais mercado‖, na qual o Estado reduz significativamente a intervenção estatal na área social. Sob outra perspectiva, ele passa a privilegiar os interesses do mercado e do capital, afasta-se do social e aproxima-se cada vez mais do econômico.

Vários teóricos adotaram a reconfiguração do Estado como objeto de estudo: (GENTILI; SILVA, 1994; ANDERSON, 1995; AZEVEDO, 2003; HÖFLING, 2001; BEHRING e BOSCHETTI, 2008; MENDES, 2006). Com base nesses estudos, podemos afirmar que, resumidamente, o contexto da redefinição do papel do Estado pode ser explicado na bipolaridade da combinação da defesa da livre economia com raízes nas tradições liberais com a defesa da autoridade do Estado, de tradição conservadora.

Nesse cenário, as decisões não intervencionistas e descentralizadoras passam a coexistir com outras de caráter altamente centralizador (AFONSO, 1999). Para o autor, o resultado decorrente das tensões e contradições entre um Estado limitado em suas funções, mas, ao mesmo tempo, forte em suas intervenções constituiu um dos principais vetores da redefinição da natureza do Estado capitalista e das fronteiras entre os setores público e privado, como também o redimensionamento da relativa autonomia do Estado.

É nessa perspectiva que se adentra no cenário político a noção do ―quase mercado‖,26 para elucidar e diferenciar práticas de mercado de livre concorrência das práticas

mercantilistas adotadas no setor educacional. Nessa dinâmica, o mercado assume um papel de destaque na oferta dos serviços, na mesma medida em que se impõe como força determinante de controle e regulação dessa relação. Em educação, no entendimento de Souza e Oliveira (2003), nessa condição, o Estado não abre mão da imposição de determinados conteúdos e objetivos educacionais, porém permite concomitantemente que os resultados/produtos do sistema educativo sejam controlados pelo mercado.

Nessa conjuntura, as estruturas de poder e de dominação advindas da tessitura social incidem de forma direta em todas as ações do Estado, principalmente, nas políticas sociais. A partir dessa perspectiva, Giron (2008, p. 18) assevera que ―as políticas públicas foram e são implementadas, reformuladas ou desativadas de acordo com as diferentes formas, funções e opções ideológicas assumidas pelos dirigentes do Estado, nos diferentes tempos históricos‖. A respeito da proposição de políticas educacionais, isso não é diferente; e recorrendo a Gadotti (1984, p. 144), a autora reforça que ―a cada modelo de Estado também corresponde uma proposta de educação‖, uma vez que ―todo projeto educativo, todo discurso educativo veicula uma imagem de homem, uma visão de homem‖.

Como refere Roger Dale (1994, p. 112), em educação, o termo mercado é mais conotativo do que denotativo. Isso significa que, por vezes, quando se fala de ―mercadorização da educação‖ não se trata senão da implementação de mecanismos de ―liberalização‖ no interior do sistema educativo ou da introdução de elementos de ―quase- mercado‖ (AFONSO, 2005, p. 144).

Para Souza e Oliveira (2003, p. 873), o quase mercado pode ser entendido como expressão de ―um continuum de formas organizacionais que vão do mercado puro na gestão e financiamento estatal da educação‖. Os autores apresentam uma análise de características que têm estado presentes, de modo dominante, na concepção e condução de avaliações dos sistemas e instituições de ensino no Brasil.

Como dito anteriormente, com a diminuição das funções do Estado, atribuem-se à iniciativa privada (mercado) demandas sociais. Autores como Faleiros (1980), Offe e Ronge (1984), Poulantzas (1991), Vianna (1988), Oliveira (2006), Boneti (2007) e Silva (2009)

26 Tal conceito busca elucidar e diferenciar práticas de mercado de livre concorrência das práticas mercantilistas

adotadas no setor educacional. Embora nessa dinâmica o mercado assuma um papel de destaque na oferta dos serviços, na mesma medida o Estado se impõe como força determinante de controle e regulação dessa relação.

denunciam que tal fato reforça a segmentação social da população, uma vez que só têm acesso a certos serviços aqueles que possuem uma determinada condição econômica. Nessa linha, os direitos sociais tornam-se mercadorias. Assim, o movimento econômico restringe e condiciona a esfera social. Para Azevedo (2003), a corrente neoliberal em defesa do estado mínimo27 passa a creditar ao mercado a regulação do capital e do trabalho e, no que diz

respeito às políticas sociais, a referência básica que as determina é, igualmente, o livre mercado.

Essa nova tendência teórica e política de ordenamento do mundo capitalista defende que as políticas públicas tolhem a livre iniciativa e a individualidade, desestimulando a competitividade. Por isso, na lógica neoliberal, as políticas sociais efetivam-se por meio de programas focalizados, ―voltados àqueles que, em função de suas ‗capacidades e escolhas individuais, não usufruem do progresso social‖ (MENDES, 2006, p. 39).

2.2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS, AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS, A AVALIAÇÃO E